Diferenças cognitivas entre usuários jovens no ciberespaço

Autora

Kalynka Cruz

Kalynka Cruz é mestre pelo programa de estudos pós-graduados em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP. Atualmente é doutoranda na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Sorbonne - Descartes - Paris V. É professora na Universidade Federal do Pará.

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O ciberespaço, esse novo e admirável mundo – inversamente proporcional à sociedade organizada do conto de Aldous Huxley – é tão complexo, estimulante e inovador que apresenta a qualquer usuário desafios que vão exigir uma reformulação tanto de comportamento quanto de conceitos. Mesmo que não venha à tona e se esconda sob a superfície empírica, esta alteração se dará de toda maneira. A pluralidade de signos promovida pelas novas tecnologias, sobretudo pelo ciberespaço, precisa de uma alfabetização semiótica e exige um comportamento muito mais abdutivo de seus usuários, como explica Lucia Santaella (2004) e apesar das interfaces ditas intuitivas do ciberespaço apresentarem toda sorte de estímulos que visam torná-las mais fáceis, as interações iniciais são recheadas de dificuldade porque requerem o aprendizado de uma nova capacidade que é a de navegação, diferente das capacidades de ler e escrever. Surge, portanto, um novo leitor. E é sobre esse leitor imersivo, aqui chamado de usuário de ciberespaço, que nos detivemos neste trabalho, tanto para categorizar sua existência, quanto para levantar outras características de seu perfil cognitivo.

Entre os desafios cotidianos que este leitor enfrenta, está a navegação em camadas. Ele precisa abrir mão de seu conceito linear de informação para abraçar uma nova maneira de lidar com a informação que se torna totalmente referencial. Nenhuma informação se apresenta solta, única. Bastam alguns cliques para se ir de um mistério a uma solução. Como num jogo, a navegação ciberespacial é cheia de possibilidades e requer uma readequação dos caminhos lógicos do pensamento. Além disso, esse navegar em camadas apresenta um outro desafio que é o desafio da simultaneidade, porque, além de mergulhar de uma página à outra, ele pode manter e acessar várias camadas de informação a um só toque. Quando essa navegação ultrapassa o caráter imersivo e associa o caráter interativo, outro desafio é apresentado a esse usuário, que passa a responder a várias demandas ao mesmo tempo. Há, portanto, uma gama variada de estímulos cognitivos.

Ora, a emoção e a motivação influenciam sistemas neuronais que determinam quais informações serão “fixadas”, ou seja, as situações recheadas de atrativos que geram interesse, prazer e outras sensações propiciam a cognição. Comportamentos que se tornam hábitos, resultantes de fortes influências culturais – como a tecnológica –, são apontados como estimuladores de mudanças, como teorizou Gerald Edelman em sua Teoria da Seleção de Grupos Neuronais (1992) e como defendeu Vigotsky (1988) ao apontar a interiorização da cultura sob a forma de sistemas neurofísicos ligados diretamente à formação e ao desenvolvimento dos processos mentais superiores.

O ciberespaço, elemento e elo fundamental de uma cultura tecnológica globalizada, é recheado de situações emocionais de alegria, excitação, sensações de vitória, descoberta, entre outras. Isto significa que, além de lidar com uma multiplicidade de novos signos, os usuários de ciberespaço, à medida que estão em situações mais imersivas, são bombardeados por suas próprias emoções e, assim acreditamos, sofrem diversos tipos de influências cognitivas. Por outro lado, o bombardeio informacional é tão grande que podemos também supor que outras funções podem ser afetadas.

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A interatividade e a imersão vivenciadas no ciberespaço são responsáveis também pela reformulação de conceitos. Estes usuários passam a lidar com sensações que parecem distorcer a realidade de tempo, espaço e até mesmo de autoimagem quando se trafega do real ao virtual. Todas as sensações relatadas durante esta pesquisa, estão de alguma forma relacionadas com uma espécie de descorporificação, uma existência que independe do corpo, ou melhor, uma existência que remodela a relação corpo e espaço. A sensação de poder, de liberdade e, por mais contraditório que possa parecer a este exercício solitário, a sensação de estar em um meio social (quase físico) são muito frequentes.

1. Abordagem

Este artigo é uma versão resumida de um trabalho maior que está disponível integralmente na web para consulta (CRUZ, 2008) e foi atualizado/aferido em relação ao seu teor qualitativo por meio de novas entrevistas realizadas entre os meses de outubro e novembro de 2014, com o objetivo exclusivo de tornar este artigo atual e pertinente.

