As concepções contemporâneas sobre Redes Sociais e Web 2.0 estão atreladas a pressupostos éticos e filosóficos, preconizando que, em um nível global, as relações humanas buscam desenvolver uma comunidade e que a comunicação é parte da força motriz da natureza humana. A conjectura mais aceita atualmente é a de que a internet servirá cada vez mais para aproximar pessoas como pontos conectados em uma rede e continuará em sua trajetória ao se tornar exemplo de socialcasting (transmissão social de conteúdo de muitos para muitos) e não broadcasting (transmissão de conteúdo de um para muitos) como os meios de massa que a antecederam. O contexto da rede é o da globalização e da evolução das tecnologias que, segundo Castells (1999), resultam em uma atualizada configuração social, ao que o autor chama de Sociedade em Rede.
As tecnologias mais novas de comunicação e a informação ascendem exponencialmente assim como o capitalismo. Esse novo contexto aponta também para novos processos sensoriais e de cognição. A internet modifica as formas de sociabilidade, é verdade, mas também é essa possibilidade de comunicação de todos para todos, essa inversão do polo tradicional de emissão que potencializa a memória como arquivo binário e desfaz barreiras de tempo e espaço, reconfigurando práticas sociais, de cultura e de consumo.
Uma das principais transformações ocorridas e que pavimentaram o caminho para esse contexto foi o hibridismo, conceito que abrange a mistura de culturas, linguagens, e convergência de mídias e outras combinações até então improváveis. Sobre a mistura de autor e leitor, conceito tão importante para o terreno estudado neste artigo, Santaella (2010, p. 93) chama a atenção para o papel fundamental desempenhado por aquele que aciona e interage com as múltiplas interfaces, “cooperando na sua realização”. Trata-se do receptor ou leitor imersivo, o interator “sem o qual a hipermídia não se realiza” (ibid., p. 92).
O contexto fica mais completamente mapeado quando se entende que escritores de fanfictions estão criando suas próprias realidades, moldando seus próprios universos ficcionais baseados em suas interpretações e reinterpretações do texto original, e que leitores e produtores desse conteúdo interagem uns com os outros. A criação se dá de modo a expandir a conversa e a experiência criativa dentro de uma específica comunidade cultural online, usando um universo ficcional com o qual eles já estão familiarizados e que foi criado por outrem, mas o qual, através de um processo de apropriação, passa a pertencer-lhes, mesmo que não falando legalmente, apenas emocionalmente.
Uma vez compreendido o propósito da produção do fanfic, é necessário também investigar a organização dessa produção em forma de comunidade online. A busca pelo pertencimento em âmbito coletivo, outrora exercida através da cidadania, das doutrinas religiosas ou outras grandes instituições consideradas modernas, deu lugar a uma busca por pertencimento diferente, realizada principalmente através do consumo. A tendência de formação de comunidades geradas a partir de interesses em comum não é absolutamente nova e a própria noção de clubes ou associações são parte dela, mas foi a rede que possibilitou o aceleramento do surgimento e crescimento de comunidades como a NYAH!, já que a rede tem características colaborativas, democráticas e aglutinadoras, todas potencializadas e aceleradas pelo contexto de redes.
98Santaella (2013) aponta uma reorganização de paradigmas herdados da era de Gutenberg para a literatura, explicando que, mediante as mídias digitais, a configuração da literatura como um todo sofreu e sofre um salto qualitativo em muitos de seus aspectos, envolvendo a instância autoral, a leitora, o contexto, o canal, o referente e o código, além do próprio discurso ou construção textual ou hipertextual. A comunidade estudada é um exemplo ilustrativo preciso da redefinição de paradigmas citada.
O próprio estudo do assunto representa uma nova trilha na trajetória dos estudos de cultura que não mais enxergam produtos da Indústria Cultural sob um prisma negativo nem seus fãs como seres desprovidos de racionalidade e criticidade. Uma vez relativizado o arcabouço dos postulados da Escola de Frankfurt em relação à produção de conhecimento dos Estudos Culturais, dos quais Stuart Hall é um dos exponentes, é possível romper com o modelo que determina efeitos diretos dos meios de comunicação (principalmente de massa) sob seus receptores, desconsiderando o papel do receptor na construção do sentido da obra.
Nesse novo caminho, os receptores são mais participativos, mais ativos na construção do sentido e formam uma poderosa comunidade interpretativa (KAPLAN, 2006) que acaba se misturando ao circuito da cultura numa nova forma de produção cultural. Também foi Hall que defendeu a multiplicidade da construção de sentido. Agregando um número grande de características no outrora visto como simples ato de emissão e recepção, esse autor (1997) requalificou o processo de codificação e decodificação, especificando que, dependendo do contexto físico ou cultural da emissão e recepção (codificação), assim como a educação, gênero, ética, papel na sociedade e outras características do receptor, a decodificação pode ser múltipla, única para cada combinação contextual. Além disso, o autor reforça que o conceito de ruído desempenha até hoje um papel considerável na significação final, colocando o próprio aparato técnico e cognitivo como parte da equação do contexto de recepção. O esquema segue representado no gráfico:

1. A expansão do universo ficcional
A visão de Hall (ibid.) considera então todos os aspectos do contexto de recepção, o que resulta em inúmeras possibilidades de construção de sentido a partir de um mesmo produto cultural. Serão essas diferenças que motivarão a expansão do universo ficcional também no sentido de reverberação consonante, mas principalmente como transgressão das regras originais daquele universo ficcional, já que, para alguns receptores, tais regras intencionalmente codificadas pelo emissor não são interpretadas como tais ou o são, mas não representam um cânone a ser seguido na criação de fanfic. Em outras palavras, a primeira distinção a ser feita entre as diferentes narrativas criadas por fãs partirão de como cada autor recebeu e significou a narrativa de origem, nesse caso o seriado de televisão.
O fanfic acaba funcionando principalmente de duas maneiras: de forma a reverberar o sentido, de forma consonante, ou também transgredindo o sentido original proposto pelo criador do conteúdo. E é em meio a pelo menos duas formas de expansão do universo original que os fãs escritores de fanfiction constroem o que Thompson (1998) considera uma sociedade complexa.
99A observação das tags que, criadas e utilizadas pelos autores que classificam suas obras dentro da comunidade, servem de topografia para o leitor que descobre se está entrando em uma obra que transgride ou reverbera a original. Por exemplo, ao classificar uma obra como Canon, o autor determina que sua história segue os acontecimentos da história original, seus personagens e cronologia ao passo que histórias classificadas como AU (do inglês Alternative Universe – Universo Alternativo) ou AR (do inglês Alternative Reality – Realidade Alternativa) codificam uma narrativa que, de alguma maneira, rompem com a narrativa original
É uma comunidade complexa não só por esse tipo de classificação, mas também por ser provida de códigos como os citados e regras interacionais, diversas formas de experiências possíveis, relações de poder e intricada hierarquia de popularidade que contrapõe a forma horizontal da produção e distribuição do conteúdo. A comunidade se origina principalmente de produtos da cultura de massa (livros, quadrinhos, filmes, jogos e, no caso desse estudo, seriados de televisão cujo público-alvo são adolescentes) e passa a incorporar expressões artísticas de várias naturezas produzidas por fãs, mas principalmente narrativas ficcionais em forma de texto.
Como parte da pesquisa empírica realizada, foi possível observar também que a própria comunidade de fãs se identifica como tal e se separa de fãs de outros produtos de cultura de massa usando a terminologia fandom. Eles mesmos se separam ou agrupam dentro da comunidade em grupos de interesse: o fandom de Harry Potter, o fandom de Teen Wolf, o fandom de Sherlock Holmes. Mais do que identificados como tais, os jovens leitores e produtores estão cientes do que o universo dos fanfictions significa dentro do contexto da produção cultural de massa.
2. A Produção coletiva de sentido através de fanfics
No contexto atual da rede, conteúdos culturais podem ser rapidamente criados, compartilhados, consumidos e reconstruídos ou remixados. A democratização das ferramentas de produção, como anteviu Anderson (2006) trouxe um fluxo de informação constante, circulando por múltiplas plataformas e envolvendo diferentes indústrias, o que naturalizou os conceitos de Narrativas Transmídia e Cultura Participativa, cunhados por Henry Jenkins. O autor (2006) já havia pautado a Cultura Participativa no âmbito dos seriados de televisão e definiu, nos anos 1990, os fãs de seriados de TV como pioneiros do desenvolvimento da Cultura Participativa. Os fãs de Star Trek especificamente engendravam uma construção social através da cultura do fanfic, já que as histórias serviam principalmente ao propósito de expandir o universo ficcional e o diálogo entre fãs assim como desenvolver um senso de comunidade
A cultura de fã veio produzir conteúdo para aqueles aficionados ávidos por conteúdos em novas plataformas, o que, segundo o autor, foi embrião das Narrativas Transmídia. Anos mais tarde, o autor reforçou a importância de estudos sobre mudanças nas formas de consumo de bens culturais que aconteceu nas últimas décadas, e questionou o lugar do poder da produção, o que Hall vai tratar como codificação dominante:
100A expressão cultura participativa contrasta com noções mais antigas sobre passividade dos espectadores dos meios de comunicação. Em vez de falar sobre produtores e consumidores de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como participantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo. Nem todos os participantes são criados iguais. Corporações - e mesmo indivíduos dentro das corporações de mídia – ainda exercem maior poder do que qualquer consumidor individual, ou mesmo um conjunto de consumidores. (JENKINS, 2006, p.30)
Este artigo propõe primeiramente uma reflexão sobre as formas de apropriação e recepção de seriados de ficção fantástica adolescentes, oferecidos pela indústria de massa, a partir da análise da comunidade de fanfictions NYAH! e sua produção e estrutura organizacional de comunidade. Fanfictions, não custa repetir, são “histórias escritas por fãs envolvendo cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidos pelo autor original, sem que exista intuito de quebra de direitos autorais ou de lucros envolvidos nessa prática” (RÖSING E VARGAS, p. 46).
A menção do conceito de Rösing e Vargas se faz necessária principalmente em função da questão dos direitos autorais que pauta a arqueologia da prática, já que a origem do fanfiction é marcada por alguns autores como sendo oriunda do século XVIII, quando histórias eram criadas utilizando personagens de outros autores já célebres. Com a criação das leis de direitos autorais elas desaparecem, ou melhor, são levadas ao universo obscuro da ilegalidade (por mais inofensivas que fossem) e reemergem no final dos anos de 1960, com a publicação de fanzines dedicados a produções ligadas a ficção seriada (PUGH, 2005). Derecho (2006) lança um olhar que aproxima a cultura de fãs e os fanfictions como um fenômeno propulsionado por grupos que escreviam histórias dentro do universo de Jane Austen, Sir Arthur Conan Doyle (autor de Sherlock Holmes) ainda na década de 1920, assim como os fanzines de Star Trek do fim da década de 1970. A construção da NYAH! como comunidade online e a vasta produção baseada em seriados adolescentes de ficção fantásticas, como Teen Wolf, Lost Girl e Vampire Diaries é, portanto, um desdobramento mais recente de um mesmo fenômeno.
Isso quer dizer que o contexto contemporâneo já explanado não fomentou a produção de fãs sobre textos originais, já que a origem da prática é antiga e outros estudiosos dedicados possivelmente descobririam evidenciais de tais práticas datadas como mais antigas do que o século XVIII. Foi o contexto atual e a faceta social da internet que multiplicou as possibilidades de tal prática, de maneira que o site americano Fanfiction.net, por exemplo, possui não milhares, mas milhões de usuários cadastrados e narrativas publicadas em dezenas de idiomas, o que prova que o fenômeno é global. Os laços do recente fenômeno com a nova era da Indústria Cultural a partir da reprodutibilidade técnica e de uma transformação nas formas de apropriação de bens culturais é evidente.
Anderson (2006) mapeia uma nova arquitetura da circulação de produtos culturais e coloca a democratização das ferramentas de produção como um dos pilares dessa nova configuração. O texto escrito lidera esse novo cenário de produção. Por não depender de numeroso ou complexo aparato (além da língua) é a produção textual, principalmente, sob a forma de narrativa ficcional, que está nos holofotes. É por isso que o texto é o formato mais comum também entre os fanfics, mesmo que a narrativa de origem seja apresentada em quadrinhos, cinema ou televisão.
1013. Gêneros e seriados
A escolha dos seriados de ficção fantástica (ou fantasia) se deu principalmente pelo sucesso do gênero entre o público adolescente desde os anos 1990, quando o canal americano Warner, hoje renomeado de CW, garantiu uma posição sólida em termos de audiência ao produzir seriados pensados e exibidos para o público adolescente. A era começou com Buffy, a Caça-Vampiros e o gênero se tornou popular ao ponto de o próprio canal emplacar outros sucessos como Charmed, Smallville, Supernatural e Vampire Diaries e outras emissoras com o mesmo target, como a MTV ou a canadense Showcase, exibir séries como Teen Wolf e Lost Girl, respectivamente.
A escolha do gênero fantástico como recorte -- que mistura ficção científica e fantasia -- se deu principalmente devido ao grande apelo do gênero entre os adolescentes. Mais do que isso: números de histórias publicadas nessas comunidades apontam que tais séries, por serem feitas para o público adolescente e pelos elementos fantásticos de fácil assimilação metafórica, parecem motivar mais a produção de fanfics do que outras, cujo universo é ficcionalmente verossímil e cuja narrativa é pensada (codificada) para adultos. Ao discutir vida alienígena, o sobrenatural, anjos e demônios, o robótico, teorias político-sociais, guerra e paz e até papéis de gênero, as séries de temas fantásticos (fantasia ou ficção científica, já que a fronteira entre os dois é tênue) colocam em seu cerne a discussão sobre a identidade do ser humano. A identidade, o certo e o errado e relacionamentos afetivos são temas recorrentes de fanfictions das séries e quase sempre dão vazão a dúvidas, anseios e valores dos autores jovens que os produzem.
O gênero agrega tantos elementos narrativos que servem como metáforas para desafios e conflitos típicos da adolescência que podem ser livremente interpretados de acordo com o contexto cultural, de gênero e todos aqueles outros contextos citados por Hall em seu modelo de codificação/decodificação. O próprio sucesso da temática vampira entre adolescentes pode começar a ser justificado por ele servir a inúmeras metáforas que vão de sexualidade a mortalidade, passando pela natureza dicotômica do ser humano e tantas outras. Cada fanfiction produzido retratará uma significação diferente sobre a criatura que se alimenta de sangue podendo ou não estar em afinidade com a intenção de codificação do emissor.
A cultura adolescente, principalmente na América do Norte, já conta com um imaginário bem estabelecido costurado por uma indústria do entretenimento experiente. Seriados como The Vampire Diaries e The Originals, por exemplo, são produzidos por uma produtora (Alloy Entertainment) que produz filmes, séries e publica livros para o público adolescente. Enquanto alguns conglomerados da mídia ainda encontram dificuldade em encontrar a chave do sucesso para narrativas transmídia, produtoras como a citada e o público adolescente navega por múltiplas plataformas e por uma cultura de fã de engajamento ímpar, encontrando sucesso financeiro por parte da indústria e aconchego emocional por parte do público jovem ao encontrar produtos com os quais se identificam. Sem estudos concretos que apontem a intencionalidade dos primeiros produtores do gênero fantástico para adolescentes na televisão, como Buffy, nos resta a crença de que pelo menos os produtos seguintes foram construídos no sedimentado sucesso do gênero entre os jovens e na fundamentada eficácia de tais metáforas mediante o público e seus conflitos típicos da adolescência.
102A escolha da televisão como mídia de referência para os fanfics estudados, por sua vez, foi feita por dois motivos: primeiro pelo momento de segmentação extrema dos produtos televisivos, havendo canais de televisão, programação e programas (na TV aberta e paga), produzidos para um público alvo cada vez mais específico, levando em consideração faixa etária, gênero e até grupos de comportamento. O segundo motivo é o aspecto da duração da ficção seriada na televisão. Podendo ir de dois ou três anos até uma década inteira, o corte do contexto temporal de Teen Wolf, por exemplo, atualmente com seu quinto ano em produção, combina contexto cultural da época e o do adolescer como verbo para o jovem telespectador do seriado engajado na produção ou leitura de fanfics.
O conceito de circuito cultural, proposto por Paul du Gay et al (defendido por Hall na publicação editada por ele de 1997), o círculo entrelaçado de representação, regulação, identidade, produção e consumo, definindo cultura dentro do contexto da comunidade de fanfic é aplicável principalmente por não negligenciar nenhum aspecto da cultura e um de seus produtos, servindo objetivamente como cartografia para a análise do objeto.

O modelo foi proposto por Paul du Gay et al na obra: Doing cultural studies: The history of the Sony Walkman. No modelo, o circuito da cultura foi utilizado como um circuito analítico de pesquisa para entender a relação entre o consumo e a identidade dos consumidores do Walkman Sony, identificando cinco instâncias culturais (representação, identidade, produção, consumo e regulação) que permitem a realização de uma análise de cada um desses níveis, sem predeterminar como essas relações são constituídas. Como mostra a Figura 2, o circuito da cultura não permite ao pesquisador determinar onde começa e onde termina o circuito, sendo assim, não há uma predeterminação de como se deve iniciá-lo, porém todos os processos de circulação são conectados entre si.
O conceito de identidade de Hall (1997) está ligado ao sentimento de pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e regionais/nacionais. O que Hall chama de identidade nacional nada mais é do que um sistema de representação cultural composta de símbolos e representações que constituem uma identidade. É papel das culturas nacionais produzir sentidos com os quais podemos nos identificar. Esses sentidos estão em histórias, memórias, imagens e todo tipo de referência. Para Hall, a modernidade deu início à fragmentação da identidade, na qual as paisagens de classe, gênero, sexualidade e outras paisagens outrora relevantes não fornecem mais sólidas localizações para os indivíduos que precisam reavaliar seus moldes de identidade. Apesar de atrelado ao conceito de nação quando postulado pelo autor, o conceito de identidade transcende a ideia de nação como país ou território e pode ser aplicado a comunidades e grupos online ou offline.
103Já o conceito de representação envolve a produção de significação que forja elo entre três diferentes ordens das coisas: o mundo das coisas, pessoas, eventos e experiências, o mundo conceitual, mental, e os signos, arranjados em linguagens que significam ou comunicam efeitos. Hall (1997) entra no hall da semiótica e da análise do discurso ao falar em representação, mas é esse conceito base que será útil quando encaixado na engrenagem do circuito cultural. O processo de regulação do circuito da cultura é o lugar onde os sentidos circulam, onde eles são organizados e regulam as práticas sociais, através de normas, regras e convenções pelas quais a vida social sofre interferência sobre o seu ordenamento. Consumo para o autor (1997) se dá quando a audiência decodifica as mensagens. O consumo se dá na medida em que consumidores ativamente criam significados usando produtos culturais em seu cotidiano.
Por fim, mas não em ordem particular já que o circuito funciona em rede, o conceito de produção é definido pela atribuição de significado por parte de criadores de produtos culturais, o qual o autor chama de codificação. Esses produtores produzem narrativas imbuídas de significados dominantes, mesmo que durante o processo de decodificação eles se transformem e se diversifiquem.
Na comunidade de fanfictions, o conceito de identidade já começa a ser moldado a partir do momento da inscrição, uma vez que é a diferença entre aqueles circunscritos e não circunscritos na comunidade que fundamenta tal conceito. A identidade individual e coletiva começa a ser moldada também através dos signos produzidos e utilizados para expressar-se. A apropriação cultural de universos ficcionais está no cerne dessa construção de identidade. A fragmentação da identidade pode se dar também entre a divisão de escritor/autor e leitor ou entre as diferentes preferências por fics de Animes/Mangás (Desenhos animados e quadrinhos japoneses, respectivamente), Cartoons, Filmes, Jogos, Livros, Quadrinhos, Seriados, Novelas ou até de histórias originais. A identidade individual é moldada a partir das ações dentro da rede, enquanto as comunitárias a partir da aglutinação dos usuários por gênero, tipos de histórias ou preferências por reverberações ou transgressões narrativas específicas de universos ficcionais determinados.
A produção pode ser considerada meta-produção, já que o espaço de publicação é horizontal e quase sempre se explica como não oficial, ou produção de fã, o fanfiction. Apesar da popularidade de algumas histórias, todas estão caracterizadas como codificação não dominante, já que a dominante pode ser considerada a da criação original, no caso das séries de TV exibidas semanalmente. O conceito de Hall de atribuição de significado dominante, tão comum no histórico da transmissão massiva de conteúdo, acaba se liquefazendo e perdendo força (não desaparecendo) no contexto da comunidade online. Sim, há o texto original do seriado de televisão como referência, mas não há dominância de um ou outro caminho possível de significação que guiará a produção dos fãs. São múltiplas e variadas as escolhas narrativas dos autores já que assim são as identidades dos membros da comunidade e a forma como usam a produção de narrativas como ferramenta de formação identitária. É natural que a fragmentação, variedade e multiplicidade da produção reflitam o conceito de fragmentação de identidade que, segundo Hall, começou principalmente a partir da modernidade.
104O consumo também se dá em duas instâncias, do universo ficcional exibido na televisão para a produção e consumo das histórias feitas por fãs. É na transposição de uma mídia para outra que está o grande mérito da rede. É natural que a produção reflita uma nova arquitetura de produção cultural, permitindo ao fã que consuma inclusive histórias nas quais universos ficcionais são misturados ao bel-prazer do escritor (ao que a terminologia própria dos criadores de fanfics e da comunidade online sob análise chama de Crossovers e que histórias que misturam os três seriados Teen Wolf, Vampire Diaries e Lost Girl são encontradas). As regras de produção não se modificam apenas no que diz respeito às ferramentas, trata-se de um gozo de liberdade criativa do qual os produtores do produto original/referência não desfrutam já que possuem compromissos e amarras comerciais principalmente guiadas por números de audiência.
A liberdade só não é total para a produção dos fanfics porque a regulamentação dentro da comunidade se dá de maneira sistemática e eficiente, colocando indicações classificatórias em algumas histórias de cunho sexual ou violento, classificando também em gêneros pré-estabelecidos e ranqueando os produtos de acordo com quantidade de leitores, favoritações e recomendações escritas em formas de resenhas. Há também uma seção chamada “Português” que preza pela qualidade da escrita e ortografia da produção de histórias dentro da comunidade, o que não deixa de exercer uma espécie de controle.
Há também uma seção chamada “Regras de Conduta” com uma espécie de folha com seis mandamentos. As regras enaltecem principalmente o comportamento social que respeite a condição horizontal das conexões entre semelhantes na rede e a presença de faixas etárias distintas, evitando, portanto, conteúdo sexual ou violento sem advertência. Há, assim, um composto regulatório que faz da comunidade um grupo gerenciável e a própria presença de um sistema de policiamento, ajustamento e punição reforça o conceito de comunidade no sentido mais amplo e comum da palavra.
As formas de representação são muitas, a expressão dos jovens dentro da comunidade se dá através de histórias ficcionais que traduzem o que foi decodificado por cada um dos escritores, enquanto na ponta da recepção do conteúdo televisivo. O plano das ideias é colocado no espaço delimitado para histórias e dá vazão a todas as possibilidades interpretativas possíveis, assim como preenche lacunas sobre o que não foi exibido na televisão. É mais do que a transformação de uma espécie de subtexto em texto: é uma criação nova alicerçada por um universo ficcional de elementos fantásticos exibidos por um meio que tende a mitificar o que está no seu quadro.
