Ignição: a era da conectividade

Autor

Cleomar Rocha

Cleomar Rocha é artista, pesquisador e um inquieto. Pós-doutor em Poéticas Interdisciplinares (UFRJ), em Estudos Culturais (UFRJ) e em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUC-SP), possui doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA) e mestrado em Arte e Tecnologia da Imagem (UnB). Concebeu, implantou e coordena o Media Lab / UFG – Laboratório de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Mídias Interativas, instituição na qual é professor associado, atuando no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual e no curso de Design Gráfico da Faculdade de Artes Visuais. É professor visitante na Universidade de Caldas, na Colômbia, e na UFRJ. Pesquisador do CNPq, suas pesquisas observam os eixos da comunicação, visualidades e tecnologia, que sustentam suas inquietações sobre arte, design e comunicação. Sua produção contempla trabalhos em arte tecnológica, design de interfaces e reflexões sobre a relação da tecnologia com a arte, o design, a educação e a comunicação.

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Lampejos

Desde sempre vivemos em transição, na iminência de mudanças profundas, sejam sociais, econômicas, políticas, culturais ou tecnológicas. A estabilidade, de fato, parece mais uma miragem que perdura por pouco tempo, tal qual uma imagem que se dissolve diante da visada mais atenta, que uma escultura em bronze que desafia o tempo. A promessa do novo, eternizada no imaginário humano, sobrevive, apesar da coleção de frustrações, ultrapassando profecias, cálculos, guerras e projeções. O apocalipse, mais que revelação, desvela-se como enunciado hermético, em cuja polifonia ressona a expectativa, em um quase sono sobressaltado e entrecortado por vislumbres dessa mudança.

A despeito das revoluções científicas que marcaram indelevelmente os séculos XVII até o XX, as revoluções tecnológicas ditaram as conformações socioculturais no final do século XX e início do XXI e, nesse lampejo histórico, construiu-se um engenhoso castelo de referências ao novo, a perspectiva de vencer não apenas o mundo, mas o próprio ser humano, como última tarefa antes deste se profetizar também um criador. Nessa busca de superação, sondamos nosso passado no cosmos, nossa identidade no DNA e ousamos pensar nosso futuro nas máquinas.

A aceleração das inovações tecnológicas demarcam uma fase notória da sociedade, caracterizada pela conectividade, interatividade, e mesmo pelas discrepâncias entre aqueles que têm acesso a tais tecnologias e aqueles que não têm. Entre teorias e práticas sociais com a tecnologia, este texto se constrói no afã de fazer ver o estalo, a faísca de luz que anuncia o tempo. Trata-se de uma perspectiva de ignição, fundamentada nos estudos de uma era pós-digital, pós-biológica, pós-humana.

Entretanto, maior que o eco do ultrapassar, a disruptura de novos modelos de fazer ciência friccionada com a tecnologia geram a inovação do pensamento, caracterizado pela dispersão nas redes, nos aparelhos que trazem consigo o adjetivo inteligente e nas interfaces da computação cognitiva. O homo sapiens aciona a ignição para um novo rumo, para um novo estado de consciência.

Esses lampejos encontram suas referências em estudos que vão desde o funcionamento do cérebro até modelos algorítmicos baseados na aprendizagem. Do lastro humano ao adensamento lógico dos softwares, a alquimia contemporânea tem como ouro algo mais valioso ainda: a própria lógica de fazer cultura. Esse expediente suscita lançamentos e perspectivas baseadas em uma computação pervasiva, modelos interativos cuja agência ocorre pelo movimento do corpo, pela fala, biometria e contexto, e não mais por linhas de código digitadas pelo usuário final, embora elas permaneçam, mais ativas que nunca, agora imersas, camufladas sob imagens, sons e vibrações, elementos mais sensíveis ao corpo.

A perspectiva de diálogo mente e mundo é recorrente, representado pelas ciências desde seus surgimentos. Não obstante, a novidade indica o elemento mediador: a tecnologia e seus dispositivos. Com o conhecimento inaugurado pela tecnologia demos um passo importante. Se até ali a questão humana era compreender os mecanismos naturais do mundo, incluindo o corpo próprio e a consciência, a tecnologia possibilita a mudança do natural, em diálogos improváveis, mas efetivos (ROCHA, 2016). A tecnologia possibilita a mudança fundamental da civilização, baseada na forja do natural pela tecnologia. O mundo humano se lança mais ainda na semiosfera, enquanto a biosfera é mantida cada vez mais como o lugar, mas não exatamente como o contexto. Ainda que a biosfera passe a ter status de preocupação mundial, esse posto se deve, no mais das vezes, à consciência de sua relevância para a vida humana, em um substrato funcional, destituído de idealismo arcadiano.

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De modo similar, o corpo próprio se converte em elemento do mundo, dessacralizado, portanto passível de toda a ordem de investigação e intervenção. A medicina, a psicologia e a genética se veem traspassadas pela tecnologia, gerando novas perspectivas de intervenção e alteração, alcançando o código da vida, o DNA. Ao fazê-lo, as possibilidades de mudança e manipulação desses sistemas afloram, criando perspectivas para o corpo e para a mente. A manipulação genética e os tratamentos com células-tronco são exemplos de como a biotecnologia, a nanotecnologia, a psicotecnologia e a tecnopsicologia ganham espaço. De fato, a tecnologia passa a ser não apenas uma matéria do conhecimento, mas desinência e/ou radical para várias outras ciências, por vezes reinventando seus processos, métodos e, mais comum ainda, abrangência e função.

Nas linguagens, a tecnologia incorpora sua entropia primeiramente buscando controlá-la a partir da cibernética, e oportunamente se vincula a ela, tornando-se, ela mesma, uma linguagem com várias línguas. Das linguagens de programação à linguagem direta do cérebro (NICOLELIS, 2011), das linguagens naturais ao modus operandi da comunicação celular, a tecnologia vasculha o todo, não tendo mais como perspectiva sua decodificação ou tradução, mas sua manipulação.

Com essas instaurações, mostra-se apropriado pontuar que estamos, mais uma vez, em um processo de ignição. Desta vez, uma ignição que ativa modelos de conectividade: entre humanos, entre o humano e as máquinas, entre os vários mundos que aprendemos a separar. A teia complexa da vida na terra emerge à consciência, mas desta vez queremos mais que só entender.

Desvarios

O ciberespaço, tal como descrito por Gibson em seu Neuromancer, de 1984, (GIBSON, 2008), já não parece ser só uma alucinação consensual, como o autor o descreve, ainda que se admita que, como linguagem, ele de fato seja uma alucinação, entendido como construção mental.

No romance, a comunicação pode ser feita mentalmente, a partir de um dispositivo tecnológico que conduz o sujeito à matrix, ao ciberespaço. A ideia de ciberespaço como lugar fora do mundo natural, uma consciência desincorporada e projetada na matrix, rendeu desdobramentos de variados, que foram desde o surgimento de avatares, até personificação de sistemas, tidos como mordomos digitais e agentes. A dubiedade foi corrigida e a razão recuperada quando se notou que o ciberespaço está na mente e não em fios ou hard disc. De modo similar à existência mental de significante e significado, base da ontologia saussuriana da linguagem, o ciberespaço é mais um ambiente conceitual que um lugar. E está presente onde a consciência se faz presente, a saber, no mundo natural, na própria consciência.

A perspectiva de o ciberespaço ser uma consciência espacial de base semiótica, sustentada pela tecnologia da comunicação, galgou passos até o surgimento da ideia de brain net, ou internet cerebral, conceito que conecta cérebros com máquinas, integrando os primeiros com a mediação das segundas. As sinapses tecnológicas partem dessa perspectiva de que os lampejos comunicacionais entre os neurônios são, nessa modalidade, possibilitados pela tecnologia, criando a integração direta não apenas entre neurônios fisicamente distantes, mas entre cérebros fisicamente distantes. São buracos de minhoca cerebrais, para usar uma analogia física da característica topológica hipotética do contínuo espaço-tempo. Esse atalho neuronal dispensa o tipo conhecido de linguagem baseado em signo e busca um fluxo contínuo de impulsos diretos de um cérebro a outro. Mas como a mediação ocorre, há inevitavelmente a transposição de uma linguagem à outra, ainda que limitada a métricas recorrentes de intensidade, duração e frequência. Em outros termos, temos a perspectiva de reconhecer a linguagem dos neurônios, a ponto de intervirmos e criarmos diálogos.

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A perspectiva de diálogo a partir da linguagem neuronal aponta para uns cem números de desdobramentos. A comunicação direta entre cérebros seria apenas uma delas, mas talvez sequer a mais relevante. A capacidade de forjar percepções, fazendo o cérebro reconhecer movimentos, sabores, sons e imagens abre o leque para a construção de uma cultura absolutamente nova, lastrada em uma alucinação de fato realística. Se por um lado essa possibilidade é assustadora, dada à manipulação que pode haver, por outro pode se tornar uma das maiores realizações humanas, por possibilitar inputs diretos no córtex cerebral. Se o vetor tender para a integração do cérebro com o mundo natural, ao invés de forjar realidades ao estilo matrix, teremos um cenário mágico, de grandes realizações em todas as áreas, como educação, saúde e segurança. O entretenimento será apenas mais uma possibilidade, mas não o principal.

Confabulários

Na hipótese desses novos modos de operar o cérebro forem inteligentemente direcionados, a conectividade passará a ser o desafio e a maior conquista humana. Talvez já o seja há tempos. A civilização surge com a linguagem e a História tem como marco a invenção da escrita. O surgimento de uma linguagem biotecnológica pode ser a ignição de uma pós-história, em sentido diverso da usada pelo filósofo Vilém Flusser (2011)Para Flusser a pós-história se caracteriza pela forma de integrar a linearidade - a escrita - na superfície - as imagens -, e tem como ponto de partida a fotografia..

A comunicação é a base da civilização. Sem ela, nenhuma ciência ou arte se daria. Ainda que a comunicação, per si, garanta a civilização, menos ainda a civilidade, o pressuposto para ao convívio é ela. Mesmo os animais usam a linguagem para a comunicação, ainda que de modo rudimentar. A natureza, de modo geral, tem seus próprios signos e sintaxe, gerando expressões e comunicação, mesmo que classificados como signo degenerado. Para os humanos, a comunicação se baseia nas linguagens, complexas teias que prendem o sentido, não se limitando na linguagem verbal. O enunciado verbal é apenas um dos elementos da comunicação, como já tão explorado pelos cientistas da comunicação. Corpo, som e contexto criam condições enunciatórias que lapidam o lastro sígnico, decantando o sentido e tornando-o mais denso e inteligível.

Em um hipotético diálogo via brain net, a entropia pode calar-se, modelizando uma semiótica centrada nos pensamentos e nos modos de pensar. As máquinas poderiam armazenar pensamentos, ideias, insights. Os livros não conteriam letras, parágrafos, mas a matéria do pensamento. Citá-los em trabalhos acadêmicos poderia se tornar um problema, já que as normas de citação ainda não indicam como citar pensamento. Mas seria mesmo necessário citar? Se sim, certamente um pensamento resolveria fácil a questão, embora estejamos discutindo um modelo que inauguraria procedimentos de aprendizagem, de comunicação e de integração.

Nessa lógica, as cidades e seus modos de vida seriam afetados, tendo finalmente como perspectiva básica que a cidade não é um conjunto de edificações, sua infraestrutura, mas sim pessoas e seus fluxos. Nesse ínterim, a noção de cidades inteligentes resultaria no que já é claro: a inteligência está nos modos de agir e não nas coisas. Algo é inteligente se age inteligentemente. Significa dizer que inteligência é mais um processo que uma matéria. É fluxo, ação. Cidades inteligentes são cidadãos exercendo inteligentemente sua cidadania, melhorando sua qualidade de vida. E se é fluxo, voltamos à base da conectividade como base de sustentação para que os fluxos se deem.

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Já vivemos uma estética da conectividade, entendida como um gosto, um prazer de estarmos conectados. A arte e o design, já há algum tempo, usam desse expediente para forjarem suas obras, alcançarem seus efeitos e encantos. O círculo mágico das poéticas interativas opera a conexão entre a obra e o interator. Com a IoT - Internet das Coisas - o mundo ganha diálogos cada vez mais profícuos e inusitados. Com o brain net, os cérebros artificiais serão novos pontos de conexão, cujos ensaios já fazemos há algum tempo com os mecanismos de conversação online, os web bots.

Alvorecer

A ignição talvez seja um lampejo, um desvario, um alvorecer ou um simples modo de imaginar um início, uma sinapse. Mas, lembrando Peter Ellyard (2013), nós não podemos criar um futuro que inicialmente não imaginamos. Nesse sentido, imaginar é nosso ponto de ignição, partida para criar um futuro.

Será fácil defender a ideia de que não estamos prestes a mudar o mundo por completo, visto que o tempo cultural é imponderável. Não nascemos em uma cultura, a cultura é que nasce em nós. E ela, a cultura, nasce em forma de pensamento, sendo alimentada e crescendo, ou morrendo por inanição. A base alimentar da cultura é a conectividade, responsável por lastrear e compartilhar a energia fundante do pensamento, marcando um espaço-tempo, que é contínuo. Logo, a cultura, mutável e dinâmica, não se deixa prender, mas ganha asas pela conectividade, formando uma ideia de futuro e lançando nossa inteligência, na forma de ação, para construir juntos o que imaginamos.

A tecnologia da comunicação, a conectividade, parece ser o aglutinante da cultura contemporânea, cujos pigmentos dão os tons e cores para pintarmos nossa ideia de futuro. E tudo começa com a partida, ignição, rumo aos futuros possíveis.

Dívidas | Referências

ELLYARD, Peter. Destination to 2050. Melbourne: Preferred Futures Institute, 2013.

FLUSSER, Vilém. Pós-História. Vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo, Duas Cidades. Reedição. São Paulo, Annablume: 1982-2011.

GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2008.

NICOLELIS, Miguel. Muito além do nosso eu. A nova neurociência que une cérebro e máquinas. E como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

ROCHA, Cleomar. Pontes, janelas e peles: cultura, poéticas e perspectivas das interfaces computacionais. 2a. Ed. Goiânia: Media Lab / CIAR UFG, Gráfica UFG, 2016.