O principal objetivo desta pesquisa foi detectar diferenças cognitivas entre usuários de ciberespaço em níveis variados de imersão através da aplicação de uma bateria de testes cognitivos digitais, a CogState, que substituiu a bateria de testes tradicionais (testes de papel e caneta). Através de uma abordagem quanti-qualitativa, considerou-se tanto o desempenho cognitivo detalhado – levando-se em conta fatores como o nível geral de desempenho, a variabilidade no tempo das respostas e o número de erros – quanto o percentual referente a cada usuário em comparação a outros usuários em diferentes níveis de imersão. A aplicação da bateria cognitiva (CogState) e o levantamento de perfil cognitivo no que se refere ao número de horas conectado e tipos de atividades realizadas no ciberespaço, obtido através de observação de dados do questionário, compuseram o lado quantitativo dessa pesquisa. Já o perfil qualitativo, caracterizado por seu caráter dialógico, de construção e interpretação da realidade e por sua atenção ao estudo de casos singulares, deu-se através da análise individual de casos e da elaboração de um estudo que observou a subjetividade do sujeito inserido no seu contexto social, no qual sua experiência acontece, o que se deu através de entrevistas e também de investigação subjetiva derivada das respostas do questionário.

2. Indivíduos abordados

A expectativa inicial era que a população pesquisada fosse composta por jovens em idade escolar, entre 14 e 17 anos, usuários ou não de ciberespaço, moradores da região metropolitana de Belém (Pará), frequentadores de lan houses, redes sociais e sites de games. No entanto, duas mudanças foram necessárias. A primeira foi abrir mão do grupo de possíveis não-usuários. Todos os jovens consultados, nas ruas, nas escolas e em outros lugares públicos, afirmaram ter acesso ao ciberespaço. Empiricamente, foi possível, portanto, perceber que os não-usuários de ciberespaço quase não existem e, quando existem, é em uma esfera em que outros fatores podem influenciar nos resultados da pesquisa, gerando um falso resultado, uma vez que estes não-usuários de ciberespaço apenas não o são por severas restrições sociais. Para este trabalho não interessava esse não-usuário motivado por restrições sociais e sim o não-usuário por opção, uma vez que estas restrições de caráter social poderiam indicar outros fatores problemáticos de possível influência na cognição. Todos os jovens de classe média e classe média alta contactados afirmaram ser usuários em algum nível de imersão e foi este universo que decidimos investigar, usuários de classe média em seus extremos no que se refere ao nível de imersão: os mais conectados e os menos conectados.

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Também descobrimos logo nas primeiras investigações que as lan houses e a internet (orkut etc.) não eram lugares apropriados para aplicação da pesquisa. Nas cinco lan houses visitadas, em bairros em que moram as várias classes sociais (predominantemente Nazaré, classe média e média alta; São Braz, classe média; Guamá, classe média e classe média baixa e por fim 40 Horas, classe baixa), foi possível observar os mesmos problemas para a composição da população da pesquisa que eram não haver regularidade de frequência e o não interesse por parte dos possíveis sujeitos que se mostravam dentro do perfil (muito poucos). Nesses ambientes, foi encontrada grande variedade na idade, além de que a maioria dos frequentadores era de jogadores de games, elemento este que deveria constar na amostragem, mas não dominá-la.

Outro fator que foi determinante na mudança de local para seleção de amostragem foi o fato de que muitos usuários de ciberespaço frequentadores de lan house se auto-declararam viciados em tecnologia e muitos afirmaram não frequentar a escola já há algum tempo, mesmo estando em idade escolar, e, o pior, muitos deles sem que a família houvesse notado ainda o abandono da escola, porque em vez de ir à aula iam à lan house, vestidos com blusas por cima da farda escolar. Pelos motivos apresentados, a pesquisadora decidiu selecionar os voluntários em um só ambiente, no caso, em uma escola que mantivesse o perfil de jovens de classe média, em idade escolar regular, sem problemas de abandono escolar e usuários ou não de ciberespaço.

A pesquisadora decidiu por fim escolher uma escola particular de classe média que mantivesse um perfil de miscigenação social. Foi escolhido o Colégio Ideal, unidade de Ananindeua (região metropolitana de Belém).

