Diluições entre o real-imaginário-simbólico nas postagens juvenis

Autoras

Maria Collier de Mendonça

Maria Collier de Mendonça é mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Foi bolsista CAPES em estágio de doutorado sanduíche na School of Women Studies da York University, Toronto, Canada, Professora do Centro Universitário Belas Artes (São Paulo, SP). Participante dos grupos de pesquisa: Sociotramas (PUC-SP), CIEP (Centro Internacional de Estudos Percianos - PUC-SP), MIRCI (Motherhood Initiative for Research and Community Involvement, York University, Toronto, Canadá) e CESPUC (Centro de Estudos de Semiótica e Psicanálise - PUC-SP).

Mariane Cara

Mariane Cara é mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Graduada em Publicidade e Propaganda, com curso de especialização em Medienwissenschaften (ciências da mídia) na HBK-BS/Alemanha. Pesquisa tópicos relacionados à aparência pessoal, juventude, fotografia digital, publicidade e moda.

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1. De que jovens e de que ambientes midiáticos estamos falando?

Podemos nos distanciar no tempo e espaço tanto quanto quisermos na busca das primeiras citações e observações sobre a juventude como um grupo específico nas sociedades. Na Pólis grega de Sócrates e Platão, é possível encontrar referências a respeito do papel do jovem, enquanto um indivíduo belo e dotado de força extraordinária, particularmente enfatizando a virilidade dos púberes. Apesar de referências tão antigas, neste texto, preferimos pensar o jovem a partir do entendimento deste grupo enquanto um construto social e cultural criado na modernidade ocidental pós-iluminismo, mais especificamente no século XIX, tendo maior protagonismo a partir da primeira guerra mundial. Desta forma, seguimos as perspectivas téoricas de antropólogos e sociólogos que dedicam diversos textos à juventude, como é o caso de Feixa (2004) e Groppo (2000).

Com base neste suporte teórico, chegamos ao ponto do entendimento da juventude atual, relembrando trechos de Jesus Martín-Barbero (2002) nos quais o autor discorre sobre o jovem do século XXI como aquele que convive nos não-lugares midiáticos e vive em ritmo acelerado, em um tempo em que a significância das novas mídias e das tecnologias emergentes é imperativa.

Da internet ao smartphone, passando por tantos outros gadgets, vemos os jovens sempre acompanhados, com suas extensões tecnológicas e midiáticas que se integram aos corpos biológicos. Neste cenário, as formas de comunicação e os laços sociais tornam-se diversos, em uma hibridização entre o online e o offline, aliás, estas barreiras já não fazem mais sentido.

A cultura juvenil tem se constituído por meio de mensagens descontínuas e múltiplas, produzidas e propagadas por meio dos dispositivos móveis e dos mais diversos meios de comunicação. E, nesta ecologia pluralista da comunicação (cf. SANTAELLA, 2010), circulam textos e imagens que constituem o imaginário coletivo e o conjunto de valores simbólico-culturais que delineiam as relações jovens com as redes sociais digitais. Com a expansão das tecnologias móveis e das redes sociais digitais, os ambientes que se apresentam para as explorações e vivências dos jovens conectados tornaram-se mais complexos em termos sígnicos e informacionais. Imagens digitais têm sido produzidas e disseminadas através das redes sociais e dos dispositivos móveis, com manipulações ou alterações que nos mostram o quanto estes atores sociais estão se expressando, visando projetar autoimagens e cenas cotidianas idealizadas, em jogos lúdicos de trocas identitárias ou simulações de vidas idealizadas que esboroam as fronteiras entre o real e o imaginário e fortalecem uma maneira particular de relacionamento com o simbólico.

Nesse contexto, pretendemos discutir o que estamos chamando de diluições fronteiriças entre os três registros lacanianos (real, imaginário e simbólico) em se tratando do universo digital; e, sobretudo, das imagens postadas pelos jovens conectados às redes sociais digitais. Para isso, dialogaremos com psicanalistas e mencionaremos casos e informações relevantes, já publicados por instituições e pesquisadores que têm investigado tais questões.

