Ignições das artes contemporâneas na virada especulativa

Autora

Lucia Santaella

Lucia Santaella é pesquisadora 1 A do CNPq, professora titular nas pós-graduações em Comunicação e Semiótica e em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUC-SP). Doutora em Teoria Literária, ambos da PUC-SP. Livre-docente em Ciências da Comunicação pela USP, publicou 41 livros, entre os quais: Matrizes da linguagem e pensamento. Sonora, visual, verbal (Iluminuras/ FAPESP, Prêmio Jabuti 2002), Mapa do jogo. A diversidade cultural dos games (org., Ed. Cengage Learning, Prêmio Jabuti 2009), A ecologia pluralista da comunicação (Paulus, Prêmio Jabuti 2011) e Comunicação ubíqua. Repercussões na cultura e na educação (Prêmio Jabuti 2014). Recebeu ainda os prêmios Sergio Motta em Arte e Tecnologia (2005) e Luis Beltrão, maturidade acadêmica (2010).

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Embora possa ser lido em sua autonomia, o presente ensaio dá continuidade a dois outros que lhe antecederam. O que os une é a reflexão sobre as condições complexas da arte contemporânea no contexto da sociedade e cultura que a abrigam. O primeiro deles, sob o título de “Arte digital e/ou arte contemporânea”, está publicado como um dos capítulos de Temas e dilemas do pós-digital. A voz da política (SANTAELLA, 2016, p. 231-242). O segundo versa sobre “A arte contemporânea e seus enigmas” e, como está implícito no título, teve por objetivo colocar ênfase no caráter multifacetado e heteróclito do panorama atual da arte (SANTAELLA, no prelo). Este terceiro tem por objetivo dar a conhecer as emergentes aproximações, na cultura artística internacional, entre a arte contemporânea e o mais recente movimento filosófico conhecido como realismo especulativo ou também mais genericamente chamado de virada especulativa.

Por que o realismo especulativo tem despertado o interesse das artes contemporâneas, tanto dos teóricos quanto dos críticos e curadores dessa arte? Eis aí uma questão que desperta curiosidade e, para alguns, provoca até mesmo perplexidade. Antes de dar início à discussão dessa interrogação e antes mesmo de apresentar ao leitor um panorama que o familiarize com esse movimento filosófico, é necessário situar a virada especulativa em um contexto filosófico e cultural maior no qual está inserida.

A virada do não-humano

O contexto maior é o da virada do não-humano (nonhuman turn) que engloba estudos interdisciplinares das mais diversas ordens, todos eles endereçados para o descentramento do humano no seio da biosfera. Entendendo o não-humano em termos do mundo animal, da afetividade, dos corpos, dos sistemas orgânicos e geofísicos, das materialidades e das tecnologias, esses estudos buscam caminhos de enfrentamento, nas artes, nas humanidades e nas ciências sociais, aos desafios que o século 21 está apresentado. Ou seja, enfrentar os modos como este século implica, mais do que isso, exige o nosso engajamento com o que não é humano, tais como mudanças climáticas, secas, fome, biotecnologia, genocídio, terrorismo, guerra e até mesmo o Antropoceno, o novo período geológico do planeta, fruto do peso e feridas que as ações humanas, muitas vezes insanas, imprimiram sobre a biosfera (GRUSIN, 2015, p. vii).

As teorias do não-humano representam um prolongamento crítico dos movimentos teóricos e artísticos que, durante algum tempo, ocuparam o cenário das ideias com o nome de pós-humano (ver FELINTO e SANTAELLA, 2012). De um lado, para evitar o malentendimento de uma teleologia implícita no prefixo “pós”, quer dizer, a interpretação simplista de um antes e um depois do humano que, por mais que se queira evitar, acaba por se impor, de outro lado, para estender o descentramento do humano até uma dimensão eco e cosmológica, o termo “não-humano” passou a ser usado, sem que isso signifique o abandono das ricas discussões que foram travadas sob o título de pós-humano.

