O presente texto resulta de um longo trajeto de observação e leituras sobre o que em inglês passou a ser reconhecido como digital literacies. Infelizmente, o segundo termo desta expressão não tem correspondente direto em português. Alguns usam o termo habilidade, outros, aprendizado e outros, fluência. O termo inglês literacy reune estes três significados. Capacitação digital parece ser uma melhor alternativa, pois ao menos combina as ideias de aprendizado (capacitar-se) e de habilidade (capacidade).
O ponto de partida é a percepção questionável de que os nascidos após a explosão da Web seriam “nativos digitais”. A problematização desta ideia aponta para a necessidade de uma capacitação digital efetiva, envolvendo um conjunto de habilidades (literacies) carente de uma formulação estruturante, didática, adequada à compreensão abrangente das possibilidades da interatividade digital. Neste sentido, o texto faz uma proposição teórica especulativa, inspirada na semiótica peirciana e suas categorias fenomenológicas.
O objetivo é mapear a complexidade crescente dos discursos digitais. A formulação proposta recorta situações para as quais diferentes habilidades de comunicação são necessárias. Porém, cabe um importante reparo: o caráter especulativo da proposição implica uma investigação, que infelizmente não fez parte do escopo aqui apresentado, da vasta literatura já publicada sobre a obra de Peirce à procura de similitudes e conexões com análises e desdobramentos relevantes (fica como objeto para pesquisa futura).
Na terceira e última parte do texto, encontra-se uma formulação estratégica, um tanto genérica, para o desenvolvimento de programas de capacitação voltados a jovens que embora “nativos” do mundo digital, não são ainda fluentes em seus mecanismos. Como para este aprendizado, o uso das próprias ferramentas da interatividade digital constitui uma estratégia basicamente inescapável, as leituras de suporte enveredaram pela discussão bastante atual de alguns coletivos virtuais empenhados na experimentação e investigação de novos caminhos pedagógicos engendrados a partir destes recursos: metodologias ativas; uma experiência de aprendizado horizontalizada; o professor entendido como co-aprendiz, cujo papel é guiar aprendizado e não ditar seu conteúdo.
1. Nativos digitais: um conceito duvidoso
Muito ao contrário do que se imagina, o adolescente não se encontra via de regra bem preparado para o mundo das mídias sociais. Embora a comparação com gerações anteriores pareça demonstrar o contrário, o que temos é um jovem cuja fluência parcial mascara não apenas o despreparo para um papel mais ativo e como também a ausência de uma reflexão mais crítica sobre seu uso do meio. Conhece os meandros das redes sociais utilizadas por seu círculo de amigos, mas é incapaz de fazer uma pesquisa produtiva via Google. Publica continuamente em seu Facebook, mas não sabe como participar em um fórum para resolver uma dúvida técnica. Isto quando não usa o Twitter para longos diálogos, sob vários pontos de vista, mais adequados a um espaço privado…
67Apontar para esses jovens como nativos digitais torna obscura em primeiro lugar a profunda variabilidade existente nessa população, se há jovens como os descritos pelos estereótipos acima, também há aqueles capazes de produzir blogs com audiência significativa, alcançando, por vezes, até fama e dinheiro; ou realizar operações de “engenharia social” (alguns chamariam de trolling) de fazer inveja a Maquiavel. Essa disparidade é um dos grandes desafios do caminho proposto por este texto. Em segundo lugar, o termo nativo digital conduz ao equívoco de imaginar as capacitações necessárias ao pleno proveito do meio digital como algo “nato” àquele nascido após a explosão da Internet. Como se não houvesse nada a aprender, como se bastasse o contato com uma tecnologia em idade tenra para absorver suas possibilidades. Por último, a ideia da naturalidade concede uma suposta superioridade automática dos nativos digitais frente aos que, por oposição, são chamados de imigrantes digitais.
O conceito, provavelmente, nascido na ficção científica em 1995, foi utilizado nos círculos acadêmicos pela primeira vez por Marc Prensky no ensaio “Digital Natives, Digital Immigrants: Part 1” de 2001 (JENKINS, 2007; BOYD, 2014). Tanto Prensky quanto o Zeitgeist que acompanha o termo são bastante otimistas na apresentação dessa nova geração, encaminhando a grosseira simplificação do vulgo: “já nasce sabendo o digital”.
