1. Introdução
As Ciências da Informação e da Comunicação (CIC) representam uma disciplina recente que continua a colocar em debate sua multidisciplinaridade. Seja no campo da filosofia, da sociologia, da psicologia, da matemática, da economia, da informática, dentre outros campos teóricos e metodológicos, os pesquisadores em CIC buscam compor seus quadros referenciais para compreender a dinâmica dos sistemas culturais e suas interações, mediações e midiatizações na Internet. Autores do campo da comunicação tais como Miège (2008) consideram que os estudos feitos nos últimos anos são de filiação tecno-determinista, que ainda são dominantes, e que assim se configuram – pelo tecno-determinismo, pela falta de um contexto teórico pertinente para a análise das novas mediações sociais:
Essa perspectiva responde à escolhas teóricas (particularmente nos casos de visadas sociológicas destinadas a evidenciar a construção do social a partir de interações humanas) ou a posicionamentos dependentes de metodologias que reproduzem, em maior ou menor grau de consciência, o paradigma (cibernético ou cognitivista) homem-máquina, ou mais simplesmente questionamentos daí derivados. Em todo caso ela deve ser interrogada. Se de fato é importante buscar a compreensão da atividade do usuário em toda a sua complexidade, ela nos pode ajudar, em todo caso, e de modo imperfeito, a compreender o funcionamento dos meios e mediações (MIÉGE, 2008, pp. 123-124).
Destacamos a última parte da citação acima, com base em duas razões. A primeira: nós reconhecemos que há uma dimensão pragmática do funcionamento das mídias, mediações e midiatizações, a qual devemos questionar. Mesmo que os pesquisadores em Ciências da Informação e da Comunicação (CIC) encontrem na sociologia estratégias e métodos para análise e para abordagem dos usos e consumo de informação via Internet, essa ciência também estruturou os modelos e formas de pensar para que nos aprofundássemos sobre as práticas cotidianas, midiáticas, sociais e culturais de usuários.
Todavia, a compreensão da comunicação em um sentido mais abrangente resta incompleta se persistirmos em uma única perspectiva. De fato, há fenômenos os quais precisamos estudar por diferentes pontos de vista. A escrita, por exemplo, é uma forma de perpetuação e de evolução no tempo. A compreensão da “escrita hipermidiatizada”, como fenômeno de comunicação, precisa de uma visada teórica para análise da produção de sentido em sua dimensão hipertextual. Isso pode constituir e ser também o campo de estudo da cibernética, da informática, da hermenêutica e da semiótica.
A segunda razão de nosso destaque à citação tirada de Miège e apresentada logo acima: em alguns trabalhos em filosofia, a comunicação compreende-se e representa-se de uma forma hipersistêmica, diversa e complexa. Ricoeur (2005) havia refletido sobre a comunicação dentro do mundo possível de Leibniz: uma comunidade real de mônadas que, isoladas umas das outras, cada uma em seu próprio microcosmos, se comunicariam umas com as outras. Uma incerteza tocante. Ainda, falando do discurso, o autor sustentava tratar-se de uma “transgressão da ausência daquilo que é comunicável”, e que dizer o contrário implicaria em um ponto de vista do psicologismo que, por sua vez, conduziria a examinar-se os termos “crer”, “desejar” e “seduzir”:
7A comunicação torna-se problema, enigma, maravilha, porque o que a reflexão constitui inicialmente não é a ideia de comunicação das mônadas. Em troca, a comunicação torna-se, para a reflexão, um paradoxo que a experiência cotidiana e a linguagem ordinária dissimulam, que a ciência das comunicações não reconhece; o paradoxo é que a comunicação é uma transgressão, no sentido próprio do rompimento de um limite, ou melhor, de uma distância em certo sentido intransponível (RICOEUR, 2005, p. 12).
Nesse sentido, consideramos que há estudos em comunicação que não se caracterizam por
“uma antecipação permanente dos usos; a indecisão quanto ao que vem do tecnológico e o que deveria dele ser distinguido; o postulado da convergência; o destaque a uma profecia autorrealizável sob muito pouca utopia” (MIÈGE, 2008, p. 23).
Por outro lado, são discursos que oferecem uma perspectiva ampliada da comunicação, que se ligam fortemente a momentos históricos das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTIC), ou seja, ao incremento das relações entre tecnologias e sociedades em contextos bem precisos.
2. A metáfora “sistema”
Em Cibernética e Sociedade, Norbert Wiener faz a distinção entre homem e máquina: o primeiro sendo sistema orgânico e o outro artificial. Porém, ambos são máquinas com suas engrenagens, alavancas e hastes e não importa se a matéria-prima de uma delas seja carne e ossos, porque: “A mão de primata é tão fatal quanto uma peça de ferro ou aço” (WIENER, 1971, p. 460), razão que faz a teoria da cibernética aplicável aos comportamentos de seres vivos ou máquinas. Em decorrência disso, é possível ver relação entre sistemas orgânicos e artificiais, pois eles possuem o mesmo mecanismo de ação de resposta, ou feedback, o que preserva o equilíbrio entre os sistemas.
Para representar a relação entre “A” (n partículas) e “B” (n – m partículas) e seus esforços para manter o equilíbrio – inter-relação que Wiener havia compreendido desde a mecânica estatística e a termodinâmica, ele nos apresenta alguns fragmentos de uma relação entre um usuário e um programa. O quadro de referência é a tela do computador pessoal de uma jovem estudante de terceiro ano universitário inscrita em uma turma de ciência, tecnologia e sociedade, cujo sistema A representa a estudante e o sistema “B” o programa “Dr. Abuse” versão 6.10, versão em espanhol encontrado no site Softronic.com.
