A gamificação do romance entre os jovens

Autor

Marcelo de Mattos Salgado

Marcelo de Mattos Salgado é mestre em Comunicação e especialista em Comunicação com ênfase em Marketing pela Faculdade Cásper Líbero. Carioca em São Paulo há sete anos, é autor de “Homens de Saia”, livro de poesia publicado em 2009, com Lucia Judice. Escreve poemas desde os onze anos. Joga games desde antes.

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A possibilidade de estabelecer laços afetivos do tipo romântico e/ou sexual via tecnologia digital existe no Brasil, efetivamente, desde a década de 1990. Um dos primeiros sites a servir tal propósito foi o Amigos Virtuais, mantido pelo UOL (Universo Online): apesar do nome, a maioria das pessoas buscava mesmo um par (Figura 1).

Posteriormente, o mercado dos laços românticos digitais — que desde os primórdios da Internet brasileira faz dinheiro, no mínimo, com publicidade por número de visitas e acessos dos internautas — seguiu em expansão por aqui: mais possibilidades surgiram, como NamoroOnline, ParPerfeito e SuperEncontros; os dois primeiros ainda funcionavam em dezembro de 2014. Mas, haveria um aspecto mercadológico meramente por haver lucro por audiência atraída a partir de um serviço? A resposta é mais complexa — e pretendo dar parte dela com este trabalho, que também partirá, logo adiante, do esclarecimento de algumas definições.

Figura 1: O site “Amigos Virtuais” foi um dos precursores da digitalização de laços afetivos e românticos no Brasil, ainda na década de 1990.

Entre 2008 e 2009 analisei Amor líquido de Bauman (2003: 11–12) durante o mestrado. Em meio a outras conclusões, propus à época que os sites de namoro (tais como os mais antigos, já mencionados; e o atual OkCupid) funcionariam como “supermercados de gente”, expressão com a qual nomeei um texto em 2012. Destaco do mesmo:

Os referidos sites de namoro (e afins) são centros de venda e consumo do amor líquido em contexto digital; também são alguns dos operadores de uma, digamos, “lei da oferta e da procura amorosa” — que ainda acaba por redefinir o amor, já que a tecnologia social (no caso, digital), como proposto há pouco, é um fator na equação amorosa. Isto acontece, em parte, da seguinte maneira: de fato, os sites de namoro funcionam, em um primeiro momento, como supermercados de gente; e, secundária e indiretamente, do amor e de seus elementos (autor, blog do grupo de estudos Sociotramas, 2012).

A denúncia de Bauman aos excessos consumistas, que já teriam impregnado nossos laços afetivos, permeia minhas ideias no presente texto; mas o foco não será o “amor”, que, seja como noção ou conceito, merece outro trabalho. Aqui, abordarei em particular o que será definido a seguir como romance ou flerte em aplicativos (também chamados de “apps”, no plural: pequenos programas digitais, tipicamente usados em celulares e smartphones) e sites específicos de namoro e flerte — portanto, não me refiro neste momento a flertes iniciados em redes como o Facebook.

1. Definições: gamificação, romance e jovens

A título de clareza, trago algumas das palavras essenciais deste trabalho definidas a seguir. Seu simples entendimento contextualizado ajudará na interpretação dos dados da pesquisa que será apresentada no item 3.

1.1 Gamificação

Como tecnologia digital, games ou jogos eletrônicos carregam consigo as características básicas daquela tecnologia, como flexibilidade, agilidade e fluidez. Sua função essencial: divertir, entreter. E o que seria a gamificação?

Para Santaella (2013: 227), gamificação é a “ubiquidade dos games”; o “espírito e a lógica dos games”, assim como seus “elementos” e “valores” a penetrar em “quase todas as atividades e setores da vida humana”. Suas considerações têm relação estreita com o que Michael Wu diz: “Gamificação é 1) o uso de atributos de jogos para 2) direcionar comportamento típico de jogos em indivíduos dentro de um 3) contexto fora de um jogo” (tradução, numerações e ênfases minhas; ver site nas referências).

Ainda, a partir de Wu, defino “atributos de jogos” aqui como: mecânicas e dinâmicas de jogos; princípios de design de jogos (interface de usuário ou UI, user interface); psicologia de jogos; jornada; scripts e narrativas de jogos.

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Quanto à gamificação como ato de “direcionar comportamento típico de jogos”, destaco os seguintes para as análises deste artigo: engajamento, interação, aprendizado, vício ou comportamento repetitivo, competição ou concorrência, busca por um prêmio e diversão.

E o que a gamificação aplicada a “contextos fora de um jogo”? Poderia ser, conforme visto com Santaella (ibid.), “quase todas as atividades e setores da vida humana”, com o que concordo e aponto a seta, claro, para além da direção sugerida por Wu (ibid.) — educação, trabalho, saúde e fitness, voluntariado: vamos olhar para namoro e flerte em contexto digital. Há gamificação? Se sim, como esta ocorre especificamente em aplicativos e sites?

1.2 Romance

Para este trabalho, a definição de “romance” inclui flerte, atração e interesse romântico e/ou sexual entre dois indivíduos, tipicamente de sexos opostos, mas não necessariamente. Também uso a expressão “laços afetivos” neste sentido estreito — romântico-sexual.

Mais importante é frisar que, ao abordar “romance” aqui, o artigo refere-se a seu foco: o contexto digital de sites de namoro e flerte como OkCupid e aplicativos similares como Tinder e Hot Or Not.

Outro apontamento: tais aplicativos e sites modificam progressivamente e cada vez mais o processo de aproximação romântica e sexual entre indivíduos, especialmente, jovens (definidos a seguir). Desta forma, é razoável imaginar que, indiretamente, alteram também a dinâmica do que chamo de forma sucinta, apenas para este trabalho, “amor”: um laço afetivo e romântico mais profundo — que, de novo, não é o foco aqui. Isto aconteceria, pois, à medida que tais sites e aplicativos tornam-se mais populares, também relacionamentos “sérios” (namoros e até casamentos) surgem a partir deles.

Em um prazo longo o bastante, é razoável presumir que laços românticos mais profundos (“amor”, para este trabalho) também serão cada vez mais modificados por esses sites e aplicativos que, curiosamente — e como será reforçado pela pesquisa a seguir —, de fato favorecem o romance e flerte, ou seja, os laços românticos mais superficiais ou casuais.

1.3 Jovens

A partir da simples pesquisa qualitativa feita para este trabalho, a definição de “jovens” é um público entre 16 e 24 anos de idade; na maioria, estudantes de graduação de São Paulo, SP. A pesquisa obteve, por acaso, uma quantidade bem dividida entre os sexos, como será visto mais adiante.

Indico outra pesquisa, feita pelo governo brasileiro e publicada em fevereiro de 2014, que mostra a popularidade da Internet entre jovens e relevância dos estudos sociais digitais com esta faixa etária. Entre os dados mais relevantes, a investigação da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República revela que 48% dos jovens brasileiros entre 16 e 25 anos (faixa quase idêntica à que usei em minha pesquisa) usam a Internet todos os dias (Pesquisa Brasileira de Mídia, 2014: 51). Para comparar: no grupo de 26 a 35 anos, 35% usam Internet todos os dias; no intervalo entre 36 e 45 anos, só 23%. Outra informação:

A segmentação dos resultados de frequência de uso mostra que o hábito de acessar a internet é mais comum na população mais jovem, nos maiores centros urbanos e nos estratos de maior renda e escolaridade. Primeiramente, 77% dos entrevistados com menos de 25 anos têm contato com a rede, pelo menos, uma vez por semana. Esse percentual cai para 3% entre os respondentes com mais de 65 anos (ibid.: 48. Ênfase minha).

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2. Objetos de estudo

A pesquisa mencionada no item 3 deste artigo cobre, em particular, três objetos de estudo: dois aplicativos e um site, todos de namoro e flerte.

Tinder — o primeiro aplicativo pesquisado foi criado em 2012. O Tinder, que pode ser instalado em aparelhos móveis para os programas Android ou iOS, permite a um indivíduo “puxar” seus dados (como nome, idade, fotos e as comunidades “curtidas”) do Facebook para o aplicativo. Os interesses e amigos em comum mostrados pelo Facebook podem decidir o interesse entre duas pessoas, para além das fotos.

Com a ajuda da tecnologia GPS (Global Positioning System), o aplicativo filtra usuários a partir da distância em que estão um do outro, de tal forma que uma pessoa possa escolher ver os perfis apenas daquelas que estão a, por exemplo, até 8 km dela. Outras opções de “descoberta” permitem definir se você quer ver perfis de homens e/ou mulheres e de que faixa etária. A valorização das fotos, ou seja, da informação imagética — que é o aspecto mais superficial de um indivíduo, em uma aproximação de flerte ou romance — fica evidente na Figura 2, arte que criei de um perfil no Tinder, que não autorizou o uso de suas imagens. Curioso observar que, ao longo dos últimos dois anos, o Tinder modificou a interface do usuário de tal forma que a foto do usuário ganhou mais alguns milímetros: isto só deixa ainda mais claro o foco nas imagens.

Ao apertar o botão “X”, o usuário diz efetivamente que não se interessou pela pessoa “visitada” no aplicativo; ao escolher a opção central “i”, você pode ver mais fotos e informações da pessoa; e ao pressionar o coração, diz que gostou daquela pessoa. Caso você não goste de alguém e escolha “X”, nada acontece: a outra pessoa não saberá que você não se interessou por ela. Agora, se ambos tiverem, por acaso, visitado o perfil um do outro e escolhido o coração, então a “mágica” acontece: uma nova janela aparece com uma grande mensagem “It’s a Match!”, algo como “Vocês combinam!” (tradução livre). A tela vem acompanhada pelas opções “Send a Message” (envie uma mensagem) ou “Keep playing” — continue a jogar, uma sugestão bastante direta do Tinder acerca da natureza de seu jogo do flerte.

Figura 2: Tinder, aplicativo, arte minha. A interface destaca a foto da pessoa por quem você pode ou não se interessar. Entre outras coisas, há espaço para compartilhar “Momentos”, ou fotos que outros usuários (com quem já houve um “match” ou combinação) podem “curtir” e reforçar o laço.

Hot or Not — o segundo app pesquisado tem uma história muito mais longa: foi criado em 2000 com outro nome (Am I Hot or Not, “Sou quente ou não”). Há muitas semelhanças entre o Hot or Not (“Quente ou não”) e o Tinder — ambos buscam informações do Facebook e valorizam as fotos de seus usuários. Curiosamente, o Hot or Not inverte as posições do “X” e do coração, também usados pelo Tinder; de resto, as características são incrivelmente parecidas (veja a Figura 3, arte feita por mim de um perfil no Hot or Not). Quando há reciprocidade e duas pessoas apertam o coração ao acessar o perfil uma da outra, elas podem trocar mensagens.

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Apesar de ser principalmente um aplicativo digital, Hot or Not mantém uma página informativa na Internet. Desde esta homepage, o serviço vai direto ao ponto que nos interessa aqui. Hot or Not não autorizou a reprodução do site, mas o mesmo informa: “Encontre as pessoas mais populares perto de você e deixe que elas também te encontrem”. Logo abaixo, um ícone permite ligar suas contas no Facebook e Hot or Not — detalhe: acompanhado pela palavra “Jogar”. Mais abaixo na tela, a expressão “Entre no jogo” reforça mais ainda a natureza lúdica do flerte a partir do aplicativo.

O Hot or Not permite ao usuário pagar uma taxa mensal em dinheiro para revelar aquelas pessoas que gostaram de seu perfil (ou seja, apertaram o coração). Isto obviamente facilita o “jogo do flerte” no aplicativo, pois basta ao pagador ver que pessoas gostaram dele ou dela e, a partir daí, decidir se escolherá o coração ou não para estabelecer a reciprocidade do interesse.

Figura 3: Hot or Not, aplicativo, arte minha. Interface similar à do Tinder, com grande valorização da foto. Há informações complementares, como os amigos e interesses em comum compartilhados no Facebook.

OkCupid — O site enfatizado neste artigo existe desde 2004. O OkCupid valoriza o espaço da tela de um monitor de computador, muito mais generoso do que a pequena tela de um aparelho móvel — limitação dos aplicativos. Com o espaço maior, o site do OkCupid foca a profundidade de informações e a multiplicidade de opções, informações e fotos de perfis em apenas uma tela.

Como é possível ver na Figura 6A, por exemplo, um indivíduo pode registrar desde informações básicas, como idade, etnia e orientação sexual até minúcias como hábitos a respeito de fumo, bebida, renda, filhos e propensão à monogamia. Na Figura 7, mostro apenas uma das possibilidades de monetização para obter vantagens no site. Ainda há outras opções, como pagar para que você possa acessar os perfis dos outros sem que eles saibam (o “modo invisível”); e para que você saiba se as mensagens que você enviou foram ou não lidas pelos outros. Também é possível comprar de forma avulsa alguns “boosts” (impulsos) para que seu perfil fique mais evidente nas pesquisas de outras pessoas.

Importante destacar que o OkCupid, apesar de existir tradicionalmente e primariamente como site (enfatizado aqui e na pesquisa mostrada no próximo item), cada vez dá mais valor a seu aplicativo (ver Figuras 4 e 5), o que pode indicar uma tendência do romance e do flerte digitais de caminharem na direção da portabilidade e da mobilidade proporcionadas por programas como Tinder. Isto é reforçado pela implementação de um modo semelhante ao Tinder e ao Hot or Not dentro do próprio aplicativo derivado do site do OkCupid. Este modo permite que a pessoa rapidamente — e superficialmente — olhe fotos de usuários do OkCupid em seu aplicativo e, com seu dedo, puxe seus perfis para a esquerda (não gostou) ou para a direita (gostou). A exemplo do Tinder e do Hot or Not, o aplicativo do OkCupid informa quando há reciprocidade no interesse — ou seja, quando duas pessoas puxaram o perfil, uma da outra, para a direita; gostaram do perfil da outra.

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As características mais leves, superficiais e simplistas dos aplicativos digitais para (particularmente) smartphones talvez sejam mais atraentes e compatíveis com a lógica do flerte digital, o que merece uma investigação ainda mais profunda, mas já iniciada por este trabalho e pela pesquisa a seguir.

Figura 4: OkCupid, site. Página inicial destaca que é o “melhor site gratuito de namoro/encontros na Terra”.

Figura 5: OkCupid, destaque do site. Mesmo quando o internauta sai de sua conta (“desloga”), o site aponta na direção do aplicativo do OkCupid.

Figura 6A e 6B: OkCupid, site, destaques. Em 6A, parte do elevado nível de detalhes que um perfil permite; em 6B, a mensagem “talvez você goste” indica fotos de pessoas (cobertas por círculos vermelhos).

Figura 7: OkCupid, site. Apenas uma das funções pagas que o site permite: quando você tenta enviar mensagem para alguém que já está com a “caixa cheia”, OkCupid permite que, pelo preço de US$ 1, sua mensagem seja enviada para a pessoa.

3. Pesquisa

O grupo de jovens pesquisado (universitários de São Paulo, SP, entre 16 e 24 anos) consistiu na modesta quantidade de 78 pessoas (N=78), que responderam a 14 perguntas — 12 sobre o que pensam a respeito de sites e aplicativos de namoro e flerte. Os jovens acessaram o questionário on-line e, por mero acaso, obtive respostas de 38 homens e 40 mulheres. Neste trabalho, destaco algumas respostas; para todos os resultados, veja a seção de referências e visualize a pesquisa em detalhes.

Figura 8: Pesquisa feita alcançou 78 pessoas: 38 homens e 40 mulheres. A metade, entre 22 e 24 anos.

A partir das figuras seguintes, as perguntas comportamentais começam a nos dar mais coordenadas a respeito de como jovens usam e o que eles e elas pensam a respeito de apps e sites de namoro e flerte. Confira:

Figura 9: Proposição — Sobre os motivos que me levam a usar aplicativos e sites de namoro e flerte. Resposta: achar alguém para uma relação séria

Para facilitar a interpretação de possíveis tendências, agrupo as respostas de “Discordo” e “Discordo fortemente”; assim como “Concordo” e “Concordo fortemente”, e descarto a resposta “Neutro/Indiferente”. Em algumas perguntas, entretanto, respostas extremas (ou seja, Concordo fortemente e Discordo fortemente) merecem atenção específica.

A Figura 9 indica que 44% dos jovens entrevistados usam aplicativos e sites de namoro e flerte com a intenção de “achar alguém para uma relação séria” (26% discordam da ideia). Este é um número razoável — se considerarmos a natureza mais “namoradeira” (superficial, casual) desses sites e aplicativos — especialmente, estes últimos. Possivelmente, esses números também ratificam a ideia anteriormente aventada de que tais aplicativos e sites contribuem progressivamente para uma reedição do “amor” (laços românticos mais profundos). Mas, e as relações casuais, que, em teoria, seriam o ponto alto desses aplicativos e sites de namoro e flerte?

Figura 10: Proposição — Sobre os motivos que me levam a usar aplicativos e sites de namoro e flerte. Resposta: encontrar alguém para “ficar” (beijar etc.), nada sério.

A Figura 10 confirma a ideia tipicamente associada aos referidos apps e sites: de fato, a maioria dos jovens admite usá-los para buscar relacionamentos casuais. De acordo com a amostra pesquisada, 66% usam tais recursos para encontrar alguém para “ficar”, ou seja, beijar; e, talvez, ter relações sexuais (que não tão delicadamente tentei disfarçar com um “etc.”). Apenas 13% afirmam discordar da ideia de usar esses aplicativos e sites para procurar relações casuais. Em outro momento, gostaria de fazer a mesma pergunta, mas separar entre aplicativos e sites. Minha aposta: o número de jovens que busca relações casuais seria ainda mais alto se restrito apenas ao universo dos aplicativos.

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O artigo de Paul (ver referências na Internet, 2014: 666) reforça a noção de que ambientes digitais favorecem relações mais casuais:

Os resultados do presente estudo encontraram que mais de 60% dos casais que se conheceram on-line estavam em relacionamentos românticos não casados, e uma minoria relatou estar casada. Ao contrário de resultados anteriores, verificou-se que os casais formados on-line tiveram menor chance de se casar do que casais formados off-line. Há três razões possíveis (...). Primeiro, o namoro on-line fornece aos indivíduos muitas opções, o que leva a uma falta de exclusividade, tal que as pessoas acham difícil ficar preso a apenas um determinado parceiro de namoro quando sabem que há centenas de outros potenciais parceiros disponíveis. (...) pessoas que namoram on-line também têm demonstrado demorar mais tempo para desenvolver relacionamentos propositadamente, a fim de aumentar o nível de confiança com os seus parceiros, por conta de certo estigma associado com o namoro online (ibid. Tradução e ênfases minhas).

A Figura 11, a seguir, toca diretamente em outro aspecto típico de games, e referido no início do texto: a diversão.

Figura 11: Proposição — Sobre os motivos que me levam a usar aplicativos e sites de namoro e flerte. Resposta: simplesmente porque são divertidos.

Dentre os jovens participantes, 54% concordam com a proposição de que usam apps e sites de namoro e flerte tão somente pela diversão; apenas 17% discordam da ideia. Ou seja, para além do objetivo de buscar parceria para uma relação séria ou casual, há o simples aspecto lúdico, de entretenimento — de procurar alguém interessante, olhar e ser olhado.

Em outra resposta, 47% disseram que gostam ou gostariam de ver os apps e sites pesquisados usarem rankings de perfis separados por mais inteligentes, melhores fotos, mais simpáticos etc. Esta gradação sugere um nível de competitividade entre as pessoas e também se mistura ao elemento da diversão, ambas características de games. Curiosamente, a proposição provocou emoções contraditórias, pois 36% discordam da mesma. Possivelmente, isto se deve ao fato dessas pessoas não gostarem de ser comparadas como objetos gamificados em rankings de atributos humanos; ainda assim, a maioria apreciou a proposta.

Outro resultado importante: 29% admitem ser capazes de ficar muito tempo mexendo nesses aplicativos, contra apenas 11% que dizem o mesmo sobre os sites. Isto reforça mais ainda a atração que tais apps exercem sobre os jovens — e, de novo, algo típico dos games: comportamento repetitivo, que aponta na direção do vício.

Outra proposição questionava se os jovens gostam de ganhar prêmios por objetivos alcançados nos apps e sites. A maioria, 55%, não aprecia a ideia; apenas 23% gostam da asserção. Por que será? Acredito que a razão é simples. O maior prêmio em um site ou app de namoro e flerte já foi mencionado quando apresentei o Tinder: é conquistar a reciprocidade, o interesse de outra pessoa por quem sentimos atração. “O outro”, sua atenção e atração por nós, é a grande recompensa nesse contexto. Nosso objeto de desejo — e não se trata só do “prêmio” propriamente dito, mas a expectativa constante do prêmio, o estímulo permanente que mantém o jogador-usuário fissurado. Com estas reflexões no ar, procedo às considerações finais.

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4. Considerações finais

Para além das diretas e óbvias associações dos aplicativos e sites de namoro e flerte aos games destacadas aqui (“continue a jogar”, “jogue”, “entre no jogo”), a gamificação como definida no início deste artigo parece evidente nesses recursos digitais — tanto mais nos apps.

A ênfase dada às interfaces de usuário (UI) e à estética ou beleza da mesma, assim como o foco em imagens e fotos, aproxima os sites e aplicativos — mais uma vez, particularmente os apps — dos games; ou seja, configura certeira gamificação do romance digital via sites e aplicativos. A importância dada à diversão, evidenciada pelas respostas à pesquisa aqui revelada, também é nítida, assim como a tendência a um comportamento que, em boa parte, denota repetitividade — própria dos viciantes games.

Quanto ao outro como objeto de desejo em um ambiente digital altamente gamificado: divertido, atraente, com certo grau de competição e que tende à superficialidade de laços e estética. Deixo uma provocação sobre isso à luz de 1) as palavras primárias “Eu-Tu” e “Eu-Isso”, propostas por Buber (1937); e 2) a crítica de Bauman (2003: 11–12) à “cultura consumista”, que favorece a “satisfação instantânea” e “construir a ‘experiência amorosa’ à semelhança de outras mercadorias”. Estaríamos reduzindo nossas relações com o outro, particularmente em aplicativos de namoro e flerte, de um Eu-Tu (intersubjetividade recíproca e de confirmação mútua — algo que ainda acontece nos sites e apps, até certo ponto), para, gradativamente, um Eu-Isso (o mundo dos objetos e da experiência, que nunca pode experimentar a plenitude intersubjetiva), focado na superfície de interfaces de usuário, fotos, diversão, competição e a conquista do prêmio que é o outro, exposto como atraente peça em estantes binárias?

Por outro lado, devemos considerar a discussão de autores como Latour (2005) e Santaella sobre temas similares. O realismo especulativo traz um debate ontológico sobre os (cada vez mais discutíveis) limites entre sujeitos e objetos — e a suposta agência destes últimos. Santaella (2013: 37) escreve que “(...) devemos buscar os meios para compreender os seres emergentes, dotados de inteligência e sensorialidade, que costumávamos chamar de objetos” (ênfases minhas). Já Latour (ibid., p. 76) avisa que sua Teoria Ator-Rede não tem a intenção de criar uma “simetria absurda” entre “humanos” e “não humanos”. Ou seja, que os sujeitos e objetos — classicamente considerados — não seriam equivalentes de forma alguma.

A partir deste trabalho e, especialmente, dos dois últimos parágrafos, deixo minha última consideração — e o sopro de uma investigação futura: se, por um lado, o que chamo cá de “objetos prototípicos” (geladeira, mesa, televisão) estariam caminhando na direção de virar “seres emergentes”, será que nós, humanos — os “sujeitos prototípicos” — não estaríamos fazendo o trajeto oposto? Não estaríamos, de fato, na rota para nos transformarmos em “objetos emergentes”, ao menos nessas arenas digitais de sites e aplicativos de namoro e flerte — ou “supermercados de gente”?

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Referências

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