Para a aplicação dos testes, foram selecionados jovens entre 14 e 17 anos, estudantes do ensino médio. A seleção se deu por meio da apresentação do projeto de pesquisa em sala de aula, onde a pesquisadora era apresentada pela coordenação e explicava o que era sua pesquisa. Após esta apresentação, quem declarasse ter interesse em participar deveria responder a um questionário selecionador e classificatório. Durante a coleta de dados, foram adotados vários critérios de corte, entre eles, limite de idade, modo de acesso à tecnologia (casa ou lan house), condição escolar (se já repetiu ou não de ano) e disponibilidade de horário para fazer os testes.

Foram utilizados três tipos de instrumentos: questionário, entrevista e a bateria de avaliação cognitiva computadorizada.

Questionário – o questionário de avaliação de perfil foi elaborado a partir de um roteiro lógico sobre tecnologia, abrangendo ainda as questões sobre dependência à internet, de acordo com as recomendações de Young (apud NABUCO, 2007). O questionário foi composto de perguntas fechadas (sim ou não) e descritivas (ex: se sim, quantas horas por dia?). A organização desse instrumento se deu por blocos temáticos, respeitando-se o enfoque específico de cada questão, limitando as perguntas ao tema da pesquisa e sem possibilidade de interpretação dúbia.

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Entrevista – o modelo de entrevista adotado foi o modelo despadronizado, que seguiu um roteiro básico, mas sem rigidez, permitindo-se assim que alguns pontos fossem mais explorados de acordo com o perfil de cada entrevistado. Levaram-se em consideração as declarações feitas e as respostas dadas no questionário. Aprofundaram-se durante as entrevistas assuntos que se destacaram no questionário, como, por exemplo, no caso de jovens que se declararam não-usuários, foram investigados todos os tipos possíveis de conexão que pudessem estar sendo omitidos por desconhecimento ou mesmo esquecimento. O roteiro básico era iniciado com perguntas sobre a vida familiar (“Mora com quem?”; “Tem irmãos?”; “Quantos?”), até chegar a perguntas específicas relacionadas com as respostas anteriores (“Então sua avó não se importa em você passar a noite conectado?” ou então “Você divide o computador com seus três irmãos, como é feita essa divisão?”). Esse detalhamento e enfoque subjetivo ajudou a construir melhor o perfil de cada usuário. No fim da entrevista, o questionário era repassado com o sujeito, para reafirmação das respostas e eventuais correções.

Bateria de Avaliação Cognitiva Computadorizada – a avaliação do desempenho cognitivo foi realizada através da aplicação de uma bateria de avaliação cognitiva computadorizada com duração de 10 minutos – validada internacionalmente – e que é composta por um conjunto de testes que mensuram tempo de reação simples e de escolha, memória de trabalho e de curto prazo e atenção concentrada.

3. Ocasional, excessivo e extremo

Avaliação e sistematização de perfil

Nas primeiras entrevistas, nas quais ainda se fazia um levantamento sobre o local ideal para coletar a amostra populacional, foi percebido que a terminologia “não-usuário” de ciberespaço pode ser “errônea”, uma vez que, mesmo que involuntariamente, ou por obrigação, há uma grande chance de um sujeito ser usuário de ciberespaço. Foi abandonada por isso a ideia de se coletar grupos de usuários e não-usuários. Surgiu o primeiro ponto a ser investigado e considerado, antes de se dar continuidade à pesquisa: os usuários e seus níveis de imersão.

Nas entrevistas realizadas nas lan houses, foi percebido que o tempo e o ambiente virtual de acesso seriam fundamentais para a definição de um perfil. Havia muitos jogadores nas lan houses, mas estavam presentes jovens que permaneciam muitas horas no ciberespaço sem, no entanto, estar jogando. O que eles faziam tanto tempo conectados? E os jogadores? Qual sua frequência média de acesso quando eles não são “viciados”? Cabe esclarecer que “viciado” é um termo usado entre os próprios usuários para definir aqueles que passam muito tempo conectados e que abrem mão de estudo, vida pessoal, para permanecerem no ciberespaço. Foi relativamente comum encontrar esses usuários. Em alguns casos, a pesquisadora retornou por até quatro vezes ao mesmo local para se certificar da presença dos mesmos jovens. Em todos os casos, os próprios usuários reconheciam a extensão de sua dependência.

Sobre estes usuários, definimos dois pontos neste trabalho. O primeiro é que, ao serem citados, eles seriam chamados “usuários extremos”, conforme poderá ser entendido mais adiante. A segunda definição é que este tipo de usuário não poderia fazer parte da população pesquisada, uma vez que a adicção envolve uma série muito mais complexa de problemas cognitivos relacionados.

