Da experiência estética à teoria dos afetos hipermidiatizada?

Autor

Fernando Fogliano

Fernando Fogliano é doutor e mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de Sâo Paulo. Bacharel em Engenhadria Civil pela Universidade de Mogi das Cruzes, e em Fisica pela Universidade Mackenzie. É docente e ministra disciiplinas relacionadas à Tecnologia e Fotografia Digital e Design de Interfaces Interativas. Desenvolve pesquisas que envolvem o uso e a compreensão das novas tecnologias da imagem em sua inserção na cultura e produção de conhecimento.

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Introdução

Recentemente pudemos observar uma importante mudança no que concerne ao entendimento do papel das emoções nos mais variados contextos de nossas experiências, consideradas tanto individual, quanto socialmente. Veremos a seguir que emoções de cunho positivo estão intimamente relacionadas à experiência estética. As emoções podem ser consideradas e compreendidas a partir de abordagens diversas, oriundas de campos aparentemente distantes como a filosofia e as neurociências. A abordagem a que nos propomos neste estudo é multidisciplinar e justifica-se a partir da consideração de uma visão filosófica naturalista para a qual existe continuidade entre as perspectivas oferecidas pelos diferentes campos do conhecimento. Essa decisão é concernente com a postura do pragmatismo filosófico, que insiste que o significado de um conceito seja considerado para além de um determinado campo do conhecimento, numa abordagem que nos permita transcender jogos wittgensteineanos particulares de linguagem. O significado dos conceitos emerge como a diferença no interior e para nossa futura experiência (Hickman apud Solymosi, 2013; p. 265). A visão consiliente do conhecimento de Wilson (1999; p.9-10) caminha em convergência com esta perspectiva. Para Wilson, as Ciências Naturais fornecem o suporte epistemológico necessário para que se possa debruçar sobre questões das mais variadas naturezas a respeito do universo. Uma das consequências desse tipo de abordagem é a necessidade para que se considere o conhecimento como um corpo único e complexo; a percepção de que este constitui um organismo fragmentário formado por um composto de disciplinas autônomas e independentes é apenas aparente, “artefatos da erudição”, nas palavras de Wilson.

A virada do afeto

O pensamento de filósofos como Foucault, Deleuze e Guattari abre caminho para o que Tamboukou (2003) considera “a virada emocional”. A autora, nos seus estudos no campo da pedagogia, analisa a aprendizagem emocional partindo das ideias de Foucault a Deleuze, estabelecendo um percurso entre a conceituação foucaultiana do “cuidado de si” para a noção deleuziana de “desejo e afeto”. A aprendizagem emocional, a que refere a autora, parece estar relacionada ao que Damásio (2010) considera as respostas emocionais individualizadas relativas a estímulos causativos. Essas repostas são influenciadas pela cultura e possibilitam o controle, em parte, de nossas expressões emocionais (Damásio 2010, p. 98).

Em estudos recentes sobre o afeto, a também considerada a virada do afeto, foi motivada em parte por uma crescente consciência dos limites à produção de conhecimento na pesquisa focada, principalmente, na representação, mediação, significação e subjetividade a quais têm sido dominantes na teoria cultural há algumas décadas. A dominância logocêntrica da linguagem e o textual, como o recorte para o entendimento do mundo, não são mais suficientes para abarcar fenômenos contemporâneos que integram corpos humanos, cidades, sons, imagens e vídeos, que rotineiramente são reduzidos a textos (Hillis et al., 2015, loc 14).

A abordagem do contemporâneo pela via dos afetos oferece “ uma nova promessa para produzir novas questões de pesquisa: da identidade do sujeito à informação, dos corpos orgânicos à vida não-orgânica, dos sistemas fechados à complexidade dos sistemas abertos, da economia de produção e consumos à circulação de capacidades” (Koivunen, 2010, p.18 apud Hillis et al., 2015).