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2. O real, o imaginário e o simbólico

Em nossos trabalhos prévios (MENDONÇA 2014 e 2010, CARA, 2013), temos referenciado alguns conceitos psicanalíticos, entre eles a tríade que envolve o real, o imaginário e o simbólico e a referenciação ao narcisismo e ao estádio do espelho. Neste artigo, direcionaremos a atenção ao imaginário, simbólico e real, que serão brevemente explanados a seguir.

Lacan definiu o termo imaginário como uma miragem decorrente da experiência do Estádio do Espelho, lugar das ilusões do eu, da alienação e da fusão com o corpo da mãe (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 371).

Já o termo simbólico foi inicialmente empregado por Lacan em 1936 e depois conceituado em 1953; tendo sido extraído da antropologia (Mauss e Levi-Strauss) e da linguística (Saussure). Diz respeito a um sistema de representações baseadas na linguagem, isto é, são signos e significações que determinam o sujeito, sempre atravessado, consciente e inconscientemente por processos de simbolização (ibid., p. 714-715).

Em 1953, o termo real foi introduzido para designar uma realidade fenomênica, impossível de simbolizar. Para Lacan, o registro do real é inseparável dos registros do imaginário e do simbólico, de maneira que os três juntos formam uma estrutura topológica (ibid., p. 644-645). São registros inseparáveis que coexistem entrelaçados, numa relação dinâmica, de interpenetração (MENDONÇA, 2010, p. 19).

Segundo Cesarotto (2012), o imaginário está relacionado a duas significações principais. São elas: a ilusão de autonomia do sistema percepção-consciência e as representações e miragens, que são as matérias-primas das identificações. O autor esclarece que o imaginário corresponde ao narcisismo, originado na etapa intermediária entre o autoerotismo e as relações objetais da libido. Já o simbólico obtém na linguagem a sua expressão mais concreta, pois é causa e efeito da cultura na qual a lei da palavra interdita o incesto. O real corresponde a tudo aquilo que não pode ser simbolizado nem integrado imaginariamente, por ser incontrolável, repentino e estar fora de cogitação.

Assim, os três registros estariam unidos pelo que Lacan chamou de nó borromeano: um nó formado por três círculos que se mantêm entrelaçados em torno de uma propriedade pragmática. Pois, se cortássemos qualquer um deles, os outros dois não ficariam mais juntos e a estrutura topológica automaticamente se desfaria. Ainda citando Cesarotto, esse laço é útil para que possamos compreender suas inter-relações e lógicas próprias, de modo a evitar que os três registros sejam considerados separadamente, posto que funcionam em uníssono. Cada um tem seu devido status, mas os três atuam de maneira conjunta e se limitam reciprocamente. (CESAROTTO, 2012, p. 145-147).

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3. A autoimagem, o corpo e os três registros no contexto da comunicação ubíqua

Para pensarmos a relação real-imaginário-simbólico no ambiente juvenil, o primeiro espaço desta imbricação inseparável é constituído no corpo, mais especificamente na aparência corporal. Juan David Nasio (2009) abordou a relação do corpo e suas imagens a partir dos três registros lacanianos (real, simbólico e imaginário). Nesta análise, o psicanalista destacou que nós não somos estritamente o nosso corpo em carne e osso, mas sim, o que “sentimos e vemos de nosso corpo” (ibid, p. 54). No momento juvenil, esta relação é ainda mais estreita, por ser o corpo o território que visivelmente marca a iniciação da adolescência nas transformações corporais e hormonais que necessariamente demarcam a fase da juventude. Os valores da jovialidade estão diretamente relacionados a um corpo viçoso: ser jovem, muito mais do que estar em uma faixa etária específica, é ter uma imagem corporal desejável.

O que seria o “eu” senão a imagem que temos de nós mesmos? Para Lacan, o “eu” é um conjunto de imagens mutantes e frequentemente contraditórias de si mesmo, porque não existe um eu puro nem estável, posto que resulta das interpretações pessoais e afetivas sobre o que nós sentimos e vemos do nosso corpo (ibid, p. 55-56).