Segundo Grusin (ibid., p. viii), as filosofias e teorias que têm demonstrado seu engajamento no amplo espectro das questões do não-humano são:

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a. A teoria ator-rede de Bruno Latour e outros que versa sobre os objetos sociotécnicos a partir de uma ontologia plana entre humanos e não-humanos, dos agenciamentos não-humanos e do parlamento das coisas.

b. A teoria dos afetos, tal como foi mobilizada pelas discussões sobre diversidade sexual.

c. Os estudos sobre os animais e seus direitos.

d. A teoria da assemblage, de Deleuze e DeLanda.

e. As teorias do cérebro, neurociências, ciências cognitivas, inteligência, consciência e vida artificiais.

f. O novo materialismo, especialmente nas teorias feministas.

g. As teorias midiáticas, com atenção para as redes, interfaces e análise computacional.

h. Todas as variedades do realismo especulativo ou filosofia orientada a objetos, neovitalismo e pampsiquismo.

Aí comparece a filosofia especulativa na composição de um longo elenco de teorias do não-humano que, embora heterogêneas, se unem no propósito fundamental de deslocar o humano da superioridade hierárquica em que reinou ao longo da história do pensamento ocidental. Essa tarefa o realismo especulativo também tomou a si de uma maneira tal que tem atraído o sistema das artes, uma atração, de resto, que nos cumpre aqui esclarecer. Comecemos pelo panorama da virada especulativa.

Panorama do realismo especulativo

Em 2007, um grupo de jovens filósofos e críticos culturais reuniu-se para discutir ideias emergentes, no Colóquio Speculative Realism Workshop, realizado no Goldsmiths College, na Universidade de Londres, em 27 de abril de 2007. Os resultados desse encontro estão registrados na íntegra na Revista Collapse (BRASSIER et al., 2007, p. 307-450) . A partir daí iniciou-se um novo movimento filosófico sob o nome de “realismo especulativo” que foi sendo cada vez mais conhecido por meio de fartas publicações, simpósios e intensa participação de seus membros e interessados na bloguesfera. No seu desenvolvimento, o movimento se desdobrou em uma tendência mais ampla que passou a ser chamada de Ontologia Orientada ao Objeto (OOO).

Tudo havia começado, de fato, já em 2005, quando Graham Harmam proferiu uma palestra com o título “Heidegger’s Thing and Beyond”. A ênfase nas coisas, nos objetos, aí expressa, coincidia com outra palestra, proferida por um outro filósofo, Ian Hamilton Grant pouco tempo antes, da qual Harman tomou conhecimento através de Ray Brassier. Poucos meses depois, Brassier levou ao conhecimento de Harman o livro de um jovem filósofo francês, Quentin Meillassoux, ex-discípulo de Alan Badiou, publicado em 2006 com o título de Après la finitude: Essai sur la nécessité de la contingence (Depois da finitude: Ensaio sobre a necessidade da contingência).

A tese central defendida pelo jovem é a de que o pensamento filosófico no Ocidente não conseguiu se livrar do estigma kantiano por ele chamado de correlacionismo. O termo “correlacionismo” já havia sido cunhado por Meillassoux em 2003 ou 2004, mas só foi publicado pela primeira vez em 2006. Ser correlacionista significa aceitar a tese de que não podemos pensar sobre o humano sem o mundo, nem pensar o mundo sem o humano, mas apenas a partir de uma correlação primordial entre ambos.

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Ser correlacionista, portanto, é aderir à tese da impossibilidade de separar o ato de pensar de seu conteúdo. Temos sempre acesso ao que está dado no pensamento e nunca a uma entidade que subsiste em si mesma. Só temos acesso à correlação entre pensar e ser, nunca a qualquer um desses termos considerado separadamente. Com isso, desqualifica-se qualquer chance de se considerar o reino da subjetividade como separado da objetividade e vice-versa. Um objeto não pode ser considerado nele mesmo, isolado da sua relação com um sujeito. Do mesmo modo, nunca podemos considerar um sujeito que já não estivesse sempre relacionado ao seu objeto. Portanto, a estratégia correlacionista consiste em professar que o objeto só pode ser pensado como um dado, tal como é dado para um sujeito. Nunca conhecemos a objeto em si mesmo, mas apenas como ele é para nós (BRYANT, 2008).

A partir disso, surge um dilema: qual é a correlação genuína? Bryant (ibid.) explica que, para Kant, a relação genuína é aquela entre uma subjetividade transcendental e a matéria da intuição condicionada pelas categorias do entendimento e as puras formas da intuição impostas pela mente. Os fenomenólogos localizam a correlação na atividade, na experiência vivida, de concessão de sentido por uma subjetividade transcendente. Wittgenstein encontra a correlação nos jogos de linguagem que constituem o mundo. Habermas, nos universais da ação comunicativa. Foucault, na dinâmica do poder e do discurso. Os marxistas culturalistas, por sua vez, encontram a correlação nas estruturas socioeconômicas da história, enquanto os hermeneutas a encontram na consciência linguística historicamente informada. Já os sociólogos e antropólogos localizam-na nas categorias sociais, comunicativas e culturais que pertencem a um grupo particular. E assim vai… Para Bryant, todas essas orientações, embora distintas, convergem para um ponto: “o objecto só é um objeto para um sujeito e o sujeito só é um sujeito para o objeto”, sem que possamos conhecer um objeto como é em si mesmo independente das estruturas que condicionam as aparências.

É nesse momento que o realismo especulativo entra em cena ao postular que é realista na medida em que rejeita o subterfúgio correlacionista presente em toda a filosofia continental, muito especialmente na filosofia pós-estruturalista com seu princípio norteador na linguagem e, consequentemente, no humano.

A rigor, o nome realismo especulativo -- ou filosofia orientada a objeto, ou ainda ontologia orientada a objeto (OOO) -- funciona apenas como um guarda-chuva que abriga uma série de autores com tendências distintas e que partem de gêneses também distintas. Pode-se chamá-los de autores porque, de fato, alguns deles não se enquadram na nomenclatura de filósofos. Alguns são teóricos da literatura e filmes, outros são especialistas em games, outros ainda são ecólogos. Então o que os une? Antes de tudo, os unem seus distintos motivos intelectuais para recusar o correlacionismo em nome de uma filosofia que se dirija à realidade ela mesma. Contudo, além da tarefa fundamental de se livrar do correlacionismo, há alguns outros pontos de convergência que podem ser levantados. Uma vez que o leitor pode encontrar uma introdução ao realismo especulativo mais substancial no capítulo 1 do livro Comunicação ubíqua (SANTAELLA, 2013, ver também YUNGK, 2016), apresento a seguir um panorama muito breve para que possamos, então, conduzir este artigo para a sua discussão fundamental formulada no seu título: as intersecções entre as artes contemporâneas e a virada especulativa. São os seguintes os pontos para os quais convergem os realistas especulativos.

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a. O retorno ao objeto e consequente abandono da virada linguística do pós-estruturalismo. Encontrar os objetos por trás das qualidades com que se apresentam a nós, e para além de sua nomeação. Um foco renovado na vitalidade, materialidade, autonomia, encanto e durabilidade dos objetos.

b. A liberalização da noção de objeto; tudo é objeto: galáxias, a tela deste computador, queijos na chapa, futebol, o ser humano e seus pensamentos, comandos, o litoral Norte etc. etc. Todos os objetos são iguais qua objetos, ontologicamente no mesmo plano.

c. A dissolvência das dicotomias a partir da ruptura radical de quaisquer relações entre interior/exterior, seja no sujeito, seja no objeto, o que leva à abolição do binômio sujeito/objeto, pois não existe o pressuposto de um sujeito para estabelecer as linhas divisórias dessas relações.

d. A rejeição do hábito dos humanos de pensar sobre as coisas apenas em termos dos efeitos que elas provocam em nós. Pensar a realidade para além do nosso pensamento é obrigatório. Disso decorre um cabal descentramento de quaisquer formas de antropocentrismo.

Entre os nomes, que têm sido reconhecidos como expoentes do movimento, destacam-se Graham Harman, considerado seu fundador, Levy Bryant, Timothy Morton, Ray Brassier, Steven Shaviro, Ian Bogost e outros. A trilha do pensamento de cada um se desenvolve com base no mestre intelectual que é tomado como eleito. Entre esses mestres, destacam-se Martin Heidegger, Alan Badiou, Alfred Whitehead, François Laruelle, Bruno Latour, e mesmo Gilles Deleuze, visto que sua filosofia da imanência spinoziana até certo ponto o afasta dos resíduos pós-estruturalistas. Não só por sua novidade, mas pela radicalidade de suas propostas em prol do resgate do esquecimento da figura do objeto, convertida em protagonista principal desse renovado teatro ontológico, o movimento tem chamado atenção internacional, como foi detalhadamente exposto com respeito ao contexto tedesco, por Winfried Nöth (2016). Uma das áreas em que a virada especulativa tem provocado grande repercussão é a da arte contemporânea, conforme será discutido a seguir.

A força de atração da virada especulativa sobre as artes

Ribas (2015, p. 345) coloca em nossa boca algumas questões cruciais e consequentemente inevitáveis. Qual é o lugar das artes no seio das divergentes variedades de realismo especulativo? Qual é a relevância desse pensamento para as práticas artísticas e curatoriais? Será que o interesse das artes nesses novos tipos de realismo vai além de uma mera busca de novidades e de instrumentalização? Entretanto o autor reconhece que formular as perguntas já é uma maneira de estar dentro do realismo especulativo.

Assim, Ribas dá prosseguimento a suas interrogações e tentativas de respostas. Por que interessaria às artes um retorno ao objeto, à ontologia realista e à epistemologia kantiana? Levando a questão mais a fundo: quais os aspectos desse movimento filosófico que podem pertencer às artes e à estética diretamente? Na sua faceta interna, qual o lugar da estética na ontologia? Há uma afinidade natural entre as temáticas das artes contemporâneas e a natureza do pensamento ontológico? Por que as práticas artísticas e curatoriais precisam desenvolver formas anti-correlacionistas? Uma ontologia plana, não hierárquica convidaria por extensão a uma consideração da parte dos objetos artísticos?

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No encaminhamento que dá à discussão das questões levantadas, Ribas (ibid., 346-350) lembra com muita propriedade que as artes do século 20 estão povoadas de ontologias especulativas radicais. Levanta como exemplo Alfred Jarry, André Breton, Joseph Beuys com suas proposições estéticas e seus mundos de objetos tão estranhos quanto aqueles que habitam a escura realidade subterrânea dos objetos de Graham Harman ou ainda o interesse não antropocêntrico de Robert Smithson nas estruturas dos cristais.

Tais manifestações nas artes provêm delas mesmas, promovendo correspondências avant la lèttre com as tendências do pensamento filosófico contemporâneo. Isso nos livra, de saída, do possível equívoco de se conceber que tais filosofias devem ser aplicadas aos objetos de arte como uma espécie de apêndice. Ao contrário, para perceber correspondências, é preciso, de um lado, estar familiarizado com a complexidade e diversidade das produções estéticas contemporâneas. De outro, é preciso desenvolver uma ética da leitura relativa aos textos do realismo especulativo, ler esses textos com rigor analítico e clareza metodológica, sem reduzi-los a citações fáceis e sumários de segunda mão em suas aplicações a questões estéticas.

Em artigo recente, ao reconhecer o apelo e atração que a virada especulativa vem exercendo sobre a arte atual, Kerr (2016) afirma que isso faz sentido, pois “os artistas, afinal de contas, são pessoas que gastam seu tempo investindo objetos com significado”. Por isso, a noção de que os próprios objetos podem ter algo a dizer naturalmente encontra na arte seu esteio privilegiado. Isso se dá muito especialmente em um momento no qual a ciência tem meios para compreender melhor a mente dos animais, inclusive a vida dotada de certo nível de inteligência das plantas, além dos avanços na inteligência, vida e consciência artificiais, nesta era da internet das coisas e das impressionantes visualizações científicas do big data, tudo isso constituindo uma nova ecologia híbrida e hiperinteligente que desloca o humano de seus antigos privilégios ontológicos e epistemológicos.