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O que foi percebido nos questionários respondidos nas lan houses e entrevistas ajudou no direcionamento da pesquisa dentro das escolas. Com a motivação sobre a aplicação da pesquisa nas escolas explicada anteriormente, podemos diretamente tratar aqui dos resultados obtidos com a aplicação do questionário. A partir da análise de todos os questionários aplicados e também com base nos relatos coletados nas entrevistas, pudemos perceber que os usuários se definem de acordo com o tempo e nível de imersão.

A primeira diferença categorizadora se dá quanto ao tipo de imersão no ciberespaço. Eles podem ser “usuários navegadores” ou “usuários jogadores”.

Usuários navegadores são aqueles que usam o ciberespaço principalmente com objetivo de navegar e se relacionar (interação sincrônica e assincrônica).

Usuários jogadores são aqueles usuários que, embora naveguem e se relacionem no ciberespaço, utilizam-no principalmente para jogar.

Uma vez definidas a caracterização e a terminologia quanto ao tipo, surge a necessidade de se categorizar estes usuários quanto ao nível de imersão. Tanto jogadores quanto navegadores possuem níveis diferenciados, conforme pudemos observar na pesquisa de campo e na análise dos questionários. Estes níveis facilitaram a identificação e a consequente terminologia final. Entenda-se como nível uma caracterização que considere tanto as horas de imersão quanto os hábitos desenvolvidos no ciberespaço.

Foram detectados três níveis diferentes de imersão, determinados por hábitos que incluem tempo e modo de imersão.

Jogador / navegador OCASIONAL

Tomando-se como pressuposto que ocasional (adj.) é aquilo que “ocorre, ou aparece de tempos em tempos; não habitual. (...); 3. Que se deve ao acaso; casual; imprevisto” (SACCONI, 2000: 488), jogador e navegador ocasionais são, portanto, aqueles que usam por força de circunstâncias favoráveis, não planejadas, de maneira fortuita, o ciberespaço.

Jogador / navegador EXCESSIVO

De acordo com a definição dicionarizada, excesso é aquilo “que excede a medida, o limite, a normalidade, ou a suficiência. (...). adj. Excessivo” (SACCONI, 2000: 318). Jogador e navegador excessivos são desta forma definidos nesta pesquisa como aqueles que usam o ciberespaço de maneira planejada, excedendo os limites da normalidade ou da suficiência.

Jogador / navegador EXTREMO

Extremo (adj.) significa aquilo que “está no ponto mais remoto de alguma direção. 2. Muito intenso. 3. Radical em atitudes; opiniões. 4. Drástico; muito severo (...); 9. Atitudes extremadas; exagero” (SACCONI, 2000: 325). Assim, jogador ou navegador extremo é aquele que usa o ciberespaço de maneira extremada, subvertendo os limites do uso excessivo, ou seja, os comumente chamados de viciados.

A definição dos tipos de usuários de acordo com seu nível de acesso e imersão não pode ser, no entanto, aplicada apenas com métodos cartesianos que envolvam a contabilidade das horas e dias de acesso. Na verdade, só foi possível definir os tipos de usuários a partir de um estudo minucioso sobre os questionários, as entrevistas, a pesquisa de campo e a própria vivência da pesquisadora no ciberespaço. Os níveis de usuários se dão quanto às horas que passam conectados, fator muito importante, mas também quanto aos hábitos que devem indicar o nível de envolvimento desse usuário. Por exemplo, um aluno que passa uma semana acessando a internet por muitas horas porque está respondendo uma webquest proposta em sala, mas que normalmente não acessa com essa frequência e nem se sente tentado a acessar, não tendo essa vivência por hábito, não é um Navegador Excessivo, porque seu acesso se dá por um motivo específico, ocasional, e porque ele não carrega com ele um perfil de quem se conecta à tecnologia com facilidade. Por outro lado, um Navegador Excessivo que, por estar em época de prova, diminui suas horas e frequência de acesso, não pode ser chamado de Navegador Ocasional, porque o ciberespaço não é uma coisa fortuita em sua vida, faz parte de seu cotidiano.

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A partir da classificação destes usuários, definimos que iríamos trabalhar com a análise de dois grupos específicos: os Ocasionais e os Excessivos, fossem eles navegadores ou jogadores. Foram envolvidos na pesquisa cinco representantes de cada um dos dois grupos. Também foi possível, a partir das entrevistas e questionários, construir uma espécie de perfil de navegação e acesso destes usuários. Que tipos de sites mais acessam, como dividem seu tempo na internet, entre outras informações, são dados interessantes que estão no trabalho integral disponibilizado na rede.