Em outras palavras, as imagens formadas a partir das nossas sensações e aparência são nutridas pelo amor e ódio que, mesmo sem o saber, sentimos por nós mesmos (ibid, p. 56). O corpo real é o corpo que sentimos por meio de movimentos conscientes, ou inconscientes e involuntários; já o corpo imaginário é aquele que vemos quando, por exemplo, olhamos a nossa silhueta no espelho. Por fim, o corpo simbólico é o corpo simbolizado: “ele próprio símbolo e, acima de tudo significante, isto é, agente de mudanças operadas em nossas realidades somáticas, afetivas e sociais” (ibid., p. 75-79). Entretanto, nem sempre nos damos conta de que essas formas de perceber o corpo atualizam as nossas antigas percepções acerca de nós mesmos.

Mas, o que aconteceria se estendêssemos esta análise da imagem do corpo às vidas cotidianas juvenis, nas quais as separações entre viver on e offline não fazem mais sentido e nas quais todos se tornam ubíquos?

Ubiquidade significa estar – ao mesmo tempo – em toda parte. Santaella (2013) esclarece que a hipermobilidade envolve o acréscimo da mobilidade informacional e comunicacional à mobilidade física, por meio da banda larga, das redes sem fio, dos equipamentos móveis e geolocalizados, criando espaços fluidos e múltiplos – não somente dentro das redes, mas também nos deslocamentos que fazemos no espaço e tempo. A hipermobilidade conectada resulta na ubiquidade, por isso, quando nos comunicamos ou acessamos informações de um lugar para outro e em qualquer momento, estamos co-presentes, ou seja:

(...) em presença tanto no lugar físico que ocupamos, quanto também naquele com o qual nos conectamos. Parece paradoxal, mas essa é a realidade. Se quisermos um nome mais sofisticado podemos chamar de presença-ausente ou ausência-presente, para garantir esse balanço entre estar e não estar, estando. Comunicação ubíqua implica, portanto, ubiquidade desdobrada. Ubiquidade dos aparelhos, das redes, da informação; ubiquidade das cidades, dos corpos e das mentes; ubiquidade da aprendizagem, ubiquidade da vida no escoar do tempo em que é vivida — como acontece, por exemplo, nas postagens incessantes que as pessoas fazem no Facebook. (SANTAELLA, 2013)

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Quando um jovem ou um adolescente estabelece sua presença na rede, a partir da ubiquidade e pautando sua performatividade em uma construção imagética de seu corpo (ou de um outro corpo imaginado, incorporado por uma nova identidade), como podemos verificar a diluição das fronteiras dos registros lacanianos?

4. As diluições fronteiriças entre real-imaginário-simbólico nas postagens juvenis

Para refletir acerca do universo digital e do que os jovens e adolescentes têm postado nas redes sociais digitais, vamos inicialmente citar um vídeo com o filósofo esloveno Slavoj Zizek, publicado online em 3 de dezembro de 2014 no website do jornal britânico The Guardian. Neste vídeo, intitulado “What is freedom today?”, Zizek relata um conversa que teve com um jovem fundamentalista. Na ocasião, o jovem explicou-lhe que havia experimentado um mundo ocidental “super regulado”, em uma rotina cotidiana de bombardeios comunicacionais que regulam como devemos nos comportar o tempo inteiro, instruindo-nos para que sejamos politicamente corretos, sejamos cuidadosos com a alimentação, sejamos disciplinados, entre outras coisas. O tal jovem disse, então, a Zizek que desejava comer o que quisesse, fumar ou roubar se quisesse e assim por diante. Na ocasião, o jovem justificou que havia se tornado um fundamentalista não apenas por questões religiosas, mas porque este era o caminho que ele havia encontrado para sentir uma sensação de “terrifying freedom”. No entendimento de Zizek, a busca do jovem rapaz seria sentir, consequentemente, uma explosão espetacularmente obscena de liberdade.

Nessa mesma entrevista ao The Guardian, Zizek afirmou que considerava o amor, como a maior forma de liberdade, porque o amor implica a renúncia de uma de nossas maiores liberdades de escolha, que é justamente a liberdade de variar parceiros sexuais. Tal compromisso afetivo exige a dedicação mútua entre parceiros. Paradoxalmente, a maior liberdade para o filósofo é também o maior cerceamento da liberdade, ou seja, a submissão praticamente plena. Antagonismos que se unem na contemporaneidade.

