Cognição social e os jovens

Autora

Patrícia Fonseca Fanaya

Patrícia Fonseca Fanaya é Bacharel em Comunicação – Publicidade e Propaganda pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutora em Comunicação e Semiótica na PUC-SP, Foi pesquisadora visitante com bolsa CAPES/FULBRIGHT, no departamento de Filosofia da Penn State University (PSU), PA, USA, sob co-orientação do Prof. Vincent Colapietro.

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1. O papel constitutivo da cultura na cognição humana

O orador romano Cícero parece ter sido o primeiro que se tem notícia a utilizar o termo cultura relacionando-o à alma — cultura animi (cultivo da alma) — em sua obra Tusculanae Disputationes. Cícero utilizou-se de uma metáfora agrícola para dar sentido à ideia de desenvolvimento de uma alma filosófica compreendida como o supremo ideal de desenvolvimento humano:

...it is not every mind which has been properly cultivated that produces fruit; and, to go on with the comparison, as a field, although it may be naturally fruitful, cannot produce a crop without dressing, so neither can the mind without education; such is the weakness of either without the other. Whereas philosophy is the culture of the mind: this it is which plucks up vices by the roots; prepares the mind for the receiving of seeds; commits them to it, or, as I may say, sows them, in the hope that, when come to maturity, they may produce a plentiful harvest. (CÍCERO, EBook #14988, p. 69)

A metáfora de Cícero reapareceu na Europa moderna no século XVII para referir-se ao aperfeiçoamento dos indivíduos por meio da educação. Durante os séculos XVIII e XIX, o termo passou a se referir com mais frequência às referências e valores comuns compartilhados por populações inteiras.

Alguns cientistas, entre eles o antropólogo Edward Tylor, considerado o pai do conceito moderno de cultura, em sua obra Primitive Culture, de 1871, definiu o conceito nos seguintes termos: “Cultura ou civilização, tomada em seu sentido etnográfico amplo, é a complexidade que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade” (TYLOR,1920, p.1). Entretanto, foi durante o século XX que a cultura emergiu como um conceito central à antropologia, abrangendo todo o espectro de fenômenos humanos que não podem ser atribuídos diretamente à herança genética.

Entre os diversos usos do termo “cultura”, agora no campo da biologia (cultura celular, de tecidos, de órgãos, de micro-organismos, etc.), há também sua utilização para se referir ao aprendizado essencialmente social dos indivíduos pertencentes a determinadas populações que as permitem desenvolver maneiras diferentes de fazer as coisas. O processo envolve a transmissão social de comportamentos novos, tanto entre os pares como entre as gerações, e são compartilhados por indivíduos de uma mesma população, mas não necessariamente entre grupos distintos de uma mesma espécie. A adoção dessa ampla perspectiva do que seja cultura — que a toma como processo e não como produto social — torna possível que se considere que muitas espécies de animais vivem em grupos culturalmente distintos. Entretanto, dentre todas as espécies de animais, os seres humanos têm se mantido, ao longo do tempo, como a espécie cultural paradigmática.

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Inúmeros têm sido os cientistas que se aprofundaram no papel constitutivo da cultura na cognição humana, dentre eles: Merlin Donald, Horst Hendriks-Jansen, Edwin Hutchins, Ann Cale Kruger, Hilary Ratner, Michael Tomasello, entre outros. Guardadas as diferenças de suas áreas de atuação e as peculiaridades de suas teorias, esses pesquisadores defendem a ideia de que aquilo que chamamos de mente emerge a partir do processo desenvolvimental de enculturação, que, em última instância, é o processo de transmissão cultural ao longo de gerações. O entendimento aqui é que a mente humana não deve ser reduzida aos processos cerebrais dos indivíduos isoladamente, porque, de acordo com essa abordagem, também conhecida como enculturalista, nossa atividade mental é de natureza fundamentalmente social e, portanto, dependente da interação com os outros.

Embora os trabalhos de pesquisa desses e de tantos outros cientistas nos permita ver claramente que não há sentido em pensar a cultura e a natureza como domínios distintos ou opostos, mas, ao contrário, existentes em continuum, ainda persiste uma tendência muito popular de se conceituar o desenvolvimento cognitivo humano a partir de modelos dicotômicos, os quais costumam contrapor a mente ao corpo, o corpo ao ambiente, o interno ao externo, a natureza à cultura, e assim por diante. Para Merlin Donald (2001, p. 150 apud THOMSON, 2010, p. 403):

Nossa dependência da cultura é muito profunda e se estende até a própria existência de certos tipos de representação simbólica e de pensamento. Os seres humanos socialmente isolados ão desenvolvem a linguagem ou qualquer outra forma de pensamento simbólico, e não possuem símbolos verdadeiros de qualquer tipo. Na verdade, o cérebro humano isolado não atua como um órgão que simboliza mais do que o faz o cérebro de um primata. Ele é aparentemente incapaz de gerar representações simbólicas por si mesmo. Fá-lo apenas através de enculturação intensiva.

2. O papel das instituições e tecnologias sociais na cognição

As práticas e os comportamentos sociais aprendidos, os artefatos e as tecnologias criados, transmitidos e melhorados pelos variados grupos humanos ajudaram-lhes a sobreviver, adaptar-se e evoluir. Tomasello, Kruger, e Ratner (1993, p. 495-552) distinguiram a aprendizagem cultural humana de outras formas de aprendizagem social, identificando três tipos básicos: aprendizagem imitativa, aprendizagem instruída e aprendizagem colaborativa. Estes três tipos de aprendizagem cultural, segundo os autores, são possíveis em função de uma forma muito única e especial de cognição social, ou seja, a capacidade dos organismos individuais de entenderem que outros membros da espécie são seres como eles e que possuem vida como eles próprios. Esse entendimento permite que os humanos se imaginem “no lugar” do outro, de maneira que isso os torna capazes de aprender não apenas a partir desse outro, mas através dele.

A compreensão do outro como um ser com intenções, assim como seu próprio self é fundamental na aprendizagem cultural humana, porque as práticas sociais e os artefatos culturais — tipicamente exemplificados pelo uso de símbolos linguísticos e ferramentas — invariavelmente apontam para além deles mesmos, em direção a outras entidades externas: os símbolos linguísticos apontam para as situações comunicativas que se destinam a representar e as ferramentas apontam para os problemas que se destinam a resolver.

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De acordo com Michael Tomasello, em seu livro Why we Cooperate (2009, p. X e XI), o processo de evolução humana apresenta duas características claramente observáveis e também distintas de outras espécies: (a) a evolução cultural cumulativa e (b) a criação de instituições sociais.

A evolução cultural cumulativa corresponde à constatação de que tanto os artefatos quanto as práticas culturais se tornaram mais e mais complexas com o passar do tempo. Quando um indivíduo de uma determinada população cria/inventa um artefato ou um novo jeito de fazer alguma coisa, outros são capazes de rapidamente aprender a fazer aquela mesma coisa e, ainda, melhorá-la. Além disso, se outro indivíduo realiza alguma melhoria, todos os outros — incluindo as crianças em desenvolvimento — tendem a aprender a versão nova e/ou melhorada. Ou seja, à medida que crescem, as crianças humanas estão equipadas para participar neste groupthink cooperativo através de um tipo especial de inteligência cultural, que compreende habilidades e motivações sócio-cognitivas que são únicas da espécie para a colaboração, comunicação, aprendizagem social, e outras formas de intencionalidade coletiva compartilhada (ibid., p. XVI).

Na filosofia da mente, a intencionalidade coletiva caracteriza a intencionalidade que ocorre quando dois ou mais indivíduos realizam uma tarefa em conjunto, como, por exemplo, quando dois indivíduos carregam juntos uma mesa pesada por um lance de escadas ou dançam um tango.

A segunda característica apontada por Tomasello (Ibid., p. XI) são as instituições socias. As instituições sociais são constituídas por grupos de indivíduos que se reúnem com propósitos comuns (shared intentionality) e fazem parte da ordem social — cujo conjunto de comportamentos e práticas governam as expectativas dos indivíduos. Como exemplo se podem citar a família e o papel de cada um de seus membros; as práticas religiosas com suas características ritualísticas, regras, etc.; a escola e suas diferentes faces; a arte em suas mais variadas manifestações; as instituições políticas econômicas que regulam a vida dos cidadãos; e assim por diante. As instituições sociais representam, portanto, modos de interação organizados a partir da cooperação entre indivíduos.