4. Diferenças cognitivas entre ocasionais e excessivos

Uma vez definidos os níveis e tipologias destes usuários como jogadores e/ou navegadores ocasionais, excessivos ou extremos, de todos os voluntários pesquisados, selecionamos dez Usuários Ocasionais e Usuários Excessivos a serem submetidos aos testes cognitivos. O fato de serem Jogadores ou Navegadores não foi considerado na seleção separadamente e sim quanto mais estes sujeitos se aproximavam do perfil ideal de usuários Excessivos e Ocasionais.

4.1 Testes cognitivos

A bateria de testes CogState foi composta de cinco tipos testes, sendo que um deles, o de Tempo de Reação, é realizado duas vezes durante a bateria. De maneira geral, os testes avaliam o desempenho cognitivo referente aos domínios da velocidade de processamento de informações; tomada de decisão; memória de trabalho; memória de curto prazo e atenção concentrada. Os dados fornecidos pelo software incluem tempos de reação em cada tarefa, a variabilidade deste tempo de reação, o número de respostas certas e erradas, os tipos de erro cometidos em cada tarefa etc. O programa permite, segundo Luft, visualizar os dados normatizados. Assim, o seu uso em pesquisa fica adequado, permitindo ao pesquisador uma análise estatística mais fidedigna.

Os “Indicadores Gerais de Desempenho” utilizados foram: Mean_TPTN: Média do tempo de resposta em milisegundos; SD_TPTN: Desvio-padrão do tempo de resposta em milissegundos; HitRate: Percentual de acertos; LogMean_TPTN: Média do tempo de resposta transformado em logaritmo de base 10; LogSD_TPTN: Desvio-padrão do tempo de resposta transformado em log10; LogMedian_TPTN: Mediana do tempo de resposta transformado em log10; TP_LogMean: Média do tempo de resposta (TR) para as respostas positivas (mão dominante) em log10; TP_LogSD: Desvio-padrão do TR para respostas positivas em log10; TN_LogMean: Média do TR para respostas negativas (mão não dominante) em log10; TN_LogSD: Desvio-padrão do TR para respostas negativas em log10. Além dos indicadores gerais de desempenho utilizados, os testes também apresentam um ranking no qual são elencados os Counts de cada sujeito; eles são: Contagem de hits (acertos); Erro (número de erros); TPos (positivos verdadeiros); TNeg (negativos verdadeiros); FPos (falsos positivos);FNeg (falsos negativos); MaxO (erros por tempo ultrapassado para resposta); e Anti (antecipações).

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4.2 Tratamento estatístico

No estudo dos resultados demonstrados na bateria de avaliação cognitiva, foi utilizada análise estatística não-paramétrica. Muitas das bibliografias sobre pesquisa (dissertações e teses) consultadas que envolvem investigação científica na área de humanas, como a Psicologia, por exemplo, indicam a utilização de testes não paramétricos. A estatística não-paramétrica tem seu uso mais apropriado em pesquisas em que não se conhece bem a distribuição da população e seus parâmetros. No entanto, a escolha deste método se justifica também por ser um método de análise estatística que é acessível mesmo aos pesquisadores iniciantes. As provas não-paramétricas são aplicáveis a pequenas amostras, como no caso em que se esteja coletando dados para um estudo-piloto ou ainda quando as amostras devam ser pequenas por sua própria natureza. O que sem dúvida, em ambos os casos, é a situação desta pesquisa.

As técnicas não-paramétricas de provas de hipóteses são particularmente adaptáveis aos dados das ciências do comportamento. Tais provas chamam-se a miúdo “distribuição livre”, e um de seus méritos é que, ao aplicá-las, não é necessário fazer suposições sobre a distribuição da população da qual tenham sido extraídos os dados para análise, por exemplo, se a distribuição é normal etc. Alternativamente, tais provas são também identificadas como “provas de ordenação”, e essa designação sugere outra vantagem das mesmas: as técnicas não-paramétricas podem ser aplicadas a dados que não sejam exatos do ponto de vista numérico, mas que se disponham simplesmente em “pontos”, ou números de ordem (SIEGEL, 1975:06).

O teste não-paramétrico utilizado nesse trabalho é o teste de Kruskal Wallis, indicado para comparar duas ou mais populações independentes e funciona com ordenação (em ordem crescente), do conjunto de valores da variável, em que cada observação recebe um posto correspondente, o que também se aplica perfeitamente a esta pesquisa. A aplicação da prova estatística sobre os resultados foi feita através do Minitab, um software destinado à análise de testes paramétricos e não-paramétricos.