Douglas Rushkoff foi outra voz propagando a ideia (BOYD, 2014). Para ele, a criança apresenta vantagens cognitivas no aprendizado das linguagens digitais, o que os distingue daqueles que somente podem se apropriar dessa linguagem de um ponto de vista cognitivo desfavorável (apud JENKINS, 2007). Embora a formulação pareça razoável: nada a justifica diretamente. Qual seria o aprendizado anterior do adulto capaz de dificultar seu aprendizagem do digital? Claro, há mais fluentes digitais entre os mais jovens, e há mais adultos com bloqueios cognitivos capazes de impedir o proveito do digital. Mas não seriam estas circunstâncias próprias da vida adulta: particularidades da formação pregressa, resultantes tanto de carências quanto de preferências, somadas à falta de tempo?
Henry Jenkins no ensaio “Reconsidering Digital Immigrants...” de 2007 e Danah Boyd no sétimo capítulo de seu livro It’s Complicated: The Social Lives of Networked Teens de 2014, fazem oposição ao termo tomando a questão da diversidade no acesso e no conforto dos adolescentes no uso das mídias sociais. Diversas aptidões básicas são ausentes para maior parte dos jovens. Muitos não sabem reconhecer um email de spam, ou um anúncio pernicioso, cujo clique acaba por instalar um vírus ou coisa que o valha. Poucos conhecem seus parâmetros de privacidade no Facebook, menos têm efetivo controle sobre a tecnologia, raros demonstraram qualquer preocupação com a perenidade do conteúdo que publicam. Boyd traça um quadro ainda mais completo quando expõe preconceitos primários repetidos por adolescentes contra fontes de conhecimento válidas como a Wikipédia (reverberando o preconceito de gerações mais velhas) ou a incapacidade de detectar conteúdos válidos na imensidão de falsidades e besteiras que povoa a internet, a habilidade nomeada “crap-detection” por Howard Rheingold (2012).
68Boyd (op. cit.) também acena para a necessidade de reformulação do programa de crítica midiática que a duras penas conseguiu conquistar espaço nas grades curriculares do ensino médio nos Estados Unidos. Em nossas terras, o mesmo movimento foi sentido nas décadas de 80 e 90, muito embora seu alcance tenha ficado obviamente restrito a um pequeno número de professores mais engajados vindos das ciências sociais e, portanto, versados nas teorias da escola de Frankfurt. Malgrado possíveis objeções aos “órfãos de Adorno”, o que está em ordem aqui é a percepção de movimentos mais complexos nas estruturas de validação do conhecimento ou mesmo de apreensão do real.
Os livros de Richard Grussin, Remediation e Premediation, de 1999 e 2010, fazem bom uso da tradição crítica para apontar desenvolvimentos importantes nas mídias digitais:
- a capacidade de reconstrução da realidade midiatizada das novas mídias, cuja natureza digital facilita a manipulação, re-edição, re-interpretação, torna-as especialmente aptas a multiplicar e reapropriar discursos;
- a ubiquidade do mundo globalizado nas mídias produz um fluxo de constante antecipação da realidade por meio de cenários futuros, tendências e previsões.
O exercício de leitura crítica se já necessário na sociedade das mídias de massa é ainda mais importante no mundo polifônico das redes. Jovens incapazes de exercer o julgamento crítico dos milhares de conteúdos que se lhe apresentam diariamente na internet não podem ser classificados como nativos digitais sob o custo de não lhes ser provido o instrumental necessário para uma interpretação mais sofisticada. O quadro das complexidades do convívio social das redes digitais apresentado por Danah Boyd (2014) são apenas uma face deste problema. Talvez mais problemática para os adultos sob cuja responsabilidade recai a educação destes jovens. No entanto, a socialização, seu objeto de pesquisa, é o aspecto melhor controlado pelos adolescentes conectados. Quadro mais grave apresenta-se diante das possibilidades de construção de conhecimento e aprendizado, inúmeras na rede, porém muito menos disseminadas, como diz Boyd:
We live in a technologically mediated world. Being conformable using technology is increasingly important for everyday activities: obtaining a well-paying job, managing medical care, engaging with government, Rather than assuming that youth have innate technical skills, parents, educators and policymakers must collectively work to support those who come form different backgrounds and have different experiences. (2014 loc. 2928 - livro eletrônico)
Em Net Smart: How to Thrive Online, de 2012, Howard Rheingold propõe cinco habilidades, cujo alcance vai além da socialização, embora em seus níveis mais avançados dependa desta profundamente. Elas são:
Infotention: capacidade de regular sua atenção diante da sobrecarga de informação e das possibilidades infinitas de distração das mídias sociais;
Crap Detection: capacidade de validar as fontes de informação no digital, realizar pesquisas produtivas e sempre questionar o que é apresentado;
Participation: capacidade de engajamento em discussões digitais, criação de conteúdo próprio, e gestão da reputação criada por suas interações;
Collaboration: capacidade de conviver e produzir nos ambientes coletivos das redes digitais, nos quais comunidades apoiam-se mutuamente;
Network Smarts: capacidade de navegar as complexidades do poder e prestígio nas redes sociais, entendendo a construção de confiança no digital.
69Embora os itens propostos pelo autor façam sentido em si e ofereçam um bom conjunto, carecem de uma fundação ontológica capaz de mapear o território de maneira abrangente. Neste ponto, o pensamento de Charles Sanders Peirce fornece uma fundamentação, cuja solidez permite um caminhar mais seguro. Esta ponte é tratada aqui com todo cuidado, especialmente, por estar o presente trabalho inserido em volume organizado por Lucia Santaella, grande especialista na complexa obra do filósofo americano. Repete-se, então, o aviso: não se trata de um mergulho nas intrincadas propriedades da semiótica peirciana, mas sim do empréstimo de suas categorias fenomenológicas para estendê-las à compreensão dos processos de comunicação que se desdobram nas mídias sociais.
2. Um recorte peirciano da interatividade digital
Em Assinatura das Coisas, Santaella (1992: 69-81) descreveu como Peirce evoluiu de seu pensamento até chegar a conclusão de que o mecanismo básico da semiose é uma condição de todas as coisas em níveis crescentes de complexidade.
Assim como o mundo não se divide em coisas, de um lado, e signos, de outro, mas vive da mistura das coisas que, sem deixar de ser coisas, são também signos, e dos signos que só podem ser signos porque são também coisas, as ações que movem o mundo, são de duas ordens irredutíveis, mas inseparáveis e superpostas, a ação diádica-mecânica, embutida dentro da ação do signo, ação inteligente ou semiose. (ibid. p. 77)
A tríade primeiridade, secundidade e terceiridade é uma formulação constante para Peirce, porque advêm do elemento mais fundamental de sua filosofia: as três categorias fenomenológicas qualidade, relação e representação (ver ROSENSOHN, 1974 e resenha do mesmo volume, CINTRA, 2013). Ideia identificada por Santaella (op. cit.) como marco que permite a Peirce chegar a seu “tempo de colheita” e, ao produzir conhecimento em diferentes áreas do conhecimento, demonstrar sua repetição como uma constante universal: um primeiro que impressiona, como qualidade de sentimento, um segundo que relaciona, resiste e reage, e um terceiro que produz, representa e media. Este movimento de algo que se apresenta, entra em relação e termina por produzir um novo, é de uma potência singular porque reflete um conceito absolutamente geral.
A contribuição deste artigo é utilizar a tríade peirciana para construir um percurso das possibilidades de comunicação humana potencializadas pelas mídias sociais. Como Santaella vem demonstrando num ciclo de publicações que se estende por mais de uma década (2003, 2004, 2007, 2010, 2013), as transformações trazidas pelo advento da internet e a sequência de inovações que temos testemunhado desde então afetam nossa própria percepção, como nos entendemos humanos, como produzimos a cultura que nos define. Em todas estas instâncias, as novas possibilidades da comunicação digital são o elemento transformador. Uma concepção antropocêntrica do mundo, por exemplo, perde força, quando além de nos comunicar entre humanos, hoje falamos também com máquinas, e máquinas já conversam entre si.
70Questões como esta já estavam presentes em minha dissertação de mestrado (CINTRA, 2003), quando tentei identificar novas dimensões da comunicação a partir da interatividade digital. Sem, ainda, implicar uma revisão do que foi proposto então, o presente texto pergunta como as categorias fenomenológicas de Peirce manifestam-se nas novas formas do discurso nas mídias sociais. E, sem temer uma certa simplicidade inicial, propõe: como primeiridade as diferentes tecnologias digitais, cuja fruição primordial do discurso é “expressar” um discurso, divulgar, dar visibilidade a conteúdos nos diversos formatos que a rede permite; a secundidade se apresenta nos caminhos abertos para a fruição do dialógico nos inúmeros mecanismos que permitem interlocuções em diferentes formatos, via texto ou vídeo, de maneira síncrona e assíncrona, e por meio de diferentes arranjos sociais. A terceiridade encontra-se nos espaços de produção coletiva, instâncias nas quais o próprio digital é palco para fruição de novos discursos, quando esta criação ocorre em rede.
Apesar da simplicidade desta formulação, o prisma peirciano permite colocar em perspectiva as capacidades necessárias ao pleno proveito das mídias sociais. Expressar, dialogar e produzir estabelecem uma tríade básica para a fruição do discurso digital. Mas, seguindo o roteiro peirciano, ainda é possível replicar estas mesmas categorias olhando não a intenção do discurso, mas também como esta se articula, quais circuitos se formam, quais fluxos.
Assim sendo, na primeiridade dos discursos cuja fruição é prioritariamente expressiva, podemos ter tanto secundidade presente na mera abertura ao diálogo por um mecanismo de comentários, quanto chegar ao universo da terceiridade se o autor for capaz de engajar seu público na recriação ou ampliação de seu conteúdo. Ou seja, a fruição do discurso define uma primeira tríade peirciana, à qual sobrepõe-se outra, a de seu fluxo. Forma-se uma matriz com nove quadrantes, cujos recortes são definidos a seguir.
Primeiridade na fruição + Primeiridade no fluxo
São interações digitais nas quais impera a expressividade, o discurso flui de maneira praticamente alheia às potencialidades do meio: os sites feitos, talvez já se possa dizer, “à moda antiga”, sem oferecer qualquer abertura à interação; os artigos publicados sem espaço para comentários (erro no qual ainda insistem alguns veículos da imprensa); as mensagens de email que não só não motivam, como por vezes nem permitem resposta; assim como todo conteúdo não solicitado (SPAM). A primariedade aponta tanto na intenção do discurso restrita ao expressar-se, quanto em seu fluxo fechado ao diálogo. Aqui o digital aproxima-se dos suportes impressos na fruição e no fluxo.
Mas antes de condenar o espaço de ambas primeiridades em análise a uma certa inapetência digital do autor do discurso, é fundamental pensar o leitor. Pense em como você faz fruir a maior parte do conteúdo digital que consome. Você tem o hábito de deixar comentários? Sua intenção na maior parte das vezes é interagir ou informar-se? Ou seja, existe uma certa idealização da produção de discursos potencializados para a interatividade digital não correspondente à realidade de seu consumo (e quem sabe, para alguns veículos de imprensa, não ter comentários talvez seja uma alternativa válida…)
71Primeiridade na Fruição + Secundidade no Fluxo
São as interações digitais nas quais predomina a expressividade do discurso, mas este se abre ao diálogo: conteúdos publicados com espaço para comentários; todas as “curtidas” das diversas redes sociais; as populares enquetes digitais; também a maioria dos sites corporativos nos quais o diálogo oferecido toma forma de prestação de serviço individual e privada, normalmente por email. A secundidade do diálogo está presente, porém sua fruição é restrita porque o polo da autoria inicial pode controlar conteúdo, ritmo e forma no sentido de fazer prevalecer a intenção de expressão original.
Os contornos dos quadrantes são cheios de meandros. Basta uma conversa lateral entre usuários progredir em um espaço de comentário, atrair mais participantes, tornar-se um verdadeiro debate, para que a fruição predominante passe a ser a secundidade do diálogo, expandindo a intenção expressiva original. Ou talvez de maneira mais comum e fatal, basta que ninguém publique qualquer comentário para que a secundidade do fluxo não se complete, permanecendo a interação no quadrante 1.1.
Primeiridade na Fruição + Terceiridade no Fluxo
São as interações digitais nas quais um discurso predominante expressivo é capaz de produzir um engajamento criativo com seu leitor: as resenhas de produtos deixadas por usuários; os veículos que capturam e distribuem conteúdo fornecido pela audiência; as simulações de todos os tipos, especialmente, videogames narrativos nos quais cada interação, ou jogo, desdobra-se como “história única”, mas também serviços digitais nos quais a interação com o discurso expressivo das interfaces produz os resultados produtivos esperados de seu uso; até certo ponto, também o fenômeno das fanfic (ficção criada por fãs de determinado produto cultural, muitas vezes uma série de TV, através do “remix” de histórias e personagens originais) - mas aqui é preciso notar que, em outra escala, também opera a fruição expressiva do autor-fã e, na maior parte das vezes, os autores e editores do conteúdo original não interagem diretamente com a comunidade criadora de fanfic.
A terceiridade é fruto do engajamento de uma audiência potencializada pela interatividade digital, capaz de produzir novos discursos. De certa forma, o circuito produtivo do fanfic, mesmo caótico, ou talvez por isto mesmo, é o “santo grau”. Ou seja, na fruição da primeiridade expressiva da interação digital, a semiose do fluxo caminha no sentido do engajamento produtivo da audiência.
Secundidade na Fruição + Primeiridade no Fluxo
São as interações digitais que, apesar de construídas na intenção do diálogo, acabam restritas a um fluxo predominantemente expressivo e pouco dialógico: as respostas automatizadas ou de conteúdo padronizado; as listas de emails nas quais o único comportamento ativo é o envio de referências sem incitar seu debate; os fóruns virtuais quando tomados por trolls (indivíduos que fazem uso de comportamentos antissociais ou manipuladores para interromper o fluxo natural de um debate, atraindo a atenção para si ou levando os outros a agir segundo seus objetivos); as batalhas virtuais pelo controle de hashtags em redes sociais, por exemplo. Embora a secundidade do dialógico esteja implicada na intenção do discurso, o fluxo se interrompe seja por conta de um conteúdo agressivo ou pela falta de interesse na troca.
72Mas, de maneira análoga ao dito sobre o quadrante da primeiridade da fruição e do fluxo, é bom não condenar o espaço como produto de uma inoperância, porque novamente basta pensar no uso mais comum: o número de diálogos nas redes sociais que você lê não é muito maior o dos que você participa? Você responde a todos os emails nos quais é copiado? Não consulta fóruns virtuais apenas como leitor para obter a informação que necessita, agindo como lurker (observador não participante), como se diz em inglês?
Secundidade na Fruição + Secundidade no Fluxo
São as interações digitais nas quais prima o dialógico tanto como intenção efetiva dos participantes quanto como dinamicidade do fluxo: os fóruns virtuais, as salas de chat, as redes sociais quando o diálogo ocorre em plena potência; os espaços de comentários quando os leitores começam a conversar uns com os outros, estendendo o debate; ou mesmo os posts em blogs ou redes sociais quando começam a repercutir uns aos outros, criando um campo de debate mais amplo não restrito a um local virtual específico. A secundidade do dialógico em fruição e fluxo é a “marca registrada” da interatividade virtual, afinal ser uma via da mão dupla é o diferencial técnico do meio.
O limiar de quando o diálogo opera efetivamente e quando é interrompido é muito tênue. Em grande medida, isto constitui um desafio constante para o qual existe o papel amplamente reconhecido do moderador. Uma de suas funções primárias recorrentes é motivar a participação, estimular o debate. Assim, como na outra ponta, precisa prevenir os conflitos, mediar os enfrentamentos e, eventualmente, decidir por aplicar sanções a condutas antagônicas ao debate. Não obstante este esforço, as possibilidades de interação muitos-muitos, das trocas assíncronas e da especialização temática dos espaços de troca (CINTRA, 2003) permitem uma nova potência do diálogo.
Secundidade na Fruição + Terceiridade no Fluxo
São as interações digitais capazes de transformar um espaço de diálogo em recurso produtor de novos discursos: os fóruns técnicos, especialmente os que, de maneira difusa e orgânica, tornam-se fonte de conhecimento reconhecido como elemento central do atendimento ao cliente por muitas empresas; os serviços de agregação de conhecimento nos quais usuários respondem a perguntas alheias, por vezes até com motivação monetária; as ferramentas de curadoria ou tagging social através das quais é possível construir repositórios comunitários de conhecimento. A secundidade na fruição plena do dialógico coloca em fluxo novos discursos. Quem os produz é o diálogo e/ou o debate.
A terceiridade origina de mecanismo de interatividade digital capaz de facilitar e motivar um diálogo utilitário. Muitas vezes, o que está em jogo são reputações, ou promessas de reciprocidade futura como diriam os pesquisadores em teoria do jogos (KOLLOCK, 1998; WELLMANN, 2006). E, embora a formação de uma comunidade não seja pré-requisito para a terceiridade em questão, como veremos adiante, é preciso haver não apenas o esforço para motivar a participação como também sistemas para aferi-la e comunicá-la, pois dela depende o produto discursivo almejado.
73Terceiridade na Fruição + Primeiridade no Fluxo
São as interações digitais nas quais um discurso primordialmente expressivo é produzido a partir de um arranjo coletivo: aqui não há tantos exemplos, mas a escrita coletiva possibilitada por wikis ou editores online é emblemática. Talvez não seja muito natural a ocorrência de uma produção coletiva onde o fluxo privilegia a expressão, e não motiva a troca dialógica. Mesmo assim, esta fruição de terceiridade criadora de novos fluxos discursivos alcançou grande relevância pública na forma das enciclopédias construídas coletivamente, e são cada vez mais populares no trabalho em grupo para manipulação distribuída de documentos digitais em editores online como os do Google Docs.
A primeiridade no fluxo sujeita as interações neste quadrante a uma maior incidência de conflitos. Não são raras as guerras de edição na Wikipédia, certos casos são até célebres (questão palestina, por exemplo). E por isso mesmo, algumas soluções de escrita coletiva recorrem à complementaridade de fluxos dialógicos, como ocorre nas páginas de discussão dos wikis. Não obstante, trata-se de um elemento em segundo plano, quase desconhecido do usuário médio, pois o foco central continua a ser uma produção discursiva, uma expressividade.
Terceiridade na Fruição + Secundidade no Fluxo
São as interações digitais a partir das quais prosperam as comunidades virtuais, situação nas quais a própria socialização potencializada é o resultado da produção coletiva: os exemplos são inúmeros, mas podem ser todos resumidos na formação comunitária, possível a partir de vários mecanismos de interatividade como fóruns virtuais, listas de email, redes sociais ou mesmo nas áreas de comentários de sites com uma audiência fiel. A terceiridade ocorre na produção de um fluxo socialmente sustentado. Cria-se um espaço de interações intensivas, onde o produto não são os conhecimentos disponibilizados pelo diálogo, mas sim a estrutura social que o sustenta.
Rheingold (1993) defende que comunidades virtuais efetivamente florescem quando as interações evoluem no sentido de constituir uma história coletiva, um sentido de pertencimento, e uma conduta social coletivamente sancionada. Os contornos são novamente complexos. Embora os critérios sejam plenamente válidos, muitas vezes alguma fruição de comunidade ocorre sem a produção efetiva de todas essas condições.
Terceiridade na Fruição + Terceiridade no Fluxo
São as interações digitais capazes de levar a produção coletiva à fruição, assim como gerar um fluxo produtivo capaz de sustentar não apenas o produto, como também a comunidade que o produz: comunidades de desenvolvimento de software livre são o caso mais exemplar, mas há na internet muitos outros coletivos capazes de agir de maneira cooperativa para atingir seus objetivos. Em uma pesquisa recente (CINTRA, 2014), foi possível colocar em evidência, no bojo de uma batalha virtual entre gamers e feministas radicais, criações coletivas plenas em terceiridade de fruição e fluxo. São paródias em vídeo de elevada sofisticação em sua criação e produção visual e musical. De maneira talvez mais surpreendente, apresentam alto engajamento comunitário, mesmo havendo nascido no ambiente absolutamente inóspito do imageboard 8chan (www.8chan.co), espaço no qual reina o anonimato, a interface gráfica é difícil e a linguagem utilizada um verdadeiro desafio, de compreensão quase impossível para um novato.
74A terceiridade, não da interatividade digital neste quadrante, produz algo que ultrapassa a comunidade descrita no anterior. Além da coesão social, a terceiridade combinada de fruição e fluxo formula as estruturas de produção coletiva. Ou seja, no caso das comunidades de software livre, o código é apenas parte da história, pois, antes e acima dele, há os mecanismos necessários à cooperarão efetiva e a “perenização” do grupo.