Voltando à psicanálise, “o outro”, ou seja, os pais e as figuras culturais ideais atribuem a cada sujeito uma sensação de completude – física, emocional e moral – proporcional à sua fantasia de perfeição. Mas isso exige – em troca – a submissão a este ideal:

Uma vez preso na montagem, o sujeito usará a sua imagem corporal para sustentar o interesse do outro por si. As qualidades sentimentais ou morais que se acrescentarão a esta imagem apenas virão reforçar o desejo de responder ao desejo de perfeição do outro. […] Nosso desejo é o de fazer o outro nos desejar, e nossa satisfação consiste em alcançar, na realidade ou na imaginação, o que antecipamos de forma imaginária. (COSTA, 2004, p. 73)

No artigo Muitas felicidades?! O imperativo de ser feliz na contemporaneidade (2010, p. 27-47), Joel Birman examinou o atual projeto de felicidade, que tem incidido sobre as classes médias e elites brasileiras. Segundo Birman (ibid, p. 31), o sujeito deve, acima de tudo, ser feliz, de forma que a condição de felicidade tornou-se mandatória e imperativa. Sua análise percorreu diferentes temporalidades e o psicanalista destacou que, na modernidade, o registro da alma perdeu seu lugar de autonomia e superioridade, o hedonismo alçou o corpo à condição de bem supremo e a felicidade foi situada no registro do corpo, que passou a ser regulado pela oposição entre prazer e desprazer.

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A partir dos anos 1990, com a ascensão do neoliberalismo e da globalização, este discurso sobre a felicidade pautada pelo corpo foi disseminado no Ocidente e enfocou a ideia de que cada indivíduo poderia buscar os seus objetivos pessoais, sem que se inscrevesse como participante de uma ordem social englobante. O indivíduo passou a agir e a se representar “como uma pequena empresa neoliberal, na busca pela sobrevivência” (BIRMAN, 2010, p.37), porque não podia mais contar com a proteção do estado de bem-estar social, nem de ninguém. Consequentemente, a autonomia transformou-se em valor supremo, junto à valorização da autoestima e ao cultivo da qualidade de vida. (ibid, p. 37).

Sinteticamente, a leitura de Birman (ibid., p. 43-44) entende que o modelo antropológico da subjetividade contemporânea concebe o sujeito com base nos eixos do corpo, ação e intensidade, nos quais a performance e a autonomia sustentam a autoestima individual, visando a promover a felicidade, a qualidade de vida e a autoestima por meio de receituários práticos.

A questão que inserimos, nesse contexto, relaciona-se às tensões entre o relacionar-se com o outro e consigo mesmo. Pois, em uma cultura na qual o individualismo atribui ao amor significados paradoxais de felicidade e sofrimento, as construções imaginárias e simbólicas do outro e do si mesmo nas redes sociais digitais passam a revelar-se como algo extremamente interessante, inserindo jogos lúdicos e ludibriações identitárias que exaltam o individualismo e, de certo modo, reforçam a solidão e distanciamento físico nos relacionamentos tecnoformados pelas teias e redes digitais. Mas, antes de prosseguirmos, quais seriam as controvérsias do amor romântico? Para Jurandir Freire Costa (1998, p. 11), a imagem do amor, típica do romantismo, é totalmente familiar para nós:

Ela domina o imaginário no qual o amor erótico é signo do supremo Bem. Entretanto, apesar do enorme prestígio cultural, o amor deixou de ser um puro momento de encanto para se tornar uma corveia. Quando é bom não dura e quando dura já não entusiasma... Na prática, muitos começam a se convencer de que “amar é sofrer” e que quem não quiser sofrer deve desistir de amar. (COSTA, 1998, p. 11)

Na argumentação do psicanalista, “O amor é uma crença emocional e, como toda crença, pode ser mantida, alterada, dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida”. Para Costa, há três principais crenças que formam uma espécie de catálogo de competências mínimas exigidas dos candidatos ao vestibular do amor (COSTA, 1998, p. 13):

1) o amor é um sentimento universal e natural, presente em todas as épocas e culturas;

2) o amor é um sentimento surdo à “voz da razão” e incontrolável pela força da vontade;

3) o amor é a condição sine qua non da máxima felicidade a que podemos aspirar.