4.3 Mais rápidos

O que me surpreendia nesse modo de ler era a sincronia da cognição com os aspectos sensório-motores, a motricidade física expressa na prontidão das respostas, em certo modo de reagir sensitivo e muscular, em suma, o controle motor exímio, agilidade e instantaneidade das ligações entre a mente que pensa, o olho que perscruta e o corpo que reage numa extremidade da mão (2004, p. 55).

De fato, como já havia observado Santaella, a sincronicidade da cognição com os aspectos sensório-motores é surpreendente. Pudemos observar com a bateria de testes que, em comparação aos Usuários Ocasionais, os Usuários Excessivos foram mais rápidos, mais sincrônicos e mais antecipatórios.

O teste de Tempo de Reação Simples (SRT1) teve como objetivo avaliar o desempenho cognitivo em relação à velocidade do processamento de informações dos sujeitos pesquisados. Foi o primeiro teste realizado na sequência de aplicação da bateria cognitiva e se repete no fim da bateria. Ele tem como objetivo avaliar o desempenho cognitivo em relação à velocidade no processamento de informações dos sujeitos pesquisados. Essa velocidade é avaliada em milissegundos, sendo considerada a média desse tempo (Mean_TPTN) para cada sujeito. O teste consiste em clicar o mais rápido possível quando uma carta aparece virada para cima.

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Neste teste, houve diferença significativa entre os grupos 1 (Excessivos) e 2 (Ocasionais). Todos os sujeitos do grupo de Usuários Excessivos (UE) foram mais rápidos que os Usuários Ocasionais. No geral, o tempo de resposta dobrou de um grupo a outro. Por exemplo, o Usuário Excessivo 1 foi exatamente 48% mais rápido que o Usuário Ocasional 5 (1 e 5 são pontos extremos de cada grupo). Foi possível observar que não houve nenhuma intersecção entre os dados, comprovando a evidente diferença entre os dois grupos. No fim da bateria cognitiva, este mesmo teste foi repetido, e a diferença no Tempo de Reação Simples manteve-se, ou seja, os usuários excessivos foram mais rápidos.

Outro teste que mediu a velocidade destes jovens foi o de Tempo de Reação de Escolha (ChRT). Foi o segundo teste aplicado na sequência da bateria cognitiva. Nele, também foi avaliada a velocidade do sujeito observado, no entanto, desta vez, foi levado em consideração o tempo de processamento de velocidade deste sujeito quando ele, além de reagir a um estímulo, deve fazer uma escolha. Neste teste, o sujeito deve responder (escolhendo uma tecla que corresponde à resposta sim ou a não) se a carta que aparece é vermelha ou não.

Em relação ao Tempo de Reação de Escolha, houve um aumento em ambos os grupos, que se tornaram mais lentos nessa tarefa. No entanto, mesmo com essa alteração, os Usuários Excessivos mantiveram-se como grupo que desempenhou a tarefa com maior velocidade, havendo desta vez uma pequena, mas não significativa, intersecção entre os resultados do usuário mais lento de um grupo e do mais rápido de outro. É importante ressaltar que exatamente nessa faixa de intersecção estão os sujeitos que mais destoam em nível de imersão de seu grupo, sendo compreensível, portanto, esta intersecção.

4.4 Memória requer estudo longitudinal

A memória pode ser considerada uma das funções mais complexas do cérebro humano, por isso, de forma alguma, pretendia-se extinguir o assunto sobre a memória. Apenas buscamos algum direcionamento. Dois testes de memória foram realizados: o teste de Memória de Trabalho e o de Memória de Curto Prazo. No Teste de Memória de Trabalho (OneB), o terceiro teste realizado na bateria cognitiva, foram avaliados, além da média do tempo de evocação da Memória de trabalho (Mean_TPTN), a capacidade da Memória de Trabalho (erros, acertos). Neste teste, foram apresentadas cartas de naipes e cores diferentes e o sujeito deveria responder se a carta que se apresentava era exatamente igual à carta anterior. Este foi o teste que apresentou o menor pecentual de diferenças entre os dois grupos, e houve total intersecção entre os resultados dos dois grupos.