Uma outra tríade peirciana e complementar
Antes de avançar para o desafio da aplicação pedagógica do mapeamento semiológico proposto, existe uma outra tríade, cuja lógica também espelha as categorias fenomenológicas de Peirce (qualidade, relação e representação), tanto quanto é útil ao entendimento da interatividade digital: coordenação, colaboração e cooperação. Nesta semiose, o que entra em agenciamento é como tratamos os objetivos alheios nos diversos ambientes sociais a que somos submetidos. Na coordenação, ocorre o reconhecimento do objetivo alheio e a modificação de nossos atos para evitar um conflito, como ao dar passagem a um carro no trânsito depois de reconhecer seu sinal de alerta. A colaboração vai além do mero reconhecimento do objetivo alheio, visto que colaborar implica trabalhar para a finalidade que, embora permaneça do outro, passa a orientar seus atos. Já na cooperação, o objetivo alheio é plenamente assumido, passa a ser tanto do grupo quanto daquele que começa a cooperar para que se lhe alcance.
Apoiado em Himmelman (2002), Rheingold (2013) trabalha com estes três termos de maneira diferente: admite uma quarta classificação, networking que, no esquema acima, não se diferencia da coordenação; e enxerga a colaboração como caso de convergência superior entre os agentes em direção à ação coletiva. O entendimento defendido aqui parte do uso vulgar da linguagem: é possível colaborar com um objetivo de alheio, mas para cooperar o objetivo é assumido como próprio; analogamente, o funcionário de uma empresa privada é chamado de colaborador, e nela o lucro é do acionista, já o membro de uma cooperativa é um cooperado, e nela um possível lucro, ao menos em parte, será seu.
Embora a proposta aqui seja pela utilização de mais esta tríade para o entendimento da interatividade digital, não parece ser válido imaginar um outro eixo para a matriz descrita acima, elevando-a à complexidade de 27 quadrantes. Parece mais lógico entender este trinômio como um vetor difuso e transversal que se expande da possibilidade restrita à mera coordenação no quadrante 1.1 ao exercício pleno da cooperação no quadrante 3.3.
3. Indicações para um caminho à fluência digital
A aplicação das tríades de inspiração peirciana propostas acima à capacitação digital de jovens pretende estabelecer bases mais sólidas para a apropriação das habilidades solicitadas em diferentes situações práticas. É preciso entender como navegar entre a expressão, o diálogo e a produção, como o primeiro abre-se no segundo através das caixas comentários e chega ao terceiro por meio das simulações. É preciso entender por que o diálogo pode tanto ser restrito ao primeiro por meio do automático ou formulaico, quanto expandido ao terceiro na formação de uma estrutura comunitária.
75Em um trabalho com longo percurso ainda pela frente, a matriz pretende servir como estrutura para identificação das capacitações digitais necessárias a produzir as potencialidades recortadas por cada um de seus quadrantes. Várias dessas aptidões foram descritas por Rheingold (2013), o que merece crítica é sua categorização, pois junta:
- duas capacitações básicas, complexas, mas bem definidas - atenção e validação - ou como encontrar / selecionar e como avaliar o que merece ser lido;
- outras duas até mais autoevidentes - participação e colaboração - mas cujos contornos no digital são bastante amplos como bem demonstra a matriz; e
- uma expressão difusa - network smarts - pois tenta abarcar a complexidade política das redes, mas acaba agrupando habilidades muito distintas.
Ao mapeamento das tríades com as correspondentes capacitações digitais identificadas, é preciso adicionar uma abordagem eminentemente prática do aprendizado, especialmente importante para o público jovem. Isto se traduz, de um lado, no desenvolvimento de um grande banco de tarefas práticas desenhadas para exercitar todas as habilidades identificadas nas situações específicas de cada um dos quadrantes em que se manifestam; de outro, no uso constante das ferramentas de interatividade digital como veículo primário de interação além-aula, visto que, mesmo quando em parte presencial, boa parte do conteúdo prático vislumbrado deve ser exercitada a distância. O aprendiz precisa praticar no curso as capacitações estudadas: precisa escrever comentários, validar conteúdos, fazer pesquisas, utilizar um fórum, manter um blog.
