Os jovens como termômetros do Zeitgeist

Autora

Lucia Santaella

Lucia Santaella é pesquisadora 1 A do CNPq, professora titular nas pós-graduações em Comunicação e Semiótica e em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUC-SP). Doutora em Teoria Literária, ambos da PUC-SP. Livre-docente em Ciências da Comunicação pela USP, publicou 41 livros, entre os quais: Matrizes da linguagem e pensamento. Sonora, visual, verbal (Iluminuras/ FAPESP, Prêmio Jabuti 2002), Mapa do jogo. A diversidade cultural dos games (org., Ed. Cengage Learning, Prêmio Jabuti 2009), A ecologia pluralista da comunicação (Paulus, Prêmio Jabuti 2011) e Comunicação ubíqua. Repercussões na cultura e na educação (Prêmio Jabuti 2014). Recebeu ainda os prêmios Sergio Motta em Arte e Tecnologia (2005) e Luis Beltrão, maturidade acadêmica (2010).

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Por que os jovens não se separam de seus celulares a não ser sob pressão externa? Por que os jovens fecham a porta do quarto em busca da interação mais plena com o mundo exclusivo de seus interesses? Por que os jovens aprenderam a driblar as eventuais proibições das hierarquias escolares para sobreviver à chatice do confinamento em salas de aula? O que fazer diante disso? Essas perguntas têm preocupado e mesmo desesperado pais e educadores. Há algum tempo, venho repetindo a afirmação de que o ser humano está em plena travessia de um salto antropológico. Para enfrentar essa constatação, tenho tomado como carro-chefe das minhas reflexões a atenção muito obstinada ao que os artistas estão pensando e produzindo na contemporaneidade. Continuo seguindo Pound, quando afirmou que o artista é a antena da raça. De fato, a arte sempre funcionou como uma espécie de farol, cuja luz se propaga para o futuro. Recentemente, também passei a tomar como carro-chefe um estado de alerta em relação aos jovens, disso decorrendo a hipótese de que eles detêm as cifras do presente, colocando-se, portanto, como termômetros do Zeitgeist (espírito do tempo). Este artigo visa colocar essa hipótese em pauta de discussão.

1. O contexto da questão

Para Aleluia (2014, p. 17), não existe nenhum setor da vida humana que a revolução da TI, como é chamada a Tecnologia da Informação, não tenha afetado, ou transformado, ou que não esteja em transformação. Esse avanço é exponencial. Ray Kurtzweil, um dos gurus do mundo digital, “sonha com a rede mundial das mentes, quando todas as cabeças estarão plugadas ao computador e, num simples clique, você se tornará especialista em qualquer assunto. Ele espera que, nos próximos anos, nada menos do que 3 bilhões de mentes estarão on-line plugadas no computador” (ibid., p. 18).

As condições atuais da TI parecem apontar nessa direção. Uma pesquisa realizada nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) colocou a seguinte pergunta: “Para você, o que é hoje a solidão?” Aqueles que estão investigando as grandes questões que o mundo digital nos coloca, as respostas não surpreendem: para grande parte dos entrevistados, solidão é não estar conectado. Portanto, um tipo de solidão que “coloca de lado a presença física de outros humanos no mesmo ambiente, mas declara ser imprescindível estar no mesmo ambiente onde estão hoje 2 bilhões de humanos. Em vista disso, “estar conectado enquanto dormimos está previsto para 2014”. (LONDON, 2012, p. 19-20)

De tudo isso se pode inferir que a onipresença dos jovens nas redes não parece apresentar nenhum desvio daquilo que já se tornou norma socialmente incorporada. Então, por que tanta celeuma em torno dessa questão? Vamos à discussão.

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2. O conceito de jovem

De saída, é preciso considerar que está longe de haver um consenso quanto à compreensão relativa ao conceito de jovem ou juventude. Na sua tese de doutorado sob o título de “A imagem das adolescentes na Web: a busca pela corporeidade espetacular”, Mariane Cara (2013) dedicou todo um capítulo ao tema, explorando, à luz de uma vasta bibliografia de referência, o desenvolvimento histórico e as variações interpretativas do conceito. Do mesmo modo, a recente bibliografia consultada sobre o tema da juventude e seu uso das redes digitais, é quase sempre antecedida de um levantamento comentado dos estudos sobre o que se entende por jovem. Segundo Savage (2009, apud CARDOSO e ROCHA, 2011, p. 174),

o termo adolescência apareceu pela primeira vez em 1898, nos estudos do psicólogo Stanley Hall. Foi também Hall, em sua obra, chamada Adolescence, quem primeiro definiu essa fase da vida com nitidez: de 14 a 24 anos. (...) Foi somente em 1944 que o termo teenager (adolescente) ganhou força e espaço como denominador dessa faixa etária, alterando o conceito de juventude.