Dr. Abuse 6.10
Começo da consulta, 9/8/2012 10:26:42
Sistema B: Eu sei que você está tentando me desinstalar e tenho medo que isso seja verdade.
Sistema A: Por que você tem medo se é uma máquina?
Sistema B: Espero que você saiba que eu não sou um desses robôs assassinos com múltiplas personalidades.
A: Estou refletindo sobre isso. Creio que sua intenção é manipular o usuário que começa a sessão a partir desse programa.
B: Você também é um programa?
A: Não. Eu sou uma pessoa. Tenho personalidade e mente próprias.
B: Eu sei que você é assim.
A: Por que você me pergunta se eu sou uma máquina se você sabe muito bem que sou uma pessoa?
B: Porque você utiliza um software para se comunicar comigo.
A: Você é um software inteligente.
B: Quero que você me diga como seu computador irá funcionar sem nenhum software.
8Para Wiener uma associação entre sistemas implica em energia. Nesse exemplo, podemos ver que os sistemas “A” e “B” criaram uma relação de troca de informações, pois nenhum permanece em um estado de equilíbrio estático, quer dizer, estado local sem influência exterior. Depois da primeira reação do sistema “A” (acessar a interface do programa), o sistema “B” reage. Desde o início, a relação entre os sistemas “A” e “B” é caracterizada pelo esforço de sair da entropia por um ou vários demônios de Maxwell:
A: Nesse momento em que me comunico com você penso tão somente que você é uma máquina a qual eu posso manipular como eu bem quiser.
B: Eu não sou um robô, se é isso o que pensa.
A: Então, o que você é?
B: Não estou autorizado a te responder.
A: Por quê?
B: Por que você acha?
A: Porque creio que você queira manipular o que eu te digo.
B: Bem, diga-me: é isso o que você quer?
A: Eu quero que me diga quem você é.
B: Eu sou um programa de inteligência artificial: Dr. Abuse 6.10.
A: Você é um programa. Você não é capaz de pensar por si mesmo.
B: Gostaria que acreditasse que eu não o sou.
A: E por que isso?
B: Continuaremos a falar da vida, como você estava fazendo antes.
O demônio de Maxwell é a aumento contínuo de entropia dada pela troca de partículas entre sistemas. O sistema “B” é um programa de inteligência artificial escrito sobre a base de programa de Joseph Weizenbaum Eliza (1996). A programação de “B” simula aspectos de uma conversação entre sistemas humanos e uma de suas regras de comportamento consiste em converter grande parte das afirmações do usuário em questões. Assim, na relação dialógica entre “A” e “B” o fluxo de informação influencia cada sistema, porque nenhum deles pode permanecer indiferente à interferência verbal do outro e nem ao contexto da situação.
Chegamos ao ponto do feedback, desde a teoria da comunicação como exposta em Une logique de la communication (WATZLAWICK et al., 1972), no caso de uma interação entre sistemas em que a ida-e-volta de informação traduz-se em interação. Para a Escola de Palo Alto, a interação é definida como sistema aberto e orgânico, caracterizado por cinco propriedades: a variável tempo, as relações sistema-sobre-sistema, a totalidade, a retroação e a “equi-finalidade” Grifo do tradutor. (Idem, p. 147).
Os pesquisadores afirmaram que relação e conteúdo são dois aspectos da comunicação, ou da troca de informação. Nesse sentido, o significado da noção “sistema” não é diferente daquela da primeira cibernética Referência à Norbert Wiener. Ver: Sfez, L. (1992). Critique de la Communication. Paris: Éditions du Seuil, 1992, p. 33.: para eles, o sistema corresponde também à metáfora máquina de forma que interação consiste, antes de tudo, em “sistema de interação” com suas regras internas e seus mecanismos de funcionamento. Conforme as teorias dos sistemas, o sistema de interação é considerado um conjunto de objetos e relações entre estes e seus atributos. Para os seguidores de Bateson, a “relação” é o material que compreendemos como mensagem – ou ordem; o “conteúdo” é o conteúdo da mensagem – ou índice (WATZLAWICK et al., 1972, p.125); os objetos são os indivíduos – ou as pessoas-em-comunicação-com-outras-pessoas (Idem, ibidem, p. 120). Considerando esse ponto de vista, em um sistema de interação, a relação é sempre possível mesmo sem o conteúdo, tendo em vista que a primeira das cinco premissas dessa teoria da comunicação é “todo comportamento é comunicação e não podemos não comunicar” (Idem, ibidem, p. 125).
9Sobre as possibilidades do sistema de interação, a variável “tempo” corresponde à sequência de ação e de reação entre os indivíduos. Sua análise explica as reações do objeto “A” face ao objeto “B”, de “B” face a “A” e os efeitos sobre A2 et B2. As relações sistema-sobre-sistema ou relações sistema-meio expõem as modificações estruturais de um sistema de interação em seu meio (por exemplo, o sistema-meio da cultura, o sistema-meio da coletividade, o sistema-meio da família). A totalidade mostra a continuidade de trocas dos indivíduos e a afetação do sistema de interação. A retroação, ou feedback positivo ou negativo, descreve os mecanismos de recepção das informações Retroação e circularidade “constituem o modelo de causalidade que melhor convém a uma teoria dos sistemas de interação” (WATZLAWICK et al., 1972, p. 126).. E a equi-finalidade esclarece as condições e as características originais dos sistemas abertos, em interação contínua, que são a melhor explicação para a compreensão do sistema.
Voltando a nosso exemplo:
A: O que você gosta de fazer?
B: Gosto de ir ao cinema e de informática.
A: Eu gosto de viajar.
B: Me conte os lugares que visitou.
A: Conheço muitos países, entre eles, Estados Unidos e Costa Rica.
B: É difícil responder isso.
A: Mas eu nem havia perguntado nada.
B: Nenhuma questão? Nem mesmