Presença, vínculos e redes: uma pedagogia da conectividade

Autoras

Izabel Goudart

Izabel Goudart é bacharel em química e doutora pelo programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Fez vários estágios de pesquisa em hacklabs no exterior e no Brasil como pesquisa de campo de seu doutorado. É professora no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Mariana Guimarães

Mariana Guimarães é artista e pesquisadora. Licenciada em artes plásticas pela Escola de Belas Artes da UFRJ é também mestre em artes e design pela PUC – Rio. Atualmente é docente do setor de artes visuais do Colégio de Aplicação da UFRJ. Premiada em 2007 pelo Ministério da Cultura pelo Projeto Retalhos de Memória. Também premiada em 2014 pelo XV Prêmio Arte na Escola – Instituto Arte na Escola, categoria Ensino Fundamental II, com o Projeto Bordadura na Educação.

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1. Do sujeito do conhecimento ao sujeito da ação

A experiência tem sido um norte que vem direcionando e estruturando as práticas dos laboratórios abertos que foram iniciados - como experimento e lugar da experiência, em escolas públicas do Rio de Janeiro, a partir de setembro de 2012; experimento de práticas que ocorrem em um ambiente denominado de laboratório, tal qual em um laboratório de Química. O lugar da experiência se dá no sentido de um ambiente que enfatiza a prática do fazer, buscando uma produção de presença dada na relação espacial com o mundo e seus objetos, com aquilo que pode ser tangível por mãos humanas e, portanto, afetar nossos corpos e ser afetado (GUMBRECHT, 2010). Um ambiente organizado para a produção coletiva e que reclama pelo corpo, um corpo em movimento, em atividade, em relação com outros sujeitos e objetos, um ambiente que ajuda a nos tornarmos atentos, estar presente no presente, isto é, a nos expormos ao que está acontecendo, ao que nos sucede, ao que nos toca, à experiência em si.

A onipresença dos jovens nas redes digitais é uma experiência que nos acontece, nos sucede, nos toca na percepção da relação íntima destes com o dedilhar dos teclados dos dispositivos móveis, em especial, os celulares. Objetos inteligentes que mediam uma conectividade em rede e uma presença conectada. Há nos jovens essa capacidade de habitar múltiplos ambientes com a maior naturalidade, de transitar entre a presença física nas salas de aula e nas redes sociais e chats, conjugando-as. Portanto, é urgente que educadores e a escola estejam atentos e debrucem-se sobre esta nova condição, criando novos ambientes que possam se converter em canto, como incitam nossa imaginação e desejo as palavras de Jorge Larossa (2014, p.10), acerca da noção de experiência:

Experiência é o que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, ou nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, e que às vezes, algumas vezes, quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse tremor, então, somente então, se converte em canto. E esse canto atravessa o tempo e o espaço. E ressoa em outras experiências e em outros tremores e em outros cantos.

É pela arte de narrar e tecer que propomos que esse canto atravesse o tempo e espaço e ressoe em outras experiências em outros tremores e em outros cantos, ampliando nossa percepção e consciência do significado de tecer redes na contemporaneidade e na educação formal de crianças e jovens conectados.

2. A arte de narrar e tecer: experiência, rastros e redes

É pelo narrar que propomos intercambiar experiência; experiência coletiva de tecer redes, nascida da interseção dos projetos de pesquisa de duas docentes de áreas que, historicamente, sobretudo no ambiente escolar, são distintas: arte e ciência. Na união do digital e manual, encontra-se a interseção dos projetos de pesquisa, ensino e extensão Aprender Brincando: uma experiência colaborativa, coordenado e desenvolvido pela professora de Química Dr.ª Izabel Goudart (CAp/UFRJ) e a comunicadora Ma. Luciana Fleischman, e Arte do Fio, coordenado e desenvolvido pela professora de Artes Visuais Ma. Mariana Guimarães (CAp/UFRJ). Desse encontro, nasce o projeto Objetos de afeto e tramas da escola: tecendo redes, desenvolvido no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no primeiro semestre de 2014.

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Objetos de Afeto é fruto de um convite para tecer redes, realizado no chat de uma rede social, o Facebook. A comunicação ágil, imediata e atemporal (síncrona ou assíncrona) possibilita uma primeira e breve interlocução, seguida de um encontro presencial. No entanto, foi um gesto impresso na memória, rastro de uma breve passagem, a chave para tudo o que veio antes e depois, “pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas a chave para tudo o que veio antes e depois”. (BENJAMIN, 1993, p. 15)

Na ocasião da realização dos laboratórios abertos do Aprender Brincando’13, a professora Mariana Guimarães entrou na sala onde o projeto acontecia e entregou alguns catálogos de um evento sobre redes, comentando: “Eu também pesquiso sobre redes”. Acontecimento vivido, acontecimento lembrado, breve encontro somado aos rastros deixados pela escola das instalações com fios e bordados de seus alunos. Rastros de presença, experiência e narrativa fiada no bordado e no tecer de linhas no espaço do projeto Arte do Fio. Experiência que, no sentido atribuído por Larossa (2014), remete-nos ao que nos passa, nos acontece e nos toca; experiência estética e política do fazer da arte, daquilo que anuncia, antecipa, sinaliza e narra silenciosamente linhas de passagem, rotas de fuga, possibilidades do real.

O cotidiano escolar é repleto de experiência e, paradoxalmente, o lugar onde nada nos acontece. Enredados nos currículos e programas que delimitam o tempo, o espaço, a arquitetura do ambiente e os modos de escuta, tudo indica que perdemos o fio da meada. Entrelaçados nas tramas do conteúdo e da informação, que intenta fazer-se conhecimento e saber, parece que esquecemos o dom de contar histórias, o narrar a si e ao outro: “cultivar a atenção, a escuta, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço” (LAROSSA, 2014, p. 25). Para tornar mais densa essa trama, os muros da escola são penetrados diariamente por bits e bytes de informação, fluindo por meio de ondas eletromagnéticas das redes wi-fi captadas por dispositivos móveis. Mobilidade, ubiquidade e conectividade em rede são termos que, sutilmente, vão sendo incorporados na urdidura desse tecido, levantando questões acerca das formas de narrativas do nosso tempo, das linguagens que lhes dão suporte e dos meios pelos quais são veiculadas e disseminadas e, principalmente, do fazer rede.

Remetemo-nos aqui a Benjamim (1993) e à sua crítica à perda da experiência na modernidade e das narratividades espontâneas oriundas do fazer coletivo, centrada no artesanato, e colocamos essa questão ao lado das atuais redes digitais e da experiência da juventude contemporânea do tecer essa intrincada rede. Esta é a história da interseção do fazer manual da rede bordada e tecida, tecnologia ancestral, e do fazer virtual ou mental da lógica da linguagem da máquina (0 e 1), do fazer redes via computadores e dispositivos digitais, tecnologia contemporânea. Objetos de afeto, híbridos de mãos que tecem, e bytes que digitalizam a tessitura da rede.

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O ato de tecer a rede é, em si, o fazer da experiência e a rede, a experiência em si que nos sucede, nos toca, nos acontece e, portanto, nos forma e transforma. O que nos sucede nessa experiência do tecer redes? Quais os elementos dessa tessitura que nos colocam no lugar e como sujeitos da experiência? Como o Aprender Brincando e Arte do Fio tecem suas redes? E os Objetos de Afeto?

3. Aprender brincando: uma experiência colaborativa

Aprender brincando é um convite à experimentação lúdica e reflexão crítica da inserção das tecnologias, linguagens e cultura digital no cotidiano escolar. Propõe a realização de laboratórios abertos voltados para a investigação, desenvolvimento e experimentação de metodologias de produção de conhecimento e aprendizagem colaborativa em rede. A ideia central é trazer, para o ambiente escolar, práticas da cultura digital alicerçadas nos eixos participação, partilha e colaboração e nos princípios difundidos pela filosofia do software livre, dados abertos e apropriação crítica das tecnologias e linguagens digitais (DIY, do it yourself, e DIWO, do it with others). O projeto recebeu o III Prêmio do Instituto Claro: Inovar e Empreender na Escola com as TICs, em 2011.

Os primeiros laboratórios foram realizados em setembro de 2012, o Aprender Brincando’12: programando com Processing e Arduíno, seguido de oficinas curtas ao longo de 2013. Nessa edição, convidamos programadores, designers e pesquisadores para conduzirem uma discussão sobre a experiência dos hacklabs e laboratórios abertos, realizada fora da escola por coletivos de arte e ativistas da cultura digital, sobre cultura livre, dados abertos, financiamento de projetos e a importância do ensino de programação nas escolas. Realizamos quatro dias de laboratórios abertos com alunos da graduação (licenciandos de várias áreas), professores e alunos do Ensino Médio, utilizando dinâmicas de prototipagem ágil de projetos a partir de questões do cotidiano escolar. Todos participaram dessa construção contribuindo com seu saber e ideias, sem hierarquias de nível de conhecimento ou função. O resultado foi a prototipagem de quatro projetos de arte interativa, utilizando computação física e programação interativa.

A 2ª edição foi realizada em novembro de 2013, o Aprender Brincando´13: faça você mesmo, faça em conjunto práticas da cultura digital na escola. Nessa edição, convidamos artistas e programadores como tutores na execução colaborativa dos projetos prototipados em 2012, da proposta de desenvolvimento de design de ambientes de aprendizagem e de uma rede livre na escola. Colaboraram alunos do Ensino Médio e Graduação, professores e funcionários.

O movimento de redes livres vem disseminando a possibilidade de construção e empoderamento popular de uma comunicação livre e de uma rede distribuída acessível economicamente, gerida colaborativamente pelos próprios pares e aberta à comunidade. Tais princípios, transpostos para o ambiente escolar, propiciam uma experiência de apropriação crítica do conceito de redes colaborativas e de uso dos recursos digitais, autonomia na gestão e definição de recursos e a promoção de um ambiente propício para a aprendizagem em rede.

Guiando-nos por esses princípios, o projeto Aprender brincando constitui-se como um espaço de investigação, ação e reflexão do conceito de rede e do fazer rede, compreendendo a aprendizagem em rede como uma dinâmica cognitiva própria de mentes conectadas e interdependentes, manifestas em novos ambientes de aprendizagem, onde as noções de coletivo e rede despontam como alternativas para se pensar o social. Ambientes por onde transita o leitor enredado num conhecimento em rede, apontando para uma direção em que as teorias e conceitos estão interconectados.

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Leitor ubíquo que habita uma multiplicidade de ambientes de aprendizagem, articulando o saber e o fazer, as dimensões sensoriais, intuitivas, emocionais e racionais, desdobrando-se entre um ambiente em constante fluxo informacional e situações que envolvem interação com diferentes tecnologias e equipamentos relacionados a múltiplas e não correlacionadas ações. (GOUDART, 2012 , p.53)

Voltado para esse leitor, nasce a proposta de articular ciência, arte, cultura e tecnologia no desenvolvimento de projetos colaborativos articulados por uma comunicação em rede.

Por fim, o Aprender Brincando’14 traz a experiência de interseção com o projeto Arte do fio, voltando-se para o aprofundamento e imersão no conceito de rede, tecer rede e, principalmente, no debruçar-se sobre os vínculos que nos atam e sobre a dimensão do papel do afeto e da presença.

4. Arte do Fio

O projeto de pesquisa, ensino e extensão intitulado Arte do fio, coordenado e desenvolvido pela professora de Artes Visuais Ma. Mariana Guimarães, tem como objetivo a pesquisa formal e conceitual da linguagem da bordadura nas artes visuais e na educação. O projeto tem como proposta investigar e explorar novos materiais e usos das técnicas ligadas às artes do fio, à confecção de materiais didáticos, à construção de poéticas pessoais e artísticas, assim como ao estudo e à consolidação da linguagem da bordadura nas artes visuais e educação. Busca, ainda, a pesquisa de histórias, contos e mitos relacionados à temática. No CAp/UFRJ, esse projeto é desenvolvido com alunos do Ensino Fundamental e Médio e com alunos da Licenciatura em Artes Visuais, em que procuramos desenvolver e organizar uma metodologia de ensino e pesquisa na Educação Básica. O projeto Arte do Fio foi premiado no XV Prêmio Arte na Escola, na categoria Ensino Fundamental II, no ano de 2014.

Essas experiências resultaram em diversos trabalhos e materiais, como exposições, intervenções no espaço escolar e urbano, livros de pano, bonecas de tecido, painéis, e em objetos distintos. Experiências que contribuem para a consolidação de uma linguagem artística e para a construção de uma metodologia de pesquisa e investigação do fio e do ato de conduzir o fio na trama e explorar as dimensões poéticas do tecer, da memória e da arte. Promove o diálogo entre a educação, a arte popular, a arte contemporânea e seus diversos modos de incorporação dessas linguagens na construção das poéticas pessoais e pesquisas de inúmeros artistas, como Leonilson, Edith Derdyk, João Modé, Louise Bourgeois, Artur Bispo do Rosário, Mauricio Arenzi, Lia Menna Barreto, entre outros, que nos mostram novas possibilidades estéticas, artísticas e visuais no uso desses materiais e técnicas tradicionais, reconstruindo e reinventando a matéria e legitimando a bordadura, a costura e a tecelagem como linguagens artísticas na contemporaneidade. O artista contemporâneo está interessado em compreender e desvelar a estrutura da trama, e se debruça na experiência de fazer redes, de fazer bordado, em um aprofundamento nas questões plásticas da técnica e também nas questões simbólicas, mitológicas e sociais desse fazer.

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A atividade artesanal guarda consigo uma ação criativa que imprime a marca de quem faz. A perda do trabalho criativo é um dos grandes problemas da sociedade contemporânea; o uso das mãos para produção de objetos está cada vez mais distante das práticas cotidianas nos grandes centros urbanos. Devido à facilidade na aquisição de objetos prontos, o ser humano perde grande parte de sua capacidade criadora, motora e reflexiva, separando as mãos do seu trabalho intelectual.

A noção de artesanal compreende fazer algo bem feito, e a perda dessa dimensão tátil e física precisa ser recuperada. Sennett (2009, p.31) afirma que “a atividade prática foi menosprezada, divorciada de ocupações mais elevadas. A habilidade técnica foi desvinculada da imaginação, a realidade tangível, posta em dúvida pela religião, o orgulho pelo trabalho, tratado como um luxo”. É urgente a redescoberta do prazer no trabalho e redescobrir o artesão em nós mesmos.

Há, no ato de bordar, tecer e costurar, um silenciar das mãos em seu mais profundo movimentar-se, num ir e vir que nos coloca em contato com uma consciência ancestral e nos ensina a dimensão e a potência transformadora de conduzir uma linha no espaço, compreendendo o poder das mãos, da linha e do fio, que liga e religa o ser humano à sua mais tenra idade, no momento gestacional onde mãe e bebê são ligados pelo fio umbilical, o fio da vida, que é cortado para uma nova vida começar. O ato de tecer possui um caráter ordenador, que organiza conexões cerebrais, psíquicas e emocionais; é um ato criativo, que desperta e organiza nossos mais íntimos sentimentos, materializando-os em pontos e tramas.

5. Objetos de afeto e tramas da escola: tecendo redes

Objetos de Afeto buscou a interseção entre os projetos Arte do Fio e Aprender Brincando: os pontos comuns entre a experiência de fazer bordado e a experiência do digital. Nessa interseção, debruçamo-nos sobre as semelhanças entre a linguagem do bordado e a linguagem do digital. Aparentemente, são tecnologias distintas; porém, ao aprofundarmo-nos no tema, traçamos uma cartografia dos pontos comuns, dos vínculos que nos ataram e nos possibilitaram a realização de um projeto de tão potente ação e reação no ambiente escolar. As semelhanças e os pontos comuns entre as linguagens estão relacionadas primeiramente à experiência do fazer focada no trabalho, na experiência de tecer redes e criar conexões, na transmissão do fazer e partilha de modos desse fazer. Bordado e digital são linguagens que marcam e decompõem o tempo, são repetições de pontos na trama do tecido ou na trama da programação digital no binômio 0/1. Decompõem o tempo na malha tecida digital ou manual, e cada instante se configura por ser um entrelaçamento de dados, de sobreposição de pontos, e cada repetição é o desejo de permanecer e criar conectividade na matéria e para além dela. Tanto bordado quanto a tecnologia do digital têm avesso; a programação, silenciosa, é o avesso dos programas, ela está para o digital, assim como o risco está para o avesso do bordado. Bordadura e tecnologia digital têm desejo de permanência e são riscos, deixam rastros. Bordados possuem riscos, os rastros de quem fez está no avesso do pano bordado. A linguagem digital deixa rastros passíveis de serem recuperados. Ambos lidam com a memória; memória de quem fez; memória da memória da linguagem. Seus mitos são estruturantes para os seres humanos; falam de um tempo, de seu próprio tempo e do tempo que consome seres humanos; produzem suas histórias, à medida que homens e mulheres se debruçam coletivamente nesses fazeres e registram-nas nos objetos de afeto que os afetam, o bordado e o digital.

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Aqui, neste texto, pretendemos narrar uma experiência – a experiência de tecer redes – sejam elas digitais, manuais ou interpessoais. Na experiência das possibilidades de vínculos que podem ser estabelecidos e impressos nessa trama, a emancipação e a plena posse do fazer redes e tornar-se rede, como a agulha se torna linha ao penetrar na trama ou quando nos tornamos rede ao participarmos de uma rede social na internet. Benjamim (1993, p. 205), no célebre texto sobre o narrador, aponta que:

(...) as histórias se perdem porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. A narrativa está associada a uma forma artesanal de comunicação, ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada, como uma informação ou relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador, para em seguida retirá-la dele. Assim imprime-se na narrativa a marcar do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.

Ou, ainda, imprime-se, na narrativa, a mão do tecelão conduzindo a agulha ou de um programador imprimindo bytes e construindo redes digitais. É na própria construção de redes que o sujeito vai aprendendo a narrar e transmitir a história de sua vida, a história de seu tempo e a própria história dentro da história.

6. Do manifesto do afeto

É sobre afeto, sobre objeto. Sabemos, pois, que há muitas reflexões filosóficas, sociais, políticas, materiais, antropológicas, psicanalíticas e científicas sobre esses conceitos. Porém, pretendemos aqui debruçar nossas reflexões sobre afeto e objeto pelo viés artístico, em reflexões e ações vivenciadas e propostas por duas artistas e educadoras no ambiente escolar. Afeto é, antes de tudo, afeto. É o que cada um de nós entende como aquilo que nos afeta. E o que nos afeta? De que modo esse afeto está materializado em objetos que me afetam? Como pensar a educação nos dias atuais sem pensar e agir sobre a lógica das redes digitais de que essa geração de educandos já nasce parte?

Essas primeiras formulações partiram de muitos diálogos e reflexões sobre nosso objeto de pesquisa, sobre o ato de tecer redes e estabelecer vínculos; porém, é importante registrarmos aqui que nossas primeiras formulações sobre os objetos de afeto foram tecidas na esfera artística, na elaboração espontânea e sensível do manifesto do Objeto de Afeto, que surgiu com o desejo de bordar a molécula da ocitocina, a primeira imagem do nosso manifesto. A ocitocina (Figura 10) é um hormônio produzido pelo hipotálamo e armazenado na hipófise posterior, que tem a função de promover as contrações musculares uterinas e reduzir o sangramento durante o parto, para estimular a liberação do leite materno, de modo a desenvolver apego e empatia entre pessoas, para produzir parte do prazer do orgasmo; é um hormônio relacionado ao prazer e ao afeto.

Figura 1: Manifesto do Afeto: molécula de ocitocina.
Fonte: Livro objeto bordado, projeto Objetos de Afeto.

7. Dos encontros: Desenrolar, fio e beatitude

Foi um total de oito encontros, ao longo dos meses de março, abril e maio, elaborados a partir do desejo de tecer redes, de encontrar os nós de nossas pesquisas e desenrolar essa questão no ambiente escolar, decodificando e compreendendo o fio, essa matéria têxtil cheia de si e que ata essa trama, e, por fim, caminhar para uma beatitude, na construção de um ambiente de aprendizagem fundamentado na colaboração entre arte e ciência.

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O 1º encontro reuniu um grupo de professores e licenciandos; havia apenas um aluno do Ensino Médio. Nesse encontro, apresentamos os conceitos e metodologias que fundamentam o projeto Aprender Brincando e a proposta que surgiu na interseção com o projeto Arte do Fio: tratar do afeto e dos vínculos que nos atam, do significado da conectividade em rede, da aprendizagem para a atenção, dos valores vinculados ao saber tradicional e do papel da escola no questionamento do fazer educativo em nossos tempos. Compreender a educação como duração e no sentido de duração como permanente, o que “não significa permanência de valores, mas a permanência do processo educativo, que é o jogo entre a permanência e as mudanças culturais”. (GOUDART, 2012, p. 44 apud FREIRE, 1977).

A partir das conversas, propostas e ideias lançadas no 1º encontro, os laboratórios abertos foram estruturados em três eventos: Desenrolar (1 dia), Fio (3 dias) e Beatitude (3 dias).

7.1 Desenrolar

Desenrolar significa estender o que estava enrolado (fig. explicar, expor, narrar minuciosamente. Sm: sucessão (de fatos), o desenrolar de acontecimentos.

Montamos um ambiente com mesas com computadores, máquinas de costura, mimeógrafo, impressora e scanner, linhas, aviamentos e embalagens Tetra Pak. O encontro começou com um desenrolar de novelo de lã no ambiente; o narrar da história Falando com os Botões, de Lygia Bojunga (2008); o tecer a linha no pano e da linha do scanner; o gravar de depoimentos; o registrar e o recontar em programa de rádio (link do programa 1/3 realizado e editado nos encontros: https://soundcloud.com/aprender-brincando/objetos-de-afeto-desenrolar).

Quem é que a gente está tecendo? Quem é a nossa rede?

Qual é o bordado que essa rede de pessoas vai produzir no final desse projeto?

Linho no pano e linha do scanner, bordado que ganha intervenções na digitalização, gestação de objetos híbridos. Ressignificação de usos de objetos e pessoas envolvidas com o ato de bordar e transformar o objeto em outros. Os computadores ficaram em silêncio, ouvindo seus botões. Mas o digital estava ali. Afinal, o que é o digital? Qual a experiência que ele possibilita e proporciona?

O desenrolar foi uma descoberta, tal como no conto de Lygia Bojunga (2008), em que a autora narra sua experiência de menina na descoberta do costureiro da mãe e como esse costureiro passa a ser um local de investigação, onde narra as possibilidades de experiência que o costureiro proporciona.

O costureiro variava. Às vezes era uma cesta. Outras vezes era uma caixa de madeira, que quase sempre tinha PE (teve uma que tinha até perna comprida). Dentro da caixa os departamentos: aqui bota linha, aqui enfia alfinete, esse pedacinho é pros colchetes, aqui é para isso, aqui bota aquilo. Quanta coisa para descobrir no costureiro! Quanta coisa para brincar: casar pressão, enfiar agulha, enganchar colchete, pendurar alfinete de fralda um no outro e, melhor ainda: imitar a minha mãe nos pontarecos que eu ia dando em tudo que é pedacinho de pano que ela passava para mim. (p.47-48)

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Ela acessa uma determinada linguagem, é afetada pelo objeto e se afeta e compreende o verdadeiro significado de falar com os botões, expressão que é o título da história. Qual a experiência que o costureiro proporciona? O que ela aprende?

(...) foi de tanto a minha mão andar por lá, num convívio cada vez mais estreito com tesoura e linha, e com agulha e lã, que eu comecei a achar que trabalhar com a mão era uma coisa tão da vida feito comer e dormir: era bom. Foi bom querer imitar a minha mãe nos trabalhos manuais e aprender que a mão é um instrumento único. É bom. (p.53)

Fazer redes é como falar com botões: é algo muito metafórico. O que trazemos é a experiência do vínculo: vincular, mas não apenas o ato de vincular unindo, costurando, mas o que a conectividade proporciona para além da matéria tecida.

7.2 Fio

Fio significa fibra longa, delgada e retorcida de matéria têxtil. O Fio foi desenrolado em três dias: O fio que Brinca – brincadeiras com fios de barbante, o brincar e o aprender; Fiapo de Voz – edição de áudios e programa de rádio com Audacity (software livre); Fios, a Escrita do Fio – livro objeto bordado, reactable, rede livre, rádio, fanzine e jornal, mixagem de som, contação de história.

O fio foi um aprender junto, uma repetição e internalização dos vínculos que atam na rede. Foi um aprender coletivo, que necessita do outro. O fio do barbante que brinca, o papel do outro no processo de aprender fazendo, da compreensão. O fazer como transmissão da oralidade, a relação com o outro. Um brincar com a internalização das práticas. Quando brincamos, internalizamos os modos de se estabelecer os vínculos, as regras no ato da brincadeira. Tomamos o fio nas mãos e tecemos objetos de afeto. Tecemos a rede em programas de rádio, na montagem da reactable, no silêncio falante da rede livre, na bordadura do livro de pano.

O adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade quando narra sua experiência. A criança recria, começa sempre tudo de novo, desde o início. Talvez seja esta a raiz mais profunda do duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar e representar: repetir o mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da brincadeira, não é fazer como se, mas “fazer sempre de novo” é a transformação em hábito de uma experiência devastadora). (BENJAMIN, 1993, p. 252-253)

Nesse encontro, entramos em contato com o fio, o fio da vida que brinca em nossas mãos em fazeres ancestrais. No fiapo de voz que apalavra nossas emoções mais primitivas e dá sentido à nossa existência, de fio a pavio brincamos com esse fio, anos a fio, compreendendo o sentido do brincar, puxando o fio da meada.

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7.3 Beatitude

Beatitude quer dizer: afetos ativos, alegrias e amores especiais, que se definem pela plena posse formal da potência de agir. A Beatitude foi uma explosão de afetos, posse da potência de agir. A escola ganhou vida, o ambiente foi afetado pelo olhar e cuidado da comunidade. No início, era um aluno, alguns professores e licenciandos; no Beatitude, fomos muitos e muitas. Muitas mãos a enrolar fios, a colorir o espaço, o som da rádio, o burburinho da rede, livro bordado fazendo capa, rede tecida de croché de dedo ganhando altura, objetos metarreciclados, objetos digitais ganhando vida, muitas mãos, muitos sorrisos, muita alegria no tecer, muito afeto. Aprendizado do afeto.

O afeto como conhecimento, afecção da presença, dos objetos nos quais colocamos nossa atenção, corpo afetado e que afeta, currículo oculto e invisível, que mobiliza, nos ata, nos vincula. Afeto ingrediente essencial na tessitura da rede; fazer rede é afetar, provocar um antes e depois, potencializar o agir. A rede cessa quando o afetar se perde, quando a arte de narrar a si e o outro desaparece.

8. Para concluir essa história: laboratórios abertos

O ambiente escolar é um espaço de territórios demarcados. Aqui, a arte; ali, a ciência; acolá, as línguas e a literatura; outrossim, o corpo ganha movimento e vida na quadra de esporte e teatro e precisa aquietar-se nas salas da aula. Arquitetura que nos afeta, fazendo-nos crescer, acreditando na departamentalização do saber e do conhecimento, na separação entre mente e corpo, no distanciamento entre experiência e construção de conhecimento.

Em tempos em que a experiência tem se perdido na impossibilidade de sua transmissão e/ou assentamento, devido ao acelerar constante das mudanças e transformações de hábitos e da multiplicação dos objetos que nos afetam, é tarefa da arte, por sua própria natureza de lidar com as possibilidades do real, preparar nossa sensibilidade para a criação de futuros possíveis e viáveis para a manutenção da vida, da espécie e do planeta. Arte e ciência são formas de conhecimento que auxiliam seres humanos a pensar novas formas de adaptação e assim como outros conhecimentos, prescindem que lhes atem as mãos em nossos tempos.

A proposição de espaços e ambientes que traduzam essa urgência vem ao encontro da experimentação e criação de laboratórios abertos no ambiente escolar. Laboratórios abertos como comunidades livres em que educandos e educadores compartilham novos ambientes de aprendizagem que privilegiam a circulação de informação, a experiência e a construção de conhecimento pelo aprendiz e o aprendizado e vivência do afeto enquanto cognição. Ambientes, onde o conhecimento é artesanalmente construído por todos, através de princípios como colaboração, transmissão de conhecimentos, participação e partilha, onde a experiência do fazer e pensar redes é comum, na existência de uma experiência coletiva ligada a um trabalho e a um tempo partilhados em um mesmo universo de prática e linguagem, como uma obra aberta em constante formação e adaptação, cada rede como o desejo de uma nova e uma outra. Linguagem dentro da linguagem, palavra no bordado, digital no artesanal, artesanato no tecnológico e tecnológico no corpo. A experiência do digital como uma linguagem híbrida norteada pela experiência coletiva, e a experiência coletiva não pode morrer.

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Espaços potentes e urgentes para pensar a democratização do acesso às informações e aos dados produzidos pelo digital; espaços para refletir sobre a emancipação de indivíduos frente à imposição tecnológica e sobre a violência midiática; para pensar no tempo que colocamos na construção de objetos e nas relações que tecemos, no trabalho manual e feito com as mãos, no homem dono de si e de seu trabalho, no homem político e empoderado, empoderamento compreendido no sentido proposto pelo educador brasileiro Paulo Freire (1996) que, ao traduzir a palavra empowerment, do inglês dar poder, redefiniu-a para a realidade brasileira de opressão e miséria; e o sujeito empoderado sendo aquele que realiza, por si mesmo, as mudanças e ações que o leva a evoluir e progredir.

O ambiente torna-se uma questão central no fazer rede. Um ambiente no qual o corpo encontra-se em movimento e/ou afetado pela constante sensibilização dos fios aos quais está conectado; fios que cumprem o papel de meios para a transmissão; o fio que atravessa o espaço, seja marcando o tecido, seja na malha condutora de eletricidade, cabeamentos diversos, malhas rodoviárias; fios invisíveis das redes wi-fi, feitos da imaterialidade das ondas eletromagnéticas conduzidas pelo ar; o princípio é o deslocamento e a experiência da presença que implica a percepção do que nos ata e vincula. A malha da rede interfere no espaço e age no sentido de transmitir informação a partir de qualquer ponto da rede, como uma teia de aranha que é afetada pelos estímulos do ambiente e que, organicamente, como um sistema nervoso externalizado, imprime na aranha a localização exata da interferência ou objeto aderido. Assim também, das redes tecidas às redes que transitam informação, somos afetados por um sistema nervoso externo e por uma memória e inteligência coletiva.

Esse projeto foi bordado por muitas mãos; foi materializado em um livro objeto bordado e digital, que registra, marca e narra a trajetória do encontro potente de ideias, conceitos e ações vinculadas pelo afeto e pela experiência afetiva de fazer em conjunto; gesto que é risco e impressão, afecções – marcas temporais que englobam a natureza dos corpos afetados e dos corpos afetantes. Foi uma iniciativa do projeto de extensão da UFRJ, Ciência, Inovação e Transformação e Ações Interdisciplinares nas Escolas do Estado do Rio de Janeiro – Novos Talentos; da CAPES; do prêmio do Instituto Claro e de todos os participantes, tecelãs e tecelões, artistas, educadores, designers, programadores, alunos da Educação Básica, das licenciaturas, funcionários e amigos que colaboraram nessa rica construção. Comprometidos todos com uma estética e educação conectivas que articulam o aprendizado através do afeto e dos vínculos que estabelecemos, com a interação como um meio de expressão realizado por meio do diálogo, da tessitura de uma nova era baseada no coletivo, na colaboração e na partilha, no afeto.

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Referências

BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras Escolhidas, v. 1. Sérgio Paulo Rouanet (trad.). 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993a. p. 197-221.

_____. Brinquedo e Brincadeira: observações sobre uma obra monumental. In: Obras Escolhidas, v. 1. Sérgio Paulo Rouanet (trad). 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993b. p. 249-53.

BOJUNGA, Lygia. Feito à Mão. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2008.

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