Para Hall, a juventude é a fase humana que se encontra repleta de conflitos pessoais advindos da fisiologia e das mudanças corporais, pois é o momento em que as crises emergem. A base do pensamento do autor é naturalista, razão pela qual coloca nos aspectos hormonais e biológicos a fonte das crises psíquicas. Sem negar o papel da potencialização hormonal desempenhado no desenvolvimento do adolescente, todos os fatores psíquicos não podem ser reduzidos a uma base biológica.

Além disso, nem todos os autores concordam com a definição de jovem pelo critério de faixa etária e, para muitos, seu significado transforma-se constantemente de acordo com o tempo e com os contextos sociais, sendo, portanto, “produto do imaginário coletivo, que influencia o comportamento dos indivíduos de todas as idades e como eles consomem produtos e ideias”. (CARDOSO e ROCHA, ibid., p. 174)

Exemplo claro de transformações contextuais bastante visíveis, encontra-se nos anos 1960, quando os jovens emergiram como uma presença social nas ruas, nas vestimentas, na música, na dança, em hábitos que lhes são peculiares. Em plena efervescência dos debates sobre a pós-modernidade, nos anos 1980 e 1990, os estudos de Michel Maffesoli sobre as culturas jovens notabilizaram-se sob a nomenclatura de “tribos urbanas”.

Hoje, o grande tema acerca dos jovens deslocou-se para as redes e para as consequências de seu uso e a suposta crise, de um lado, ou o incremento, de outro, que provocam na vida familiar, no comportamento, na educação e nas formas de conhecimento.

3. A hipótese da patologia do vício

Apesar da nítida emergência social dos jovens exibindo comportamentos, estilos e vontades próprias, existe uma certa tendência por parte dos adultos em concebê-los como um prolongamento da infância, como uma fase transitória entre esta e a vida adulta. Essa tendência acaba por trazer para o julgamento dos jovens concepções herdadas das considerações acerca das crianças como sujeitos sociais indefesos, inocentes, ainda não inteligentes e conscientes (OROFINO, 2012, p. 230).

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Desse modo, o pânico moral concernente às relações entre as mídias, o consumo e a infância também atinge os jovens, cuja atual onipresença nas redes é um fato incontestável. Aqueles, que são atingidos por esse pânico, creem que razões não faltam para a presença desse sentimento. As raízes dele remontam às críticas temerosas que já existiam na era do império televisivo, segundo as quais crianças e jovens são vítimas mais frágeis dos efeitos das mídias, o que as torna apáticas, subservientes e vulneráveis, meninos, meninas e jovens narcotizados, hipnotizados, olhos vidrados, surdos e mudos (ibid., p. 236-237).

Dando continuidade a uma tal tradição, correm atualmente pelas mais variadas fontes de informação os discursos apreensivos e perturbadores sobre as incontroláveis práticas viciantes da juventude nas redes. Trata-se, quase sempre, de um discurso sensacionalista, sugerindo que essas práticas conduzem à patologia do vício. Na base desses discursos, encontra-se a descrença de que os jovens sejam capazes de desenvolver uma ação criativa e competente, mantendo uma relação saudável com as mídias. Ao contrário, o engajamento com as tecnologias é sintoma de uma doença que a sociedade deve tratar.

Existem, de fato, casos de obsessão dos jovens com os games e mídias sociais que afetam suas performances escolares e seus desenvolvimentos emocionais. Entretanto, tais pânicos das mídias (quase sempre das mídias tradicionais) intensificam as ansiedades de pais e educadores quanto às redes sociais. Segundo alardeiam, essa nova geração não tem nenhum senso de privacidade ou de vergonha. Manchetes apresentadas por Livingstone (2012, p. 94) afirmam que “as crianças da era da internet estão prontas para se despirem de corpo e alma”. São crianças sem “nenhum senso de vergonha. Nenhum senso de privacidade”. Além disso, participantes das redes são narcisistas totais: “My Space é sobre mim, mim, mim, e olhe para mim e olhe para mim”.

Resumindo, é comum pensar que, na melhor das hipóteses, participar de redes sociais é uma perda de tempo e causa de isolamento social e, na pior das hipóteses, permite aos pedófilos aliciarem (grooming) crianças em seus quartos ou permite que os adolescentes sejam seduzidos a participar de pactos suicidas enquanto os pais pensam que eles estão fazendo lição de casa. (LIVINGSTONE, ibid., p. 95)

Segundo Boyd (2014, p. 84), embora os adolescentes apareçam como uma população, de fato, vulnerável, não se ganha nada quando se emolduram suas interações nas mídias em termos de doença. Tanto quanto os adultos, os jovens são profundamente sociais, com a diferença de que gozam de pouca liberdade para se conectar com os outros nos seus próprios termos que podem parecer estranhas aos adultos.

Muitos adultos acreditam que possuem o senso do que é “bom” para os adolescentes – escola, lição de casa, foco, atenção, e ir para a cama cedo – e muitos jovens estão eles mesmos conscientes do quanto a sociedade valoriza as metas orientadas pelos adultos (ibid., p. 83). Infelizmente, parece ser mais fácil aos adultos culpar as tecnologias por consequências indesejáveis do que considerar outros fatores sociais, culturais e pessoais que podem estar em jogo. (ibid., p. 79)

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Para Boyd (ibid., p. 79), o entretenimento e a sociabilidade são as razões principais que explicam por que os jovens investem tanta energia nas suas atividades on-line. O hiato entre a perspectiva dos adultos e dos jovens provém das diferentes visões e vivências que os adultos e os jovens têm de sociabilidade. Para os primeiros, as fontes encontram-se na escola, em atividades depois das aulas e visitas planejadas em casa. Os jovens, por sua vez, estão mais interessados em encontros informais, livres da vigilância dos adultos. Assim, as mídias sociais se apresentam aos jovens como oportunidades para novos tipos de socialização tanto quanto para entretenimento e relaxamento, ou seja, novos espaços nos quais eles podem colocar seus agenciamentos em prática.

4. O que revelam as pesquisas empíricas

Dada a indiscutível adesão dos jovens às redes, já existe, inclusive no Brasil, um bom número de pesquisas empíricas para medir e refletir sobre os variados aspectos dessa adesão. Na pesquisa realizada por Cardoso e Rocha (ibid., p. 175), por exemplo, “o jovem, na atualidade, é um ser tecnológico conectado à banda larga”, muitos deles carregando, graças aos equipamentos móveis, “a velocidade de informação na mochila para onde quiserem”.

No sistema de consumo adolescente, os gadgets, por suas características de comunicabilidade e, com ela, de gregarismo, desempenham papel fundamental. A tecnologia se transforma em bens de consumo, simbolizando identidades, estilos de vida, posições em uma hierarquia, transferindo e repondo distinção, prestígio e encanto, classificando, enfim, os semelhantes, as pessoas e as coisas. (...) Em casa, na rua, no trabalho, no lazer, na mochila de um adolescente, os gadgets nos lembram como o mundo está ficando cada vez menor, mas também de infinitas perspectivas e múltiplos cenários, em toda a sua ambivalência e fragmentação (ROCHA e PEREIRA, apud CARDOSO e ROCHA ibid., p. 176, 183).

Pesquisa realizada pela E-Life (2010) revela que os jovens ficam mais de 41 horas por semana na web, em boa parte desse tempo, conectados a redes sociais (CARDOSO e ROCHA, ibid., p.177). Diante disso, Livingstone (2912, p. 93) pergunta sobre o que distingue o tipo de construção que os jovens fazem de si mesmos da que fazem de seus relacionamentos com seus pares, agora que isso é mediado cada vez mais pelos sites de redes sociais.

Existe um conceito desenvolvido na ecologia da percepção de Gibson (1986, ver SANTAELLA, 2012) que vem sendo muito utilizado tanto no design quanto nas interfaces computacionais e em outras áreas de aplicação. Trata-se do conceito de affordance. Este se refere às qualidades que os objetos e os ambientes oferecem aos animais, o ser humano incluído, que os habilitam a realizar uma ação devido à correspondência e integração que essas qualidades apresentam para isso. Utilizando esse conceito, Livingstone evidencia que os sites de redes sociais

possibilitam a comunicação entre círculos cada vez maiores de contatos e atraem a convergência de atividades, até então separadas, de e-mails, mensagens, criação de websites, diários, álbuns de fotografias e uploading e downloading de músicas ou vídeos. (...) A própria linguagem dos relacionamentos sociais está sendo reestruturada; hoje em dia, as pessoas constroem seus “perfis”, optam por torná-lo “público” ou “privado”, elas “comentam” ou “enviam mensagens” aos seus “melhores amigos” em seus “murais” (walls), elas “bloqueiam” ou “adicionam” pessoas à sua rede, e daí por diante.

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Pesquisas empíricas ao redor do mundo (ver LIGINGSTONE, ibid.) revelam que os jovens estão na vanguarda das práticas de redes sociais, consolidando uma cultura de pares. Seus contatos são na maioria das vezes locais, sendo mais estreitos os laços preexistentes. O interesse por estranhos ou pessoas distantes é mínimo. Por isso mesmo, a comunicação face a face não está desaparecendo. Ao contrário, o que está ocorrendo é que as distinções simplificadas entre on-line e off-line “não abrange mais todas as práticas complexas associadas com as tecnologias on-line porque elas se embutiram profundamente nas rotinas da vida diária” (ibid., p. 96). Nesse contexto, vale a pergunta: por que os adolescentes adotam o mundo on-line com entusiasmo? Livingstone (p. 97) nos diz que isso acontece porque se trata do

espaço deles, mais visível a seus pares do que à vigilância dos adultos, uma oportunidade emocionante e relativamente segura de conduzir a tarefa social e psicológica de ser adolescente – construir, experimentar e apresentar um projeto reflexivo do self em um contexto social.

Diferentemente do que se pode apressadamente pensar, longe de meramente determinar, as redes sociais emolduram. Existe nelas a opção que os jovens sabem explorar de

selecionar uma autorrepresentação mais ou menos complexa ligada a uma mais ou menos ampla rede de outras pessoas. (...) A elaboração da apresentação do self no nodo suporta a biografagem do self feita por meio da priorização de uma gerenciada e estilizada exposição de identidade como um estilo de vida. (ibid., p. 107)

Tomando por base um extenso corpo de pesquisas empíricas, Livingstone (ibid., p. 114-115) chega à conclusão de que “para os adolescentes de hoje a autoatualização inclui cada vez mais uma negociação cuidadosa entre as oportunidades (para identidade, intimidade, sociabilidade) e os riscos (relacionados à privacidade, mal-entendidos, abuso)”.

Na sua relação com os outros, “os adolescentes trabalham com uma classificação sutil de amigos, graduada em termos de intimidade, que se coaduna mal com a noção de público e privado desenhada nos sites de relacionamento social”.

Essas graduações não são suficientes para evitar os riscos que podem surgir, de um lado, de uma “autoexposição deliberada e por vezes ingênua que fazem de informações pessoais para um grande círculo de contatos, dentre os quais nem todos são amigos íntimos, ou nem mesmo lembrados”. De outro lado, aos que focalizam na identidade como conexão, os riscos on-line surgem da própria confiança que os jovens têm de que “podem conhecer, julgar e confiar nas pessoas com que têm intimidade, assim como da possibilidade de serem desprezados ou excluídos de seus grupos de pares”. Esses são riscos potenciais que, para serem neutralizados, exigem políticas públicas tendo em vista a melhoria no desenho dos sites, competência em lidar com a internet e, certamente, a orientação dos pais e educadores.

Para os adultos que se amedrontam com a onipresença dos jovens nas redes, a pesquisa empírica de Livingstone (p. 115) nos transmite alguma tranquilidade quando transcreve a fala de uma adolescente pesquisada, de nome Sophia, que diz: “quando você está de mau humor, o My Space não é realmente o melhor lugar... você não consegue transmitir suas emoções lá porque você está escrevendo. É bom para combinar encontros e tal, mas não é bom quando se precisa de um bom papo”.

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5. A hipótese do Zeitgeist

Propor que os jovens são termômetros do Zietgeist, no contexto das redes sociais digitais, esbarra na tese dos nativos digitais (ver PRENSKY, 2001a, 2001b, 2010; TAPSCOTT, 1999). Baseada no pressuposto de que os jovens automaticamente entendem tecnologias, surgiu essa divisão, hoje bastante difundida, entre nativos digitais, os jovens que já nasceram com a revolução digital, e imigrantes digitais, as gerações anteriores.

Muito cedo, quando a internet estava apenas emergindo no seio da vida doméstica e social, Tapscott discutiu extensamente o perfil e a “crescente e irreversível ascensão da geração net”. Para o autor (ibid., p. 21), existe uma nova onda jovem coincidente com a revolução digital que está transformando todas as facetas da nossa sociedade. Isto porque a Internet entrou nos lares tão ou mais rapidamente quanto a televisão o fez há algumas décadas. Subsequentemente, a internet começou a entrar nas escolas, no caso do Brasil, nas escolas de elite. Mas a revolução mais impactante, sobre a qual Tapscott não poderia discorrer, em 1999, deu-se com o advento dos dispositivos móveis que foram gradativamente tirando da cena os tradicionais desk tops. O impacto é imenso porque, graças aos móveis, os jovens têm, na palma da mão, computadores potentes com acesso a informações e comunicação muitos a muitos, acessáveis a qualquer hora, de qualquer lugar para qualquer outro lugar.

Apesar do aparente hiato temporal entre o momento em que o livro foi escrito e hoje, Tapscott já conseguiu perceber e discutir temas até hoje bastante atuais, especialmente naquilo que diz respeito aos aspectos cognitivos, ou seja, aos efeitos perceptivos e mentais que o acesso à internet produz nos jovens, explorando uma pluralidade de facetas de tais efeitos na aprendizagem, na ludicidade, no consumo, no trabalho, na família e especialmente na exclusão digital. Alguns autores dirigem críticas a Tapscott pelo otimismo que expressa em relação às redes. Isso não deve funcionar para apagar essa obra importante e pioneira.

Depois de Tapscott, foi a vez de Prensky, em 2001, entrar em cena e ganhar fama com seu conceito de nativos digitais. Com essa expressão, o autor pretende retratar o perfil tecnológico da geração de crianças e jovens que já nasceram num universo digital e, cada vez mais, comportam-se de modo conatural a esse universo. O site Mais Educativa http://www.maiseducativa.com/2013/12/06/nativos-digitais-eles-andam-ai/ nos fornece uma síntese clara dos aspectos, especialmente educacionais, envolvidos nessa expressão. Os nativos digitais

Tratam a Internet por tu, sabem tudo sobre videojogos, dominam a linguagem dos hipertextos (links), são capazes de realizar várias tarefas em simultâneo (ver vídeos, fazer download de músicas, descarregar novas aplicações para o telemóvel, teclar com amigos em chats e redes sociais e ainda fazer a pesquisa que a professora de inglês pediu para o dia seguinte) e mexem em todos os aparelhos e gadgets com uma facilidade de técnico especialista para a maior parte dos ‘cotas’. (...) “Falam” com naturalidade e sem “sotaque” o idioma digital destes recursos eletrônicos de hoje, como se fosse a sua própria língua materna. Adaptam-se sem medos à realidade inconstante das novas tecnologias e isso faz com que se distingam dos Imigrantes Digitais: todos os que não tendo nascido na era digital ainda precisam de ler manuais de instruções para saber como funciona um MP3 ou uma nova consola. Estes Imigrantes vão sempre carregar (ainda que leve) um “sotaque” analógico: sentir necessidade de rabiscar em papéis antes de escrever no computador, de imprimir e-mails para uma melhor leitura ou de chamar as pessoas para verem um vídeo em vez de enviar um URL via e-mail são apenas alguns exemplos.

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Não obstante a relevância da oposição entre nativos e imigrantes digitais, há fatores menos superficiais, menos motores e técnicos a serem considerados quando os nativos digitais são celebrados. Como fruto de sua experiência em pesquisas empíricas com jovens, Boyd (2014, p. 176-177) é bastante crítica em relação a essa dicotomia. Para ela, a noção de nativo digital tem raízes políticas no tecno-idealismo norte-americano. Na realidade, o engajamento profundo dos jovens com as tecnologias de compartilhamento não permite concluir que eles possuem inerentemente as habilidades para suas vivências on-line. A curiosidade juvenil pode ser o grande motor para o desenvolvimento de competências nas redes, mas há grande variedade no conhecimento e na experiência.