A espécie humana se espalhou pelo globo terrestre como nenhuma outra, e, há aproximadamente dez mil anos, com o surgimento da agricultura, a população começou a aumentar dramaticamente, o que fez com que novos problemas emergissem, exigindo a criação de variados tipos de novas organizações sociais. A fim de melhorar a adaptação aos novos ambientes e às novas circunstâncias, sistemas próprios de comunicação e troca de ideias e sistemas cooperativos com vistas à sobrevivência e à prosperidade foram sendo criados e aperfeiçoados.

À medida que nossa espécie se tornava mais e mais complexa socialmente, aumentava a necessidade da criação, desenvolvimento, aperfeiçoamento e multiplicação de novos sistemas tecnológicos que dessem conta dessa crescente complexidade. As tecnologias sociais foram se materializando de diversas maneiras: desde a invenção da escrita para o registro de hábitos e costumes e da matemática para a contabilidade de custos das trocas de mercadorias, aos sistemas de proteção das propriedades privadas; da divisão social de classes, aos rituais religiosos que promoviam a coesão dos grupos; da prensa gráfica aos sistemas de navegações ao redor do globo terrestre; das mídias de massa ao gigante computador mainframe e os smartphones. E, assim, fomos nos aproximando da sociedade contemporânea, com toda sua intrincada complexidade inescapável.

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O processo de complexificação social e cultural sempre esteve intimamente relacionado à complexificação da linguagem e a complexificação da linguagem sempre exerceu papel fundamental na complexificação das outras tecnologias cognitivas. Por essa razão, antes de continuar a explorar o assunto das tecnologias cognitivas e seus impactos na cognição, faz-se necessário abordar com um pouco mais de cuidado a linguagem no contexto da comunicação da espécie humana.

A linguagem se apresenta ao mesmo tempo como instituição social e tecnologia social complexa, e foi ela que deu origem à mais extensa e generosa prole de outras instituições e tecnologias sociais, além de ter-nos transformando como espécie.

A partir de uma visão não antropocêntrica, pode-se dizer que a linguagem, em seu sentido mais amplo, surgiu com os primórdios da vida na terra, com os primeiros organismos, e antecedeu, em muito, a vida humana no planeta. Os organismos primitivos desenvolveram mecanismos de comunicação química capazes de transmitir informações sobre suas espécies, gêneros e intenções. É por esse motivo que, em seu sentido mais genérico e rudimentar, linguagem significa “meio de troca de informações”. Essa definição ampla permite que se abarquem a linguagem química das formigas, a dança das abelhas, as emissões bioacústicas de aves, rãs, sapos e cães; os infrassons das baleias, elefantes; ou o ultrassom dos morcegos e golfinhos (FISHER, 2009, p. 11-12). Essa definição também permite que nela se abriguem as atividades humanas como gestos, posturas, expressões faciais e a dança; a emissão de sons humanos como assobios, cantos e as preces; a escrita, a matemática e a programação de computadores. Ou seja, o termo linguagem pode ser usado para designar todo e qualquer sistema de signos em circulação que, de uma maneira ou de outra, faz com que a comunicação aconteça e produza sentido.

A língua natural, na sua natureza de linguagem, é, ao mesmo tempo, uma instituição e uma tecnologia social. Seu desenvolvimento permitiu aos seres humanos se beneficiarem ainda mais da natural pré-disposição da espécie para a cooperação — Tomasello defende a hipótese de que a pré-disposição à cooperação é um traço natural da espécie humana e, em seu livro Why we Cooperate (2009), ele apresenta as pesquisas e os experimentos conduzidos por ele e sua equipe, visando confirmar sua hipótese.

O uso da linguagem nos permitiu realizar acordos e negócios; alcançar entendimento; influenciar outros indivíduos; ganhar poder; criar e aproveitar melhor as oportunidades dos ambientes e contextos; além de coordenar as atividades práticas, em geral. Para os fins deste trabalho, o termo “cooperação” deve ser tomado no sentido estrito de “ato de co-operar”, ou seja, agir ou trabalhar junto ao outro ou outros com uma finalidade comum — pode-se cooperar por necessidade, por interesse ou por altruísmo, mas a análise dos diferentes tipos de cooperação não pertence ao escopo deste trabalho.

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Em Origins of Human Communication (2010), Tomasello defende uma teoria da aquisição da linguagem baseada no uso. Resumidamente, as hipóteses levantadas e defendidas por ele e sua equipe sobre as origens da comunicação humana são as seguintes (ibid., p. 327): (a) a comunicação cooperativa humana evoluiu inicialmente nos domínios gestuais (apontar e fazer mímica); (b) essa evolução foi potencializada pelas habilidades e motivações para a intencionalidade compartilhada, elas mesmas originalmente tendo evoluído no contexto das atividades colaborativas; (c) foi apenas no contexto da herança das atividades colaborativas coordenadas pelas formas naturais de comunicação, como apontar e fazer mímica, que as convenções linguísticas completamente arbitrárias (línguas) começaram a existir. O que é conhecido como língua natural, portanto, é “uma instituição social simbolicamente encarnada que surgiu de atividades sócio-comunicativas previamente existentes” (TOMASELLO, 1999, p. 94) e não algo instintivo ou genético.

Tomasello (1995, p. 132-3) defende que a língua não é um instinto da espécie; ou seja, não é algo inato, apesar de ser parte constitutiva da cognição humana e dela não poder ser diferenciada. A capacidade linguística foi sendo desenvolvida socialmente. Esse esclarecimento é importante, pois a abordagem de desenvolvimento da linguagem, também chamada de social pragmática, acolhida neste trabalho, caminha em direção oposta àquela proposta por formalistas que seguem principalmente a ideia da existência de uma Gramática Gerativa — teoria que defende a existência de uma gramática universal inata que, supostamente, seria uma espécie de estrutura computacional universal das línguas.

A língua é frequentemente invocada como a razão da singularidade da cognição humana, mas, do ponto de vista da origem sócio-cognitiva, a pergunta que se faz é: como adquirimos essa característica e desenvolvemos essa poderosa tecnologia social que nos permite comunicar de forma tão eficiente e complexa com outros membros da nossa espécie? Tomasello (1999, p. 96-107) apresenta as seguintes bases sócio-cognitivas para a aquisição da linguagem: (a) as cenas de atenção conjunta se apresentam como o terreno sócio-cognitivo de aquisição das línguas; (b) a compreensão das intenções comunicativas é o principal processo sócio-cognitivo por meio do qual as crianças compreendem o uso que os adultos fazem dos símbolos linguísticos; (c) a inversão de papéis por imitação é o principal processo de aprendizagem cultural por meio do qual as crianças adquirem o uso ativo dos símbolos linguísticos.

As cenas de atenção conjunta se constituem numa forma caracteristicamente humana de acoplamento estrutural, na qual dois ou mais indivíduos participam conjuntamente de algo compartilhado e têm a atenção de ambos voltada para essa coisa, que conta também com o envolvimento recíproco de seus corpos — contato visual, expressões faciais, voz, toque e gesto — e as suas capacidades de percepção consciente temporalmente estendidas para o controle voluntário da atenção voltado à ação (DONALD, 2001, 194-204 apud THOMPSON, 2010, p. 405)

A compreensão das intenções comunicativas começa a se dar entre os nove e os doze meses de idade, período no qual os bebês humanos já entendem que há um mundo social e começam a entender o que é intenção. As crianças nessa fase já respondem a muitos estímulos diferentes ao reconhecerem as intenções referenciais dos adultos, mostrando uma capacidade flexível de compreensão. Tal compreensão permite às crianças compartilhar a atenção com outros falantes e desenvolver outra capacidade que é a de interpretar o que eles estão dizendo, além de permitir que dirijam a atenção de outras pessoas a objetos de seu interesse.

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A inversão imitativa de papéis é um tipo particular de aprendizagem cultural (TOMASELLO,1999, p.103-107), que se constitui no aprendizado da criança em usar símbolos com os adultos da mesma maneira que eles os usam com ela. Para Tomasello, este é claramente um processo de aprendizagem imitativa no qual a criança se alinha com o adulto tanto em termos do objetivo como dos meios para conseguir alcançá-lo.

A enculturação da mente na linguagem transforma fundamentalmente a natureza da cognição humana e Tomasello (1999, p. 125-9) detalha três maneiras principais inter-relacionadas em que a linguagem se constrói sobre habilidades cognitivas humanas básicas e as molda de forma ainda mais complexa: (a) a comunicação linguística é o veículo de “transmissão” de grande parte do conhecimento cultural acumulado; (b) a comunicação linguística influencia a construção das categorias cognitivas, das relações, das analogias e das metáforas, nas crianças em formação; (c) a interação linguística com outras pessoas ou com o discurso induz a criança a aceitar perspectivas conceituais diferentes, incluindo a perspectiva do outro sobre seu próprio discurso.