Além disto, qualquer iniciativa de formação de jovens nas capacidades requeridas pela interatividade digital esbarra na profunda discrepância de conhecimento que se deve esperar entre os participantes de um grupo. Diferentes níveis de fluência em mecanismos de interatividade variados serão a regra. E essa disparidade, embora já bastante comum, torna-se ainda mais complexa no âmbito das redes sociais, pois essa constitui uma prática diuturna, vítima fácil de vícios e equívocos arraigados.
Neste sentido, o texto conclui defendendo o uso de técnicas de co-aprendizado como caminho praticamente obrigatório para a capacitação digital. São vários os coletivos hoje ativos na rede, cuja pesquisa investiga e desenvolve pedagogias horizontais. Estas vão além das chamadas estratégias ativas na educação, pois somam às metodologias participativas o aprendizado entre pares, alterando o fluxo de informação e conhecimento, que deixa de caminhar do professor ao aluno, passando a transitar em todos os sentidos, visto serem todos coaprendizes, inclusive o instrutor, entendido agora como guia do aprendizado.
Embora o escopo aqui pretendido não inclua uma discussão pedagógica, é importante comentar algumas das principais referências da estratégia indicada neste último trecho do texto. A primeira é uma vivência na forma da participação do autor em dois cursos à distância ministrados por Howard Rheingold sobre o tema da cooperação, em ambos os casos, mas especialmente no segundo, a problematização do processo de co-learning foi tratada diretamente pelo grupo, enriquecendo ainda mais a experiência. Mais um elemento valioso, também ligado a Rheingold, é o The Peeragogy Handbook (2014), uma produção coletiva em formato de manual que reúne definições, recursos e estratégias para o aprendizado colaborativo. O coletivo Connected Courses (http://connectedcourses.net/) é outra referência relevante, sua missão é criar uma rede de proponentes de cursos baseados em seis princípios: ensino (1) motivado pelo interesse, (2) centrado na produção, (3) apoiado pelos pares, (4) com propósitos compartilhados, (5) orientados academicamente, e (6) livremente conectados em rede. O periódico Hybrid Pedagogy (http://www.hybridpedagogy.com/) também trouxe referências importantes para um pensamento ainda difuso, carente, como já dito, de uma investigação mais estruturada.
76O próximo passo será a prática. A meta é transformar em curso a matriz proposta para a interatividade digital, com as respectivas capacitações digitais, combinada a uma abordagem centrada na experiência direta destas habilidades, em um ambiente de aprendizado horizontal, no qual alunos compartilhem conhecimento entre si sob a orientação do professor-instrutor. Apenas a experiência prática de ministrar tal curso poderá fornecer teste empírico de validade tanto à formulação teórica proposta quanto à estratégia pedagógica delineada. Já a relevância do tema, esta se impõe socialmente como bem concluem as poderosas palavras de Howard Rheingold escolhidas para encerrar o texto:
77Just as people in previous eras appropriated printing presses and telephones in ways that the inventors and vendors of the enabling technologies never imagined, the shape of the social, economic, political and mental infosphere now emerging from the combination of inexpensive tough powerful computers, mobile communication devices, and global digital networks is not yet fully hardened, and thus can still be influenced by the actions of literate populations. We’re in a period where the cutting edge of change has moved from the technology to the literacies made possible by the technology. (2013 p. 3)
Referências
BOYD, D. It’s complicated: The complicated lives of networked teens. New Hven: Yale University Press, 2014.
CINTRA, H. Dimensões da Interatividade na Cultura Digital. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003. 155 f.
CINTRA, H. #Gamergate: um relato de guerra. Blog do grupo de pesquisa Sociotramas, 15 de out. 2014. Disponível em http://sociotramas.wordpress.com/2014/10/15/gamergate-um-relato-de-guerra/. Acesso em 18 dez. 2014.
CINTRA, H. Resenha de ROSENSOHN, W. L. The Phenomenology of Charles S. Peirce. Amsterdam: R. R. Grüner, 1974. São Paulo: Centro de Internacional Estudos Peircianos, 2014. Disponível em https://estudospeirceanos.files.wordpress.com/2012/07/the-phenomenology-of-charles-s-peirce-por-hermano-cintra.pdf. Acesso em 18 dez. 2014
GRUSIN, R.; BOLTER, J. D. Remediation: Understanding New Media, Cambridge: The MIT Press, 1999.
GRUSIN, Richard Premediation: Affect and mediality After 9/11. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2010.
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