Em suma, OOO (e seu companheiro entrelaçado realismo especulativo) se dedica a explorar a realidade, a agência e a “vida privada” de entidades não-humanas (e não vivas) - todas elas sendo consideradas “objetos” - acopladas a uma rejeição aos caminhos antropocêntricos de pensar e agir no mundo. Desse modo, qualquer coisa é um objeto, quer seja vivo, não vivo, artificial ou conceitual.

Ao decrever, aliás, criticamente a teoria, Andrew Cole, apresenta uma enumeração caótica dos objetos possíveis que engloba aardvarks (palavra holandesa para significar um tipo de land art), beisebol, galáxias, queijos grelhados, comandos e o Lago Michigan. “Para a OOO, as células da nossa pele são objetos, e nós também, é objeto a população da nação em que vivemos, e igualmente é a própria ideia de uma nação. Para Kerr (2016), o ponto crucial aqui é que, em contraste com as tendências dominantes da fenomenologia do século XX, que afirmam que as coisas são apenas reais na medida em que são sensíveis a um sujeito humano, OOO afirma um realismo radical e imaginativo que não só considera que as coisas existem, mas que essa existência (definida por Harman como “nada além do confronto de um objeto real experiencial com um sensual”) é quase inteiramente inacessível ao nosso entendimento.

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Nessa espécie de igualitarismo pós-humanista ou panpsiquismo, ainda segundo Kerr (ibid.), “nenhuma das coisas que você pode nomear poderia ser considerada intrinsecamente menos real, vital ou importante do que qualquer outra”. Sob esse ponto de vista ecológico da existência, “que rejeita qualquer idéia de especialidade humana como simples arrogância”, pensar uma realidade além do nosso pensamento é obrigatório. Quando tais questões são transpostas para a arte, “a postura padrão do espectador de arte que procura ler uma obra de arte em termos de intenções ou psicologia do criador, ou seu lugar no cânone histórico em relação a outras obras, ou seus materiais e conceitos específicos, ou qualquer outro critério tradicional”, para a OOO, isso não passa de hibris antropocêntrica.

Exemplos na arte contemporânea

O artigo de Kerr (ibid.) está recheado de imagens e exemplos, na arte contemporânea, do devir animal do humano e de novas experimentações com os princípios e limites da vida, como por exemplo, quando o artista argentino Eduardo Navarro, na sua obra Timeless Alex, tentou se transformar em uma tartaruga durante a Trienal do Novo Museu, em 2015, com seu corpo kafkiano transmutado pela carapaça e patas de uma tartaruga. Enquanto rastejava, carregando sobre todo o dorso essa carapaça, o artista tentava habitar a consciência do réptil imitado, numa espécie de autohipnose.

Outro exemplo encontra-se em Pamela Rosenkranz, jovem artista conceitual suíça, conhecida por suas performances e instalações quimicamente infundidas, quando decidiu preencher o Pavilhão Suíço da Bienal de Veneza-2015 com “o líquido de carne-tonificado e o musk de bebê sintetizado”, um líquido entre rosado e cor da pele formando um espelho d’água que ocupava um cômodo inteiro do pavilhão. Esse líquido resultava de uma mistura de várias substâncias (incluindo silicone, água Evian, e Viagra, entre outros) que imitava aquilo que o comunicado de imprensa chamava de “um tom de pele padrão do norte da Europa” e que é também a cor que é utilizada na publicidade contemporânea como “uma forma comprovada de melhorar fisicamente a aparência”. A isso se acrescentavam sons gerados por computador, enquanto o líquido que lambia uma pintura de parede verde, estava reforçado hormonalmente com um cheiro que, de alguma forma, imitava o cheiro de um bebê recém-nascido.

O pavilhão, conceitual e minimalista, tornou-se uma sutil ilustração de uma das ideias centrais da OOO - a saber, que todos os objetos, eles mesmos formados por uma miríade de outros objetos, exercem seu poder sobre os objetos ao seu redor, criando uma relação de atração e recuo do espectador perante a arte. Para Ronsenkranz, sua arte parece viver, mas, ao mesmo tempo, não viva demais, uma vez que a obra de arte cria seu próprio tipo de público por causa da independência que ela desenvolve.