O que se pode inferir do que foi apresentado até aqui é que não parece haver dúvidas de que o processo de aprendizagem e a utilização de uma língua natural se fundem ou confundem com a própria cognição humana. A língua é, ao mesmo tempo, uma instituição social, um código, uma prática, um artefato/tecnologia cultural e uma faculdade mental, e não uma característica herdada e transmitida geneticamente pela espécie. Ela é uma faceta da própria cognição que é desenvolvida na interação com outros indivíduos.

Apesar de reconhecer que Tomasello elaborou uma teoria coesa e convincente da aquisição da linguagem na comunicação humana, a resposta definitiva a esse enigma da espécie que toca profundamente no problema da cognição ainda parece longe de ser completamente solucionado. A ciência ainda está tateando para entender que instâncias da cognição são modificadas pelas tecnologias — mesmo uma tecnologia como uma língua natural. E por que é tão difícil responder a essa pergunta mesmo contando com tantos avanços nas pesquisas e recursos (tecnológicos) à disposição da ciência? Porque o que chamamos de cognição tem diversas facetas e instâncias intimamente relacionadas e, portanto, não se resume e nem se pode reduzir somente ao funcionamento do cérebro em seu nível físico-químico, como dizem alguns, nem aos comportamentos adquiridos quando em interação com o ambiente, como querem outros. Há que se buscar uma compreensão inter-relacionada entre a percepção, a linguagem, a memória, o raciocínio, a emoção, a inteligência e o comportamento; além de ser necessário também compreender os processos de representação, aquisição, processamento e transformação das informações no âmbito dos ecosistemas formados por homens, animais e também pelas máquinas (inteligência artificial).

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3. As tecnologias cognitivas, o mundo contemporâneo e o papel dos jovens

O desenvolvimento e o uso das tecnologias têm se confundido com a própria história da humanidade e se apresentado como parte integrante de nossa evolução como espécie. Da pintura nas cavernas à realidade virtual imersiva dos games digitais há uma rica história de desenvolvimento cognitivo-tecnológico a ser resgatada e recontada. No entanto, este não é o objetivo deste artigo. O foco daqui por diante será nas tecnologias cognitivas como as reconhecemos contemporaneamente e em como elas têm impactado as experiências cognitivas de todos nós, especialmente as dos jovens.

As tecnologias cognitivas têm o poder de afetar/alterar nossas experiências com e no mundo e podem ser definidas como aquelas que influenciam, transformam e/ou modificam e ampliam a maneira pela qual adquirimos informações e pensamos; além disso, elas nos permitem difundir conhecimento e têm o potencial de transformar o modo como a cognição é mobilizada, requerida e/ou requisitada na execução de tarefas na vida cotidiana.

Além de fornecerem auxílio externo à cognição, de promoverem mudanças nas habilidades cognitivas requeridas para certas atividades, de permitirem uma simplificação do mundo ao tornarem disponíveis e utilizáveis as informações relevantes para os indivíduos, além de todos esses processos que já implicam uma série de transformações, os artefatos cognitivos podem potencializar a emergência de novas modalidades de representação, conhecimento e significação, complexificando seja o nosso próprio pensamento, ou seja nossa relação com o mundo. (BRUNO, 2003, p. 5.)

Alguns bons exemplos de tecnologias cognitivas, que acompanham a humanidade há séculos, são os sistemas de escrita e todos os seus produtos; todos os outros sistemas simbólicos que conhecemos; os sistemas de navegação, medição e cálculos; as ferramentas para coletar e armazenar informações; os meios para guardar e processar informações, simular eventos, fenômenos, processos e métodos de planejamento e gestão. Entretanto, mais recentemente, a explosão do uso das redes digitais da internet e a incorporação das tecnologias conectivas e inteligentes que podem abarcar grande parte disso tudo, ao mesmo tempo (e tempo real), têm transformado a vida que até então se desenrolava em sequência cronológica e em um mundo físico dividido em espaços passíveis de serem descritos com alguma precisão.