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Na perspectiva de Chou (2015), afeto é, geralmente, concebido como uma força ou intensidade que existe entre uma experiência sensorial, corpórea, e a identificação de uma emoção. Afeto é o momento em que ocorre uma conexão, uma sintonia, como uma espécie de ressonância emocional ou o entrelaçamento entre entidades. Esta definição nos permite fazer uma distinção semântica entre os conceitos de afeto e emoção, que, à primeira vista, pode nos parecer tratarem-se do mesmo conceito. Emoção é um processo que ocorre no âmbito do indivíduo, enquanto que o afeto resulta de um um processo intersubjetivo. Afetos, de acordo com essa definição, podem ser vistos como a faceta social das emoções. Para Chou, o fundamento da ideia do afeto, como reverberação de emoções, inspira-se em Deleuze e Guatari a partir da ideia de assemblage, uma maneira de pensar nessa interconexão como sobreposta e inseparável. Onde modernistas clássicos viram entidades discretas e onde os estruturalistas enxergaram um rígido esquema de relações a assemblage supõe multiplicidades inextricáveis (Chou, 2015; loc. 1083).

No campo da arte, a conceitualização sobre o afeto abre caminho da análise estética para a corporalidade, do encontro de imagens e textos para a inseparabilidade entre sentido e sensação, perceber e fazer sentido (Armstrong 2000; Sobchack, 2004 apud Hillis et al., 2015). A virada para o afeto no campo da arte pode ser entendida como a pôr em relação as análises de intensidades e dos modos de expressão característicos do século XXI, tanto quanto dar continuidade e estender os estudos da estética, entendidos como a investigação e teorização da sensação e da experiência em que são consideradas a força e o impacto de imagens e sons em relação à experiência do sublime (Grusin 2010, Shaviro2010, Richardson 2010 apud Hillis et al., 2015).

Ao considerar as Instalações Interativas, que para Rebentisch (2011, p.222) constituem, em suas inúmeras formas, talvez a mais importante forma de arte contemporânea, desde os anos 1960, Fatorelli (2013, p.144) destaca a função do corpo e da afetividade em seu papel de selecionar a informação diretamente em sua relação com a arte:

De certo não há percepção sem corpo e esse corpo que percebe encontra-se a todo tempo em movimento…

...a imagem digital solicita a dimensão afectiva e criativa do corpo, desse corpo em movimento, priorizando sua base sinestésica e conferindo maior importância ao tato, relevante ao ponto de estabelecer a passagem de uma estética ocularcentrista para uma estética háptica, enraizada da afectibilidade do corpo (Fatorelli, 2013, p.145).

Damásio nos explica que o corpo é o locus central, a arena de nossa existência, e que a regulação da vida constitui a necessidade e a motivação para que o mapeamento do corpo na mente atue como um motor capaz de controlá-lo dentro de parâmetros emocionais, que oscilam entre agradável e desagradável.

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A intensificação da experiência estética decorrente da interação com processos interativos, ainda que irredutível à infraestrutura técnica ou especificidade dos suportes, é um aspecto significativo na arte contemporânea (Fatorrelli, 2013, p. 147). Em suas manifestações híbridas, decorrentes da miscigenação entre linguagens que propõem fricções, sobreposições e atravessamentos entre a fotografia, o cinema, o vídeo, e a imagem digital, suscitam novas dinâmicas interativas e, portanto, novas possibilidades de relações entre o corpo e as narrativas que a obra de arte enseja. A concretização das narrativas, decorrentes desses encontros, propicia a vivência de experiências, muito particulares, porque carregadas de valor estético, que dão azo a julgamentos criativos, a que Fatorelli (2013, p.138) vão referir-se como indeterminados, que ocorrem desencadeados pelos processos emocionais e afetivos, abrindo um hiato entre a percepção e a ação, quando o corpo abre a sua margem de indeterminação, deixando à mostra seu papel criativo.

Estabelece-se, nesse momento, uma relação singular com o virtual, com as outras imagens mentais e materiais…

A condição de indiscernibilidade entre o atual e o virtual dissolve as verdades constituídas sob o regime das oposições dualistas, de modo a colocar em questão as formulações difundidas pela opinião corrente. Trata-se, sobretudo, de desviar-se dos automatismos perceptivos e psíquicos de modo de a, uma vez considerado o corpo e suas instâncias afectivas, conceber a condições de acesso a circuitos mais complexos (Fatorelli, 2013; p,139).

Para Gazzaniga (2011, p.124), são os fenômenos do complexo que podem explicar o aspecto criativo e indeterminado a que se refere Fatorelli. Tais processos, podem ser vistos a partir do que nos estudos da complexidade se convencionou chamar de princípio forte da emergência. Tal princípio descreve que uma nova propriedade de uma rede neural, que pode ser um significado ou um padrão comportamental, é uma emergência, e, como tal, é inerentemente imprevisível. Considerando que o inconsciente é autônomo em sua processualidade, podemos compreender que os hábitos automáticos, a que se refere Fatorelli, são inconscientes. Contudo, ao emergirem na consciência como sentimentos de emoção, e, portanto, emergindo como parte da experiência consciente (e, portanto, racional), passam a integrar os processos de avaliação e produção de significado. Integram a experiência consciente elementos como linguagem, memória, atenção, antecipação. É importante estabelecer uma definição de consciência, para isso, podemos nos valer daquela oferecida por Damásio, que descreve como consciência a habilidade que consiste em possuir uma mente equipada com um proprietário, um protagonista de sua existência, um self inspecionando dentro e ao redor, um agente aparentemente pronto para a ação (Damásio, 2010, p. 12).

Outro aspecto que merece ser sublinhada aqui se refere à questão da emergência na consciência, processos emocionais oriundos do inconsciente. Nesse sentido, a consciência pode ser vista como um filtro de alta complexidade, que permite ao indivíduo enfrentar a novas situações, para as quais mecanismos automatizados no inconsciente, prescrições comportamentais já bem estabelecidas, são inadequadas ou insuficientes. É nesse momento em que emoções, como padrões de ação inconsciente, tornam-se imagens corpóreas constituindo-se cenário para julgamentos e avaliações complexas (Damásio, 2010). Note-se que se considera aqui a inexorável influência de aspectos inconscientes, irracionais, sobre a ação consciente racional.

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Linguagem e a nova racionalidade

A relação que existe entre inconsciente e consciência é da maior importância neste estudo. Romano, ao refletir sobre a racionalidade, reflete que enquanto que a virada linguística tenha importantes méritos, não tornou a filosofia da experiência supérflua e não pôde lançar nenhuma luz definitiva sobre a relação entre experiência e linguagem. Para o autor, existe uma autonomia de ordem pré-linguística, de experiência predicativa em relação a formas mais elevadas do pensamento e a linguagem.

Experiência possui um logos imanente, e é precisamente este logos que a fenomenologia pretende trazer à luz. Além disso, a linguagem por si somente, se torna plenamente compreensível uma vez que foi re-situada na sua relação a uma inteligência pré-linguística – parte essencial de nosso estar no mundo - que constitui o seu solo, o seu terreno germinativo (Romano, 2015, pg. xi).

A inteligência da linguagem está em continuidade próxima com a inteligência pré-linguística inerente na nossa experiência do mundo, de nós mesmos e dos outros. Por este motivo é que Romano considera que a linguagem não pode constituir o organon metodológico principal da filosofia. Se a linguagem prolonga e modifica uma inteligência pré-linguística, aqui considerada como uma inteligência inconsciente, a virada linguística não pode ser outra coisa que não um impasse (Romano, 2015, xi).

A hipótese de Romano ir ao encontro das ideias de Feldman (2006) quando apresenta a teoria Neural da Linguagem e considera a experiência subjetiva como a base a partir das quais palavras técnicas, abstratas, e conceitos surgem. Aqui também neurônios e corpo são centrais nesse processo: pessoas, e seus sistemas neurais, compreendem ideias abstratas porque esses conceitos são mapeados e ativados inconscientemente em circuitos cerebrais envolvidos na produção de significado dessa experiência.

Feldman, ao considerar a base neural para a linguagem, busca na experiência subjetiva a ideia de que a linguagem se origina na experiência concreta, sensória. Para o autor: “O pensamento é estruturado na atividade neural” e que a linguagem “é inextricável ao pensamento e à experiência” (Feldman, 2006; p.3).

Pragmatismo e experiência

Solimosy (2013) considera que o pragmatismo tem muito a oferecer para os cientistas no seu entendimento sobe as origens e a natureza da experiência, mente e consciência sob a luz das ideias darwinianas. É nesta confluência entre filosofia e ciência que nos conduz a filósofos como John Dewey, William James, Charles Sandres Pierce para os quais o pragmatismo oferece uma filosofia responsável empiricamente, cientificamente múltipla e criticamente construída (Solymosi 2013, pg. 263). A abordagem pragmatista reconhece a profunda continuidade entre mente e natureza. Essa continuidade talvez possa ser considerada como resultado dos processos de auto-organização e emergência. Tal perspectiva dá corpo ao naturalismo, uma perspectiva pragmatista, segundo a qual não há um gap metafísico ou supranatural entre nós e nosso universo. Tal abordagem contradiz a ideia de dualidade cartesiana entre corpo e mente abrindo novos caminhos para a subjetividade. A experiência entendida como um processo passivo, por meio do qual o indivíduo experimenta a realidade através de uma tela interior, a que Dennet denominou de Teatro Cartesiano que Dewey descarta. Na perspectiva naturalista, a mente opera num processo evolutivo de contínuo ajustamento do organismo em contato direto, pela via dos sentidos e, interativamente, com o ambiente. Esse ajustamento se desenvolve produzindo modificações do próprio organismo para melhor adaptar-se ao ambiente ou alterá-lo para dar-lhe melhores condições de suporte. A experiência para Dewey era a interação ou transação entre organismo e ambiente. Essa interação se dá por procedimentos de experimentação e familiarização, tornando o organismo apto para enfrentar as demandas e as pressões a que está submetido.

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As formas de interação advêm de aprendizados tanto de ordem genética quanto social. Aquelas de ordem genética relacionam-se com uma cadeia em que se pode ver enfileirados padrões de mecanismos genéticos, que interagem com mecanismos celulares que interagem entre si para operar a células, as quais interagem com outras células do seu tipo para operar tecidos, os quais operam órgãos que operam sistemas orgânicos que operam o corpo. Tais processos operam de forma autônoma estritamente ao nível biológico.

No contexto social, a comunicação entre os indivíduos ocorre para dar solução a problemas e necessidades sem ter de esperar por mutações genéticas. O compartilhamento decorrente dos processos comunicacionais decorre de interações entre múltiplos indivíduos através do verbal e das histórias escritas (Solymosi 2013, pg. 270). Importante considerarmos que essas histórias ficcionais ou objetivas de fatos e fenômenos da natureza ou psicossociais fazem parte de uma perspectiva pragmática da mente.

Neuroestética, novos rumos na reflexão sobre o papel da arte

A reflexão sobre a Arte tem, em anos recentes, tido importantes contribuições que tem transformado rápida e significativamente seu cenário conceitual. Talvez as mais impactantes sejam aquelas oriundas do campo científico. A utilização do imageamento da ressonância magnética funcional (fMRI)Functional Magnetic Resonance Imaging (fMRI). , tornou possível a visualização das dinâmicas nos processamentos cerebrais, abrindo caminho para que novas hipóteses e considerações pudessem ser testadas e estabelecidas. Tais contribuições parecem trazer alternativas para iluminar questões que acompanham a evolução do pensamento ocidental sobre a Arte e a experiência estética ao longo de muitos séculos.

O resultado das pesquisas de Ishizu e Zeki (2011), é um exemplo emblemático de contribuição científica desencadeadora de grandes mudanças no cenário que envolve a relação Arte e Ciência na reflexão sobre a Estética. Nesse trabalho, os autores apresentam a proposta para uma teoria da beleza partindo de estudos neurológicos. Nesse estudo, é apresentada uma definição da beleza, com base nas dinâmicas neurocerebrais, que permitem um grande avanço em muitos aspectos sobre a experiência estética, esclarecendo dúvidas e resolvendo impasses conceituais seculares.