Em um mundo que nos torna ubíquos e no qual as fronteiras do real-imaginário-simbólico estão cada vez mais permeáveis, interessa-nos saber como os jovens e adolescentes estão lidando com o amor e com a autoimagem digital nas suas postagens online.

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5. Keisuke Jinushi e sua namorada imaginária

Na leitura da reportagem intitulada – #SalaSocial: Japonês cria blog para ensinar solitários a ‘falsificar’ namoradas –publicada na BBC Brasil, em 16 de setembro de 2014 e escrita por Ewerthon Tobace, conhecemos o blogueiro japonês Keisuke Jinushi de 29 anos que criou fama na web, postando dicas de fotografias para leitores e seguidores solitários, com imagens e textos bem humorados que ensinam os mais tímidos a se fotografarem como se estivessem acompanhados, divertindo-se nas mais variadas situações.

Na entrevista à BBC, Jinushi explicou que, ao ter sido demitido de seu antigo emprego, resolveu utilizar o tempo livre para dedicar-se ao blog, porque tinha “apenas um amigo”. O blog teve início com postagens e dicas para pessoas solitárias se divertirem em bares, restaurantes, entre outros lugares no Japão, mesmo estando sem companhia. Após algumas postagens voltadas ao universo do jovem desacompanhado, Keisuke passou a publicar fotografias acompanhado por uma aparente ‘namorada’ amorosa, com quem ele se divertia nos mais diferentes locais. A reportagem relata que as postagens exibiam a tal jovem nas mais diversas ações apaixonadas, acariciando o rosto de Keisuke, dando batata frita na boca, ou até limpando catchup de sua boca romanticamente.

Esta parecia uma grande mudança na vida do jovem, até que, pouco tempo depois, Keisuke revelou aos leitores que as imagens com sua ‘namorada’ não passavam de montagens. E a partir desta extraordinária revelação, seu blog passou a fazer muito mais sucesso, justamente quando o blogueiro contou aos leitores que havia produzido e fotografado as imagens sem a ajuda nem a presença de ninguém. Sua namorada não passava de uma montagem, uma presença inexistente, um protótipo de felicidade pautada no registro simbólico, mas que sequer chegou a se concretizar.

Para comprovar a revelação, o internauta postou novas fotografias no blog, nos moldes de um making of, no qual era possível ver o passo a passo da produção esmerada de Keisuke na presentificação e performance de sua namorada imaginária. Meticulosamente, o blogueiro passou a ensinar o ‘passo a passo’ da produção daquilo que ele chamou um “encontro consigo mesmo”.

O relato do jovem à BBC assume um tom bem humorado, porém irônico. O aspecto curioso e culturalmente sintomático é justamente sua ironia. De um lado, a brincadeira revela o desejo de construir um outro imaginário, quer dizer, a figura da namorada imaginária que é construída por meio do domínio de tecnologias e técnicas de produção fotográfica digital.

De outro, indica o desejo de descortinar o simbólico, através de uma espécie de denúncia do conto da felicidade romântica virtual. Afinal, o blogueiro seleciona e produz cenas icônicas de momentos idealmente felizes a dois: a comida na boca, o banho nas termas japonesas, o beijo nas ruas da cidade e assim por diante.

Sua ironia revela-se pouco a pouco na reportagem concedida à BBC: inicialmente, Keisuke afirma ao jornalista que estava andando sozinho pela cidade, quando avistou uma estátua e pensou: “se tirar uma foto ao lado dela, como um casal, vou parecer mais feliz”. A brincadeira com as aparências parece ser intencional. Ao final da reportagem, o jovem disse ao jornalista que – mesmo famoso – continuava sozinho, mas sonhava em encontrar uma companheira, para se casar e ter filhos... “Imagino, nos dias de folga, ir a um parque com a família, forrar a grama com uma toalha e fazer um piquenique. Quero acordar todos os dias com um beijo”. (ibid.)