Quando se assume que os jovens são capazes de naturalmente absorver, por mera exposição, tudo que o digital oferece, as gerações mais velhas, de certa forma, ficam liberadas da responsabilidade de auxiliar os jovens no desenvolvimento da capacidade seletiva em relação à gigantesca pletora de informação disponível. Tornar os jovens sintonizados com sua inserção no mundo digital requer muito mais do que chamá-los de participantes nativos. (BOYD, ibid., p. 183)

É verdade que os jovens adquirem destreza e habilidades, no uso das mídias sociais, por meio de experimentação extensiva e exploração movida pela curiosidade, sem as travas do medo de errar. Contudo, facilidade no manuseio não pode ser confundida com sabedoria seletiva que requer aprendizagem ativa. Mesmo que desenvolvam um senso intuitivo de como navegar nas interações sociais on-line por meio de engajamento e experiência casual, a aprendizagem e a construção do conhecimento são processos para a vida inteira nos quais estão intimamente implicados e entrelaçados tanto os jovens quanto as gerações que lhes são anteriores.

Quando lanço a hipótese de que os jovens funcionam hoje, mais do que nunca, como termômetros do Zietgeist, de modo algum, pretendo descartar a relevância das gerações mais velhas na formação e transmissão de valores para as mais jovens. Isso se constitui no cerne da passagem sadia do processo geracional, no cetro de luz que uma geração tem por tarefa entregar à outra.

O que a metáfora do termômetro visa colocar em evidência é o fato de que a grande atração que as redes digitais exercem sobre os jovens e a simbiose que se desenvolve na interação dos dispositivos com seus corpos e mentes não é outra coisa senão o grande índice do nosso Zeitgeist. Essa simbiose indica com soberana intensidade que são os jovens que detêm, mesmo sem o saber, a cifra do presente.

Nos nervos do seu sistema sensório motor, na agilidade de suas mentes distribuídas, na nova economia da atenção que manejam com maestria, nas suas competências em lidar com a hipermobilidade dos deslocamentos físicos em consonância com as conexões informacionais, são os jovens que compreendem de que estofo é verdadeiramente feito o tempo presente. É preciso estar atento a eles. Ao que têm para nos ensinar.

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Referências

ALELUIA, Hildeberto. O futuro da internet. O mundo da dúvida. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2014.

BOYD, Danah. It's complicated. The social lives of networked teens. Yale University Press, 2014.

CARA, Mariane. A imagem das adolescentes na Web: a busca pela corporeidade espetacular. Tese de doutoramento, Programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, 2013.

CARDOSO, Rodrigo Lucio e ROCHA, Cristianne Maria Famer. A relação do público jovem com o rádio na atualidade. Comunicação, mídia e consumo, ano 8, volume 8, número 23, 2011, 167-186.

GIBSON, William. The Ecological Approach to Visual Perception. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, [1976] 1986.

LIVINGSTONE, Sonia. Tomando oportunidades arriscadas na criação de conteúdo jovem: o uso pelos adolescentes de sites de redes sociais para intimidade, privacidade e expressão própria. Comunicação, mídia e consumo, Ano 9, volume 9, número 25, 2012, 91-120.

LONDON, Jack. Adeus Facebook. O mundo pós-digital. Rio de Janeiro: Valentina, 2013.

MAFFESOLI, Michel. Le temps des tribus: le déclin de l’individualisme dans les sociétés postmodernes. Paris, Méridiens Klincksieck, 1988.

OROFINO, Isabel. Recepção, consumo, crianças: apontamentos para uma reflexão sobre o conceito de agência na infância. In Estéticas midiáticas e narrativas de consumo, Rose de Melo Rocha e Vander Casaqui (orgs.). Porto Alegre: Editora Sulinas, 2012, p. 229-247.

PRENSKY, Mark. Digital natives, digital immigrants. On the horizon, v. 9, no. 5, 2001a.

___________. Do they really think differently. On the horizon, v. 9, no. 6, 2001b.

___________. Não me atrapalhe mãe – estou aprendendo. São Paulo: Phorte Editora, 2010.

SANTAELLA, Lucia. Percepção. Fenomenologia, ecologia, semiótica. São Paulo: Cengage Learning, 2013.

TAPSCOTT, Don. Geração digital. A crescente e irreversível ascensão da geração net, Ruth Gabriela Bahr (trad.). São Paulo: Makron Books do Brasil Editora Ltda, 1999.