As redes digitais e as tecnologias inteligentes e conectivas têm transformado a realidade e “desmaterializado” a vida, que passa a se desenrolar cada vez mais intensamente na virtualidade. Novas relações também estão sendo estabelecidas entre o corpo físico e essas tecnologias — o que vêm alterando nossa maneira de pensar, sentir, e até mesmo sonhar, além de afetar também nossa memória, atenção e nosso relógio biológico. Os resultados de inúmeros experimentos têm revelado um pouco mais sobre essas transformações — todas elas exercendo grande impacto em alguma(s) faceta(s) da cognição e/ou nas relações sociais.

A revista eletrônica Scientific American Mind publicou uma matéria, em dezembro de 2012, na qual apresentou um estudo realizado por Mariana Figueiro, pesquisadora do Lighting Research Center at Rensselaer Polytechnic Institute e sua equipe. Ela demostrou que apenas duas horas de uso do iPad, com brilho máximo, à noite, foram suficientes para suprimir a liberação de melatonina - um hormônio chave para o sistema circadiano ou relógio biológico, como também é conhecido. A liberação de melatonina informa o corpo que é noite, ajudando a induzir o sono. Se uma pessoa atrasa a liberação desse sinal, pode, consequentemente, atrasar o sono. Ainda de acordo com a pesquisadora, outro estudo realizado por sua equipe indicou que, se isso for feito constantemente, por muitos anos, pode levar à ruptura do sistema circadiano, acarretando graves consequências para a saúde.

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A capacidade da memória também está em transformação. Em um passado que parece longínquo, a aprendizagem por memorização era uma habilidade muito valorizada, ao ponto de ser esperado que um estudante recitasse poemas ou até mesmo livros inteiros, de memória. Na era do Google e dos aparelhos móveis inteligentes conectados à web, essa é uma solicitação cada vez menos comum que fazemos ao cérebro, pois com um universo inteiro de informações disponíveis ao toque de um dedo, quem precisa memorizar tantas coisas assim?

Em uma edição da revista eletrônica Wired, de 2007, foi apresentado o resultado de um experimento conduzido pelo neurocientista Ian Robertson do Trinity College Dublin, no qual foram entrevistadas três mil pessoas, entre jovens e adultos mais velhos, e no qual foi-lhes solicitado que dissessem a data de nascimento de um parente - 87% dos entrevistados acima de cinquenta anos conseguiram responder a pergunta, enquanto menos de 40% dos participantes com menos de trinta anos puderam fazê-lo; e quando perguntados sobre o seu próprio número de telefone, um terço dos jovens não conseguiu responder e precisou lançar mão de aparelhos digitais para procurar a informação.

Em matéria publicada na versão online do jornal The New York Times/Technologies, de 21 de novembro de 2010, o uso intensivo das mídias sociais e da internet foi apontado por pesquisadores como fator impactante na capacidade de atenção. Os indivíduos imersos em meios digitais, de acordo com a matéria, apresentariam dificuldades de concentração para a leitura e muitas vezes apenas “passariam os olhos” pelos artigos online em vez de se concentrar em ler o texto mais atenta e demoradamente. De acordo com Michael Ricos - professor associado da Harvard Medical School e diretor executivo do Centro de Mídia e Saúde Infantil, em Boston, citado na matéria — esse fenômeno pode ser particularmente preocupante para os jovens, pois seus cérebros são recompensados não por permanecer em uma tarefa, mas por saltar para a próxima, e esses efeitos podem ser duradouros: “a preocupação é que estamos criando uma geração de crianças em frente a telas cujos cérebros serão conectados de forma diferente.”, disse ele.

Os avanços da robótica têm apresentado novas e surpreendentes possibilidades em relação à interação das tecnologias com os seres humanos e isso, com certeza, em um futuro não muito distante, contribuirá para o estabelecimento de novas bases para as relações sociais e para a cognição. Na área da saúde, por exemplo — mais especificamente na área de atendimento a pacientes com limitações, doenças mentais e a idosos — os assim chamados robôs terapêuticos, provaram-se eficazes em distrair e acalmar pacientes em hospitais e asilos. Eles são programados para fazer companhia e “cuidar” de pessoas. O uso desses robôs é semelhante ao uso terapêutico de animais de estimação, mas sem os riscos e a responsabilidade que a utilização de um animal de verdade pode acarretar (http://www.parorobots.com/).