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Ao final, o jornalista encerra a entrevista relatando que, para o blogueiro, a mulher ideal deveria ser bela e rica, pois – segundo o entrevistado – seu desejo era “namorar modelos ou atrizes famosas para ser fotografado por papparazzis.” Esta afirmação sugere a intenção de Keisuke em descortinar os aspectos simbólicos relacionados ao culto ao corpo e às celebridades. Em nossa interpretação, a construção de “um outro” (a namorada imaginária) exclui “o pequeno outro” perigoso: aquele que pode nos ferir e nos magoar se a paixão resultar em fogo ardente desenfreado. Por outro lado, na era do individualismo, a cultura midiática, ou seja, “o grande Outro”, insiste em nos bombardear com mensagens, imagens, produtos e destinos turísticos que associam o amor romântico e o sexo a momentos de êxtase e felicidade máximas, tal como nos alertou Jurandir Freire Costa no livro Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico (1998).

6. O fenômeno dos perfis fakes entre os adolescentes

Saímos do caso de Keisuke e nos deparamos com outro fenômeno instigante: os perfis fakes, que avançam entre os adolescentes mais jovens, na faixa dos 11 aos 17 anos. Segundo matéria de Ligia Aguilhar, publicada no caderno Link do Estadão de 20 de julho de 2014, muitos jovens, em especial meninas, têm mantido a prática de doar suas fotos pessoais para sites, como é o caso do blog Perfeição Fake (http://perfeiofake.blogspot.com.br/), que funciona como um banco de imagens de perfis fake, tal como um supermercado de aparências e estilos, no qual a adolescente pode escolher uma imagem identitária para usar, livremente, em seu perfil fake, sem culpa. Interessante notar que logo na home do site encontramos um aviso visível que alerta: “Atenção: as fotos do blog são apenas pra quem quer criar um fake, é proibido usar as fotos pra colocar em seu blog, pois é plágio, e plágio é crime, sua principal referência é a lei 9.610”. Não precisamos ir muito longe para verificar o teor e a usabilidade das fotos fakes para perfis nas redes sociais digitais: a trollagem, a brincadeira lúdica de fingir ser uma outra pessoa para, de certa forma, desmascarar a rigidez do que seria considerado real na sociedade e também para “fazer alguma vingança, investigar se o namorado é fiel ou ‘zoar’ amigos” (comentário de uma entrevistada da matéria do Estadão).

A todo momento, tanto os fakers, que utilizam as fotos, quanto aqueles que doam suas imagens estão manipulando as fronteiras entre real, imaginário e simbólico. Do lado dos doadores de imagens, há o sonho de se tornar alguém famoso, tal como modelos profissionais que estampam seus rostos em composites de grandes agências. Do lado dos usuários, existe o desejo de tornar-se desejável, até mesmo invejável por uma aparência extraordinária. Neste contexto, o fake deixa de significar “uma cópia” ou um signo meramente “pirata” por não ser original, genuíno nem verdadeiro. Torna-se, então, uma produção sígnica que pressupõe o uso da imagem de um terceiro, além das próprias manipulações executadas minuciosamente pelos programas de edição de imagens ou os diversos filtros de aplicativos instalados nos dispositivos digitais. As imagens fakes de formas canônicas, poses descoladas e cores esfuziantes visam a provocar efeitos de sentido, que possam gerar possibilidades interpretativas sintonizadas às intenções específicas: seja trollar, seja fazer o outro nos desejar. 

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No caso, entendemos que as intenções comunicativas dos jovens que decidem usar perfis fake são movidas por alguns instintos particularmente juvenis. O primeiro deles seria romper as regras do status quo. Como nos relatou Zizek (2014), em um mundo super regulado, os jovens passam a buscar sensações extremas, de liberdade de ação, sem restrições, buscando novas formatações de existência nas redes, que rompem com o sentido aparência real enquanto representativa. Mas, vale a provocação: o que seria o real na rede?