Nesse estudo, a atividade cortical de diversos indivíduos foi analisada enquanto eram expostos a estímulos sensoriais auditivos e visuais produzidos por músicas e imagens. Aos indivíduos solicitou-se que estabelecessem uma avaliação sobre os estímulos em termos de sua beleza ou feiura. Essas avaliações subjetivas foram cotejadas com as medidas das atividades corticais correspondentes. Percebeu-se grande correlação entre a atividade de uma região localizada no córtex medial órbito frontal (mOFC) e as avaliações positivas, relacionadas à experiência consciente da beleza.

Os resultados desse trabalho científico ainda deverão ser muito discutidos tanto no campo da neuroestética quanto nos campos que classicamente estudam o assunto. Contudo, é possível, ainda que preliminarmente, elencar algumas consequências interessantes para a discussão aqui pretendida.

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A primeira, e mais importante, é que deve existir uma conexão no processamento cortical que conecte emoções, processos de valoração, desejo, beleza a julgamentos positivos como recompensa e prazer (Ishizu e Zeki, 2011: pag 7). Existe uma importante correlação da ativação do mOFC com a ativação de outras áreas corticais (núcleo caudado) que, em estudos anteriores, foram correlacionados à resposta cortical ao amor romântico. Tais constatações indicam que deve haver especializações no cérebro para a elaboração da experiência da beleza e da feiura. Constatou-se que feiura é tratada diferenciadamente de forma mais confinada na amígdala e córtex somato motor, enquanto que a beleza, como vimos, recruta um número maior de córtices cerebrais. Se considerarmos a contribuição de Damásio sobre as dinâmicas neurais sobre a evocação das memórias formadas nas experiências, veremos o quão significativo é este fato:

Suspeito que as imagens mentais explícitas que evocamos, surgem da ativação sincrônica e transitória de padrões de disparo neural que, em larga medida, ocorrem nos mesmos córtices sensoriais iniciais onde os padrões de disparo correspondentes às representações perceptivas ocorreram outrora (Damásio, 1994. p. 128).

A experiência estética potencializa a expansão, o pensamento criativo, a inovação. Isto porque novas experiências serão julgadas num contexto mnemônico mais amplo e diverso, quando forem confrontadas por memórias organizadas a partir de eventos armazenados num contexto emocionalmente positivo. Este fato é ainda mais significativo quando nos lembrarmos de que a maior parte do julgamento do que experienciamos depende de memórias de experiências anteriores (Solso, 1994: pp. 27-49). É por este motivo que a definição de Brown e Dissanayake (2009) de artificação é tão oportuna quando afirmam tratar-se de uma tendência do ser humano de “tornar o ordinário extraordinário”. Vemos nessa definição desconcertantemente simples o motor da própria cultura, em que as emoções positivas presentes nas mais diversas atividades do cotidiano no contexto da ratificação, promovem uma contínua expansão de significados e complexificação de padrões de ação (tomada de decisão) e dos modelos de realidade (Fogliano e Oliveira, 2016).

Outra consequência importante é a constatação de que a experiência do belo é absolutamente subjetiva, embora seja universal o fato de que a ativação do mOFC ocorra em qualquer indivíduo, independentemente de etnia, cultura ou raça. Contudo, é muito importante considerar que a cultura é a arena de atuação do indivíduo no seu meio ambiente e constitui um filtro poderoso na construção de experiências estéticas e de sua consciência. Em outras palavras, a resposta emocional do indivíduo depende de sua ontogênese. Esse fato parece estar na mente dos autores quando mencionam indivíduos que acham rock and roll mais “recompensador” do que a obra de Richard Wagner (Ishizu e Zeki, 2011: pag 9).