Já no Teste de Memória de Curto Prazo (Ln1T), um pouco mais complicado que o anterior, perguntava-se ao sujeito observado se as cartas que apareciam já haviam aparecido antes neste mesmo teste. O usuário deveria responder sim ou não, quando a carta aparecesse. Entre os indicadores de desempenho avaliados na Memória de Curto Prazo, os considerados neste estudo foram a média do tempo de resposta, os acertos e os erros, além das antecipações. Em relação à média de tempo, também não houve diferença significativa entre os dois grupos, no entanto, quanto ao índice de erros, pode-se perceber que visivelmente o Grupo 2, de Usuários Ocasionais, foi o que mais errou, o que nos indicou que os Usuários Excessivos demonstraram ter capacidade de armazenar informações por um tempo maior. No entanto, estes estudos sobre memória devem ser melhor desenvolvidos e estudados por envolverem uma gama muito maior de assuntos relacionados e considerações subjetivas a serem feitas.

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4.5 Mais sincrônicos

O teste que avaliou a Atenção Sustentada (IndM), ou seja, a habilidade de manter a atenção em algo por um determinado período, foi onde pudemos encontrar resultados ainda mais significativos do que nos testes de velocidade. Este teste teve entre os seus marcadores analisados, o tempo médio em que um sujeito reage ao estímulo e também a quantidade de vezes que um sujeito responde sincronicamente a este estímulo (acertos) ou não (antecipação ou omissão). Neste teste, foi solicitado ao sujeito que ele se mantivesse concentrado nas cinco cartas que apareciam na tela e que se movimentavam verticalmente. Cada vez que uma destas cartas tocasse as linhas superior ou de base, o sujeito deveria clicar em uma determinada tecla (K), para que a carta voltasse ao lugar.

Este teste mostrou que Usuários Excessivos são super atenciosos, no sentido lato da palavra, uma vez que no Teste de Avaliação Sustentada puderam-se observar grandes diferenças entre os grupos. Os Excessivos, além de serem mais atentos, continuaram sendo velozes e foram os usuários que tiveram maior sincronicidade de respostas. A média de tempo de resposta foi destacadamente menor para os Usuários Excessivos, ou seja, eles responderam em média 40% mais rapidamente que os Usuários Ocasionais. Em relação às antecipações, elas foram também mais frequentes no grupo dos Usuários Excessivos. O número de respostas sincronizadas (quando o usuário reagia no momento exato da solicitação) também foi maior para os Usuários Excessivos.

Esse não é um teste fácil de ser compreendido, justamente porque os Usuários Excessivos acertaram e erraram mais. Como assim? Bem, eles acertaram mais porque foram mais atentos e sincrônicos, ou seja, responderam no momento exato em que foram solicitados, no entanto, essa atenção concentrada, ao que indicam os testes, veio acompanhada de certa impaciência ou ansiedade (mais provável), o que resultava em mais erros por antecipação, porque os Excessivos foram os que mais responderam milissegundos antes do momento correto. Para entender essa contradição, precisamos saber que os Usuários Ocasionais erraram bastante, mas não por antecipação e sim por serem consideravelmente menos sincrônicos, errando, portanto, por atraso.

5. Hoje à tarde, no Facebook!

Uma das primeiras observações deste trabalho foi a de que é muito difícil e demanda muito tempo encontrar uma amostra ideal com níveis bem determinados de imersão, uma vez que a relação com a tecnologia é fluida e mutável. No entanto, apesar desta dificuldade, foi possível determinar tipos e níveis de usuários, o que acreditamos já é uma razoável contribuição com os estudos deste campo. Os Jogadores e Navegadores, em seus níveis Ocasionais, Excessivos e Extremos, representam um ponto inicial para se compreender cada vez mais estes usuários. Tais definições, é claro, devem ser feitas levando-se em consideração, além do tipo de conexão e das horas conectadas, o perfil subjetivo deste usuário.

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Ter considerado neste trabalho o perfil de navegação e acesso dos usuários também nos pareceu fundamental para que se abrisse aos olhos do leitor maior clareza sobre a população investigada. Afinal, quem é esse estranho que se avizinha e por vezes está dentro da minha própria casa? Porém, mais importante do que definir a tipologia e o perfil destes usuários, foi conseguir compará-los, além de confirmar algumas das hipóteses deste trabalho. Acreditávamos que os usuários de ciberespaço mais imersivos, os Usuários Excessivos, por trabalharem em camada, e habitualmente serem submetidos com mais frequência a problemas alineares, acabam por reagir mais rapidamente e de maneira abdutiva. No entanto, por estarem mais expostos a tantos signos e informações, acabariam apresentando problemas de memória e raciocínio e, em oposição, os Usuários Ocasionais de ciberespaço seriam mais lentos e desatentos.