A evolução nessa área da robótica tem sido animadora e a promessa é que os robôs poderão ser “fabricados” em qualquer tamanho, com atribuições que poderão ir desde manter os olhos (virtuais) dia e noite nos pacientes, à preparação e administração de medicamentos. A ideia é que eles tenham o tamanho e a força compatíveis com os seres humanos, e, portanto, tenham potencial para a prestação de assistência física, pois serão capazes de alcançar prateleiras altas, abrir portas e subir soleiras, recuperar objetos, ajudar na preparação das refeições e auxiliar na higiene pessoal de idosos e outras pessoas com necessidades especiais. Isso será possível quando a tecnologia evoluir para o aperfeiçoamento do desenvolvimento mental autônomo dessas criaturas tecnológicas.

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É necessário também que se mencionem os corpos físicos “melhorados” por meio de tecnologias vestíveis. Estas se materializam em óculos que traduzem textos, headsets que controlam objetos a distância pelo pensamento, entre outros aparatos; e também as tecnologias de implantes — mecânicos ou biológicos, resultado da combinação da neurociência com a engenharia biomédica e conhecida como neuroprostética — que tem produzido desde lentes de contato que controlam o diabetes, às próteses de membros amputados controladas pelo cérebro; de implantes cocleares para pessoas surdas voltarem a ouvir, a olhos biônicos; de implantes para estimulação do cérebro e tratamento da doença de Parkinson, a tatuagens eletrônicas. Nunca é demais relembrar que, no caso dessas tecnologias, não se está falando em máquinas ou aparelhos que apenas executam tarefas pré-programadas, mas em aparatos cada vez mais inteligentes que são capazes de, não só gerar respostas e retroalimentar o próprio cérebro com novas informações como de aprender com as experiências.

Ao que parece, esses últimos exemplos de tecnologias, que invadem os corpos, são especialmente desconfortáveis, e até mesmo ameaçadores, pois colocam à prova os próprios limites da condição humana. Santaella (2008, p. 31) diz: “A mistura crescente entre o vivo e o não vivo, o natural e o artificial, permitida pelas tecnologias, atinge hoje tal limiar de ruptura que faz explodir a própria ontologia do vivo.”

À medida que as tecnologias vão sendo incorporadas ao organismo humano, parece cada vez mais difícil conceber que a cognição não esteja sendo profundamente modificada, pois, só para ficar em um argumento simples, se elas modificam as capacidades do corpo natural de ver, ouvir ou se movimentar, modificam sua percepção e, consequentemente, a maneira como eles concebem a si mesmos, além de impactar o aprendizado sobre como é estar em interação com o mundo. Quando caem as barreiras físicas entre o que é “natural” e “artificial”, entre interior e exterior, entre real e virtual, entre corpo e ambiente, parece ficar exposto de uma vez por todas que:

A linha entre o self biológico e o mundo tecnológico nunca foi, de fato, muito firme. Plasticidade e multiplicidade são nossas verdadeiras constantes, e as novas tecnologias apenas dramatizam nossos enigmas mais antigos [...] A história intelectual humana é, em grande parte, o conto sobre essa frágil e sempre instável fronteira. (CLARK, 2003, p. 8)

As mudanças estruturais e contínuas nos sistemas e representações cognitivas a que estamos “acostumados” nos farão revisitar constantemente questões que estão postas desde tempos imemoriais e relacionadas à cognição social da própria espécie: o que é ser social? Ser político? Relacionar-se com outras pessoas? Ter uma família? Namorar? Aprender? Apesar da multicomplexidade tecnológica que nos cerca e que só tende a aumentar, parece que as perguntas fundamentais que as futuras gerações terão que responder são, no fundo, as mesmas com que temos tido que lidar ao longo de nossa vida como espécie no planeta; e, em última instância, são as crianças e os jovens de hoje e de amanhã, que terão de continuar a saga de enfrentamento dessas difíceis e intrigantes questões.

O papel das crianças e dos jovens torna-se crucial nesse processo de adaptação e modificação da cognição social pelo qual passamos enquanto espécie em evolução, porque são eles aqueles que, já nascendo e crescendo neste universo povoado por artefatos cognitivos complexos e sofisticados, serão capazes de criar novas e poderosas representações cognitivas baseadas nas perspectivas de todos aqueles que os precederam.

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Referências

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