Artificação e Pós-Modernidade

O conceito de artificação, apresentado por Brown e Dissanayake (2009), parece em sintonia com as propostas presentes na mudança paradigmática pós-modernista descrita por Best e Kellner (1997). Talvez possa-se considerar a necessidade pelo estabelecimento de novos valores universais subjacentes à visão pós-moderna capazes de substituir algumas “perniciosas ideologias”, tais como: “individualismo, antropocentrismo, nacionalismo, patriarquia, economismo, consumismo e militarismo, de forma a propiciar suporte para a ecologia, paz, feminismo e todos os movimentos de emancipação, inclusive aqueles da própria modernidade” (idem, p. 242).

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A busca pelo estabelecimento de uma síntese criativa das ideias pré-modernas, modernas e pós-modernas aponta inequivocamente para esse processo inclusivo. Considerar a arte na cultura humana deve implicar na consideração de aspectos determinantes em quaisquer dos períodos de nossa história. Compreender a questão da estética, portanto, implica considerar uma perspectiva capaz de incluir muito além daqueles pontos de vista que caracterizam a perspectiva eurocêntrica do século XVIII. Essa abordagem vai ao encontro do relaxamento das fronteiras entre o conhecimento científico e o “conhecimento” não científico de forma a incorporar outros campos do conhecimento e valores nas ciências, envolvendo uma nova unidade entre as instituições científicas, éticas, estéticas e religiosas proposto por aqueles autores (Best e Kellner, p.242).

Considerações finais

Vimos acima a questão da subjetividade deslocando a visão objetiva do centro da produção de sentido e nexos com o mundo. Cabe considerar agora que essa subjetividade inclui o inconsciente, ou seja, nossa compreensão do mundo situa-se para além da racionalidade. Aspectos como emoção e afeto são fundamentais na produção criativa de nossas realidades. A importância da ação do inconsciente na construção da experiência consciente, da qual depende nossa capacidade de interagir com o ambiente ao nosso redor depende fundamentalmente dos mecanismos subjacentes às percepções de estados emocionais inconscientes, aos quais Damásio denominou sentimentos. Estes emergem no pensamento consciente, pela influência das emoções, e constituem os fundamentos da consciência humana.

Até recentemente, a emoção não era tipicamente considerada nos esforços para compreender mecanismos cognitivos, como a memória. No entanto, tornou-se cada vez mais claro que já não pode negligenciá-la, ao contrário, devemos considerar que, de fato, a emoção raramente está ausente de nossas funções diárias na construção das memórias episódicas (Phelps, 2004). Relacionar experiência, emoção e memória é vital para que se possa compreender como construímos nosso repertório de ações, nossa identidade e a própria realidade. Contudo, são as memórias construídas em cenários emocionalmente positivos, decorrentes das experiências estéticas, que proporcionam maior diversidade no julgamento de novas experiências, oferecendo um espectro mais amplo de possibilidades para avaliação e tomada de decisão.

Por esta razão, a estética presente na produção no campo da arte, e de forma mais abrangente nos processos de artificação, constitui o fundamento a partir do qual se pode considerar a expansão do indivíduo, da sociedade e a cultura na qual esta inserido.

Quando se considera a linguagem, a experiência estética pode ser entendida como uma estratégia capaz de permitir o entendimento de um tipo de experiência em termos de outras, criando coerências estruturadas pelas dimensões naturais da experiência. Novas metáforas são capazes de produzir novos entendimentos e, portanto, novas realidades. Para Lakoff e Johnson (pg.235), a metáfora envolve tanto a linguagem quanto todas as dimensões sensoriais da experiência, em outras palavras, outras formas de linguagem. E, é claro, e não está limitada ao mundo da arte somente, podendo ocorrer em qualquer aspecto de nossa vida diária, sempre que notarmos ou criarmos, para nós mesmos, novas coerências que não pertençam ao nosso modo de percepção ou pensamento.