Segundo Kerr (ibid.), para qualquer obra de arte, da escultura clássica até a última versão de simulação digital, não há escassez no elenco de interpretações que podem ser imaginadas para objetos desse tipo. Entretanto, a ideia de que as obras de arte existem apenas na medida em que estão disponíveis para a visualização e interpretação humanas vai inteiramente contra a perspectiva promovida pela OOO, segundo a qual os objetos existem, agem e “vivem” além do reino da percepção humana.

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Os exemplos se multiplicam em trabalhos que levam a perplexidade do receptor ao paroxismo como é o caso da obra Zoodrama (2010), de Pierre Huygues, cujos trabalhos são também citados como colocando em prática alguns dos pressupostos da OOO, neste caso com foco em objetos animados, ou seja, nos animais. Nessa série Zoodrama, diferentes espécies de invertebrados coexistem em aquários especialmente projetados, enquanto seu cão de perambulação livre Human tem sido repetidamente empregado nas instalações ou performances de Huyghe em cenários como Pompidou, LACMA (Los Angeles County Museum of Art) e o Karlsaue Park, na Documenta 13 de Kassel. Não é a primeira vez que animais vivos são usados como atores na arte, mas, nas obras de Huyghes, esses “objetos” parecem existir em reinos inacessíveis aos seres humanos. Huygyes confessa que está interessado na estranha relação e separação entre o humano e o mundo, pois parece que eles não estão se encontrando.

Além disso, ao enquadrar não apenas os crustáceos, mas todo o conteúdo do tanque como objetos da arte, o vidro, a água, as bactérias, os excrementos, o artista aponta para as experiências híbridas de seus materiais, agindo sobre todos os outros objetos no tanque e além dele. Para compreender completamente um de seus Zoodramas, toda a lista de componentes e suas interações devem ser levadas em conta, algo com que os observadores humanos geralmente não estão equipados para lidar.

O vídeo de Huygues na 32ª. Bienal de São Paulo, De-Extintion (2016), mais uma vez apresenta estranhos parentescos com a virada especulativa, especialmente nas suas reberberações do não-humano. Trata-se de uma navegação, apresentada em tela gigante, dentro de uma pedra de âmbar, resina fóssil que mantém intactos resíduos de seres vivos por 30 milhões de anos. Filmada com câmera de controle de movimento, que capta imagens microscópicas, o filme vai desenhando paisagens inóspitas, texturas vítreas, metálicas, acompanhadas, de quando em quando, por pungentes sons inumanos, até capturar um casal de insetos secos, paralisados, em um tempo e um espaço imemoriais, em seu ato possivelmente reprodutor.

A mise en abyme das artes e da OOO

Todas essas recentes correspondências da arte com a virada especulativa já haviam ficado bastante patentes na Documenta 13, de Kassel, em 2012, quando a curadora, Carolyn Christov-Bakargiev, com o característico polimorfismo de sua visão de mundo e da arte, produziu um enorme volume, The book of books, com textos escritos por teóricos, críticos e artistas internacionais de várias orientações. Entre eles encontra-se o artigo de Graham Harman sob o título de “The third table”, no qual expõe sua teoria do objeto, mais bem explicitada no seu livro sobre The quadruple object (2011). Hoje, Harman, escritor prolífico, encontra-se perfeitamente instalado também no campo da filosofia da arte, gozando de reconhecimento graças à produção de textos em que expõe sua familiaridade com a crítica da arte moderna e contemporânea, como pode ser conferido em seus competentes artigos sobre “Art without relations” (2014) e “Art and OOObjecthood” (2015).

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De fato, as ideias de Harman são aquelas que têm recebido mais atenção até o ponto de muitos reduzirem a diversidade de tendências da virada especulativa, do movimento como um todo, à crítica a conceitos que são especificamente harmanianos, como é o caso do artigo de Cole (2014), com o sugestivo título de “Those obscure objets of desire” (Aqueles obscuros objetos do desejo). O autor desenvolve seu artigo no levantamento das contradições do realismo especulativo, quando considera que o interesse que o realismo especulativo tem provocados nas artes é perverso, pois a arte e a história da arte não têm feito outra coisa por centenas de anos senão pensar precisamente sobre objetos como objetos. Nesse contexto, a pergunta crucial levantada e discutida por Cole é se as coisas são realmente o que parecem ser.

Com tudo isso, inclusive com as críticas e defesas que tem despertado, a entrada da ontologia orientada a objetos no universo da teoria, crítica e curadoria da arte está se generalizando e trabalhos têm aparecido para evidenciar as correlações possíveis e plausíveis entre o labirinto de ideias renovadas desse movimento filosófico e os complexos desafios que o entendimento da arte contemporânea vem enfrentando e que não encontra mais respaldo nas orientações filosóficas tradicionais.

Não é casual, portanto, terem se tornado relativamente comuns curadorias inspiradas nas postulações do realismo especulativo, como é o caso da exposição And another thing, curada por Katherine Behar e Emmy Mikelson, em 2011, que foi proposta “como parte de um movimento alternativo em direção ao não antropocentrismo, um esforço para desalojar o ser humano do centro da discussão, enriquecer o conceito de ser e abrir o próprio mundo a todas as coisas”. O universo está repleto de coisas que, vistas de uma perspectiva não antropocêntrica, são todas iguais, sejam elas animais, vegetais ou minerais. “O não antropocentrismo reposiciona os seres humanos como apenas uma “outra coisa”, a qual não é mais preciosa ou central do que qualquer outra. As obras da exposição, cada uma a seu modo, rejeitam totalmente o paradigma sujeito/objeto. Em lugar desse paradigma, as obras operam intercâmbios entre seres humanos e coisas.

Desde o crepúsculo do modernismo nos anos 1960, coincidindo com o aparecimento das primeiras sementes do pós-moderno, as criações artísticas vêm proliferando em práticas e desejos justapostos e disjuntos, direcionados para a multiplicidade em detrimento da unidade, para a diferença em lugar da identidade, para o movimento dos fluxos e dos arranjos móveis em detrimento dos sistemas. Não faltaram críticas até mesmo furiosas ao “everything goes” (vale tudo) do pós-moderno. Contudo, conforme já afirmei em variadas ocasiões, longe de indicar ausência de sentido crítico, engajamento ético ou militância política, o “vale tudo” estava sinalizando a entrada de um novo tempo pós-utópico na cultura e nas artes que, na falta de um nome melhor, passou a ser chamado de arte contemporânea e com ela o crescimento exponencial da perplexidade e a incerteza em relação ao que pode ou não ser definido como arte.

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Os modos polimórficos de se fazer arte têm crescentemente expandido os parâmetros que tradicionalmente serviam tanto para definir as práticas artísticas, quanto para determinar princípios que podiam sancioná-las institucionalmente e para estabelecer critérios de julgamento de valor. Todas essas indefinições e hesitações funcionam hoje como índices de uma inédita instabilidade ontológica da arte em que não é mais possível estabelecer fronteiras entre campos e gêneros artísticos anteriormente bem delimitados. Em sua dispersão, eles agora se expressam por meio de nomenclaturas híbridas, em uma variegada ecologia que, desde o advento do computador como metamídia, conduziu à multiplicação de práticas artísticas em meios digitais, abrindo também os horizontes das misturas entre ciência e arte. Durante certo tempo, dominou uma pretensa oposição entre arte contemporânea e arte digital. Entretanto, já está se tornando lugar comum o deslocamento de muitos artistas para práticas híbridas entre o digital e o artesanal, entre o digital e o analógico, ou seja, práticas que fazem uso de tecnologias digitais para instaurar misturas originais, ontologicamente irrotuláveis.

Diante de tais desafios, em vez de cair nas ingenuidades hoje patéticas de que a arte está traindo a si mesma, ou de que ela está devorada pelo mercado capitalista, como se ainda houvesse algum reduto da realidade que pudesse estar a salvo desse mercado pantagruélico, hoje muitos teóricos, críticos e curadores estão percebendo coincidências entre o estonteante mise en abyme das artes e o não mesmo estonteante mise em abyme da ontologia orientada ao objeto, o que funciona como um indicador de que a hipercomplexidade do mundo em que vivemos não é questão que possa ser apresentada para mentes confortavelmente nostálgicas.

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