Pode-se dizer que todas as hipóteses foram confirmadas, com exceção daquilo que se relacionava à memória. Vejamos:

O Tempo de Reação Simples, primeiro teste realizado na bateria cognitiva e que teve como objetivo avaliar a velocidade no processamento de informações dos sujeitos pesquisados, mostrou diferença significativa entre os Grupos 1 e 2. Todos os sujeitos do Grupo 1, de Usuários Excessivos, foram mais rápidos que os do Grupo 2, os Usuários Ocasionais, e em quase todos os sujeitos o tempo de resposta dobrou. Isso era de se esperar, afinal usuários que jogam games e que vivem no ciberespaço jogando ou navegando, alterando sua navegação de uma página a outra com um simples “ALT TAB” ou respondendo a estímulos diversos com o mouse, agilizam a relação entre o estímulo da tela e o toque com o dedo e respondem a vários estímulos ao mesmo tempo, o que resulta em maior velocidade, o que se aplica principalmente quando uma escolha tem que ser feita, como foi comprovado no teste de Tempo de Reação de Escolha, no qual o grupo de Usuários Excessivos também foi notadamente mais rápido. Neste teste, foi avaliada a velocidade do sujeito levando-se em consideração o tempo de processamento de velocidade deste sujeito quando ele é estimulado a fazer uma escolha, antes de responder. Imaginemos a seguinte situação, muito comum aos usuários. Um usuário bate papos particulares no WhatsApp com três amigos separadamente, a cada fração de minuto, um deles fala uma coisa diferente ou envia um arquivo, vídeo, etc.

Esse usuário precisa responder rapidamente e pensar o que vai e a quem vai responder. No caso dos jogadores, a relação com a velocidade é ainda mais direta e há outras explicações a serem somadas, entre elas a necessidade de esse Jogador ser mais rápido ao estímulo visual, sob pena de “morte”, ou “derrota”.

Quanto à Memória de Trabalho, este estudo não apresentou dados significativos. O de Memória de Trabalho foi inclusive o teste que apresentou menor número de diferenças entre os dois grupos. Na Memória de Curto Prazo, a média de tempo também não mostrou diferença entre os dois Grupos. No entanto, quanto ao índice de erros, o Grupo 2, de Usuários Ocasionais, foi o que mais errou. Acreditamos que os Usuários Excessivos acabam treinando a Memória de Curto Prazo, uma vez que precisam com grande frequência recorrer a ela no ciberespaço, respondendo a diversos estímulos concomitantemente. Mas cabe ressaltar que, na avaliação da pesquisadora, em relação às memórias seria necessário realizar uma pesquisa específica com testes mais detalhados.

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Por fim, pudemos observar grandes diferenças entre os grupos quanto à questão da Atenção Sustentada. Os Usuários Excessivos foram mais rápidos e mais sincrônicos em suas respostas, no entanto, também foram os que mais se anteciparam.

Concluímos que, além da rapidez, a capacidade de reação no tempo necessário foi destacada no caso dos Usuários Excessivos, bem como a antecipação. Justificamos tais alterações com essa prática cotidiana de responder a vários estímulos ao mesmo tempo e na maior velocidade possível. Por outro lado, essa postura competitiva e essa pressa já condicionada, acabaram tornando estes Usuários Excessivos de certa forma mais imprudentes, porque, apesar de atentos aos estímulos, eles quase respondem antes de pensar, tamanhas são a sua velocidade e a postura competitiva, dinâmica, diante dos desafios que se apresentam. Não é à toa que os Usuários Excessivos foram os que mais se destacaram em termos de velocidade, sincronismo e atenção. Eles vivem o ciberespaço e fazem dele seu modus operandi.

Chegamos ao limite a que queríamos chegar neste trabalho. Obtivemos resposta positiva à pergunta principal sobre a existência de diferenças cognitivas entre usuários e não-usuários de ciberespaço. Esperamos continuar esta investigação numa próxima etapa, com um trabalho longitudinal que possa utilizar-se de mais e modernos instrumentos, além dos já utilizados. Como estas mudanças influenciam o cotidiano destes jovens, como podem ser melhor aproveitadas estas diferenças e, sobretudo, de que maneira pode-se potencializar a educação no ciberespaço são as perguntas que deixamos para uma próxima pesquisa e também para os próximos pesquisadores.

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Referências

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