A decisão de criar um perfil fake ou utilizar imagens fake é inerente à liberdade de escolha representativa, ou seja, diz respeito diretamente à qual imagem irá representar um falso perfil. Esta decisão torna-se um manisfesto identitário que colide com o real e que -ao mesmo tempo - vai além do imaginário, porque pressupõe o uso de um código cultural estrito, pautado pela aparência perfeita e desejável das fotos disponíveis, que adentram necessariamente no território do simbólico.

O território do simbólico, quando acessado, cria representações enevoadas, descortinando - ironicamente - uma sociedade complexa e contraditória, na qual as imagens da autossuficiência, perfeição e felicidade, colidem irrefutavelmente com a imperfeição e com a solidão do real.

Ao estampar um perfil, o corpo da imagem fake descortina os rígidos moldes de uma cultura que privilegia a aparência acima de tudo. São corpos geralmente indefectíveis e indicadores de um sujeito extremamente saudável tanto fisica quanto financeiramente. Esta ordem simbólica privilegia alguns valores estéticos e formais que descortinam as inflexíveis regras de felicidade da sociedade atual, pautadas pelo protagonismo da aparência do corpo, conforme Birman (2010). E, ainda que estes perfis estejam cobertos por camadas de brincadeiras juvenis (como a trollagem ou o trote), conservam em si a denúncia de uma certa vulnerabilidade dos adolescentes em suas performances digitais, transitando constantemente entre a inibição de sua identidade ou de sua aparência que, para eles próprios pode ser sentida como fragilizada e, por outro lado, a exibição desenfreada, resultado dos desejos de uma vida idealizada, sintomas da cultura hedonista.

7. Considerações finais

Analisando ambos os casos, tanto do jovem Keisuke Jinushi quanto da febre dos perfis fakes, entendemos que as intenções comunicativas dos jovens nestas atividades expostas na web são primeiramente movidas pela busca de sensações de “terrifying freedom” (ZIZEK, 2014), com o intuito de desafiar as prescrições de um mundo super regulado.

Dificilmente, estes jovens e adolescentes estão realmente preocupados com questões jurídicas, como o enquadramento de um perfil fake ou de uma simulação irreal dentro do artigo 299 do código penal, que diz respeito à falsificação de documentos e à utilização indevida de imagem. Nos blogs de perfis fakes, há o consentimento de todos os participantes na brincadeira lúdica (quase) inocente de se apropriar de fotos que não representam os corpos ‘reais’, ‘de carne e osso’.

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Ao enfocarmos especificamente o caso de Keisuke, concluímos que o cenário atual também inclui tensões entre o público e o privado, no anseio de expor irrestritamente uma vida feliz e de sucesso pleno, que quando não alcançada, diverge para os registros imaginário e simbólico, reforçando um individualismo e um narcisismo sem limites, aceitando apenas os moldes perfeitos do romance e da namorada. Na ausência destes, para Keisuke foi preferível criar uma aparência fictícia de felicidade, evitando subjugar-se a um relacionamento sem a promessa do ideal simbólico. Nesse sentido, a revelação do fake - inerente a um domínio técnico e tecnológico - torna-se um manisfesto para além do real, porque pressupõe o uso de um código: o território do simbólico, que é acessado na construção de representações imaginárias que descortinam - ironicamente - uma sociedade complexa e contraditória, na qual as imagens da autossuficiência, perfeição e felicidade, colidem com as vulnerabilidades, os constrangimentos e a solidão do real.

A performatividade dos perfis fakes e das criações imaginárias de Keisuke Jinushi são excessivamente reguladas pelo simbólico e pelo narcisismo próprio do imaginário, rearranjando o que poderia integrar o real dos corpos juvenis e suas representações imagéticas nas redes digitais, afinal autoimagens digitais são bem mais maleáveis do que corpos jovens, de carne e osso. Como nos diz Santaella (1999): “Ser eu, sendo, ao mesmo tempo, o outro, é idílico, mas também mortífero, pois um dos polos dessa pretensa unidade está sempre à beira do desaparecimento.”

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Referências

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