Danesi (1999) cunhou o termo “Mitologização” ao falar do potencial da televisão em montar narrativas mitológicas em seu quadro. É a manipulação de tais narrativas através dos fanfics, porém, que trabalham uma nova forma de representar, de fazer sentido de questões antigas dos mitos antigos e também representar e fazer sentido de questões novas através de novas narrativas míticas. É uma atualização e ao mesmo tempo uma criação de novas mitologias.
105Para os fanfics que têm como referência os três seriados, a atualização de mitos messiânicos, de providência e destino, mitos de renascimento e renovação, mitos de seres superiores e seus descendentes, mitos de tempo e eternidade, de salvadores e heróis e tantos outros são atualizados ou simplesmente reapresentados. Temas como relacionamentos afetivos, familiares e jornadas de superação pessoal também são atualizados e reapresentados. Por outro lado, questões mais latentes do jovem contemporâneo como sexualidade (em todo o seu espectro), identidade de gênero, limites éticos da ciência e a própria confusão em meio a formação de identidade e da descoberta do sujeito acabam permeando as narrativas.
4. Conclusões
A análise observacional da comunidade, que possui uma média de 47 milhões de visualizações mensais, trouxe uma discussão interessante sobre a natureza de ouvinte e contador de história do ser humano. Chamada de Paradigma da Narrativa (Narrative Paradigm) a teoria é uma proposição do filósofo Walter Fisher (1989) e defende que toda comunicação significativa é uma forma de narrativa, de reportagem de eventos, e que os seres humanos vivem a vida e a compreendem como uma série de eventos narrativos ininterruptos. Eventos narrativos munidos de conflitos, personagens, começo, meio e fim. Fisher acredita que as formas de comunicação que mais apelam para a nossa razão são narrativas moldadas pela história, cultura e personagens. Todas as formas de comunicação humana seriam, fundamentalmente, narrativas.
O autor apresenta o ser humano médio como social e, portanto, munido de ferramentas de interpretação narrativa, como os conceitos de espaço, tempo, objetivos, causalidades, probabilidade, fidelidade. O ser humano é, portanto, apto a racionalizar narrativas.
Apoiando-se no postulado de Fisher, é possível observar que, em uma comunidade cujo elemento que une seus indivíduos é a narrativa, tanto fora dela (nos seriados de TV) quanto dentro (nos fanfics), há um grande número de jovens. Ainda não desenvolvidos plenamente, no sentido biológico, social, emocional e educacional, entre outros que tecerão o seu amadurecimento completo, o jovem se vê diante de uma dificuldade em assimilar o mundo a sua volta em outra forma que não a narrativa. Todavia, criados, educados e experientes em narrativas, eles assimilam uma grande quantidade delas em diversas plataformas e escolhem suas plataformas e seus gêneros favoritos, no caso aqui o gênero seriado de ficção fantástica. Serão essas narrativas que os colocarão na posição de ouvintes e, em seguida, de autores, expressando em texto como se deu a produção de sentido para cada um no contexto individual e como produzirão mais sentido através da narração de ficções próprias.
A abstração de conceitos e análise racional de informação parece uma tarefa mais árdua para a maioria da população, ao passo que parece mais comum a apreensão de conceitos e inteligência moldada por uma narrativa, partindo da teoria de Fisher (1989) de que montamos o universo ao nosso redor como um conjunto de narrativas que decidimos recriar para assim fazer sentido das coisas. O jovem busca um sentimento de pertencimento e molda sua identidade através da produção de histórias ficcionais por meio das quais se apropria de um inverso ficcional já existente e reverbera, reforça, reafirma conceitos identitários e representa esses conceitos ou age de maneira completamente transgressora na forma de uma nova narrativa que navega por interpretações individuais que expurgam sentimentos e moldam identidades. Tudo isso ao ponto de construir uma noção de identidade individual ou de representar um coletivo através de suas tais narrativas.
A força catalisadora e identitária da comunidade de fanfictions e seus produtos é notável, mas é a existência, relevância e organização de tais comunidades que apontam para a tendência, como mencionada por Santaella (2013), ao salto qualitativo envolvendo questões de autoria, sobre o leitor, contexto, código e outros conceitos que permeiam o âmbito da comunicação.
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