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A linguagem também serve a outro aspecto de nossa existência, o social. Para Damásio (2010. loc. 4476), a linguagem serve a mecanismos de produção homeostática em dois níveis: aquele do indivíduo, o nível biológico; e aquele do nível social, que ele denomina de homeostase sociocultural. Armados da reflexão consciente, organismos cujo design evolutivo foi centrado em torno da regulação e tendência em direção ao equilíbrio homeostático, engendraram a emergência de formas de articulação intersubjetiva que envolvem ações capazes de organizar a ação dos agentes num grupo nos mais diversos contextos. Essas ações envolvem, por exemplo:

Consolar aos que sofrem, recompensar àqueles que socorreram os sofredores, injunções ao que causaram mal, normas de comportamento orientadas a prevenir o mal e promover o bem, e uma mistura de punições e prevenções, penalidades e louvores (idem).

O problema de como fazer essa sabedoria compreensível, transmissível, persuasiva, obrigatória foi solucionada, segundo Damásio, com as narrativas.

Não deveria ser surpresa que elas pervadem todo o tecido das sociedades humanas e culturas. Também não deveria ser surpresa que as narrativas socioculturais emprestaram sua autoridade de seres mitológicos mais fortes e poderosos que os humanos, seres cuja existência explicou todas as formas de predicados e cuja atividade teve a capacidade de oferecer apoio e modificar o futuro […] Indivíduos e grupos cujos cérebros os tornou capazes de inventar, ou utilizar, tais narrativas para melhorá-los e as sociedades nas quais viveram tornando-os bem-sucedidos o suficiente para que os traços daqueles cérebros fossem selecionados, individualmente e aos seus grupos, e para que sua frequência aumentasse ao longo de gerações (Damásio, 2010. loc. 4490).

As narrativas que, das mais variadas maneiras, recrutam os mais diversificados limites da experiência engendrados e concretizados com o auxílio das diversas linguagens inventadas ao longo de mais de 30 mil anos de cultura, constituem a estratégia a partir da qual fomos capazes de criar a arte, o design, enfim, a cultura em toda sua diversidade, para encorajar a cooperação no apoio aos empreendimentos coletivos, como a caça, produção de alimentos, resistir aos inimigos, construir infraestruturas, etc. Essas atividades são mais bem compreendidas se situadas numa classe de comportamentos que incluem a produção de arte, a educação, o design, que aqui tratamos como Artificação (Brown e Dissanayake, 2009). Através da artificação, tornamo-nos extremamente adaptáveis na concatenação dos esforços de organização das ações coletivas, fomos capazes de construir consensos e realidades diversificadas e complexas que caracterizam a sociedade humana.

Comportamentos artificados, como comportamentos ritualizados, atraem a atenção, mantém o interesse, e dão forma a emoção. De fato, mesmo quando não são arte, as preferências investigadas pela estética evolutiva e a neuroestética são muitas vezes artificadas ou utilizam artificações, como quando cores e formas atraentes enfatizam ou reforçam um objeto, evento ou mensagem.

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Neste ponto, é importante considerar de que não se trata somente de ponderarmos sobre o papel da emoção no indivíduo. O afeto, como resultado da reverberação emocional intersubjetiva, é outro aspecto fundamental no entendimento da produção de consensos, valores sociais que levam ao estabelecimento de hábitos, perspectivas da realidade profundamente enraizadas no inconsciente. A partir das reflexões realizadas até aqui, poderíamos incluir mais um conceito ao rol de universais pós-modernos mencionados anteriormente: artificação. Contudo, não podemos nos esquecer de que os drivers internos aos processos de artificação são a emoção, ao nível do indivíduo; e o afeto, considerado o âmbito social de sua existência.

A espécie humana depende fundamentalmente dos comportamentos emocionais e afetivos de artificação para construir suas sociedades e relações com a natureza. Como consequência, a artificação é importante em campos da atividade humana, situados para além da arte. Envolvem toda a sorte de narrativas, as quais dão forma as realidades nos mais variados contextos de nossa existência incluindo nossas relações sociais, políticas e com a natureza. A experiência estética constitui cerne desse comportamento, que permite a expansão criativa da consciência e da inteligência, integra racionalidade e emoção, integrar-nos a nós mesmos, aos nossos semelhantes, as demais formas de vida, expandindo o envelope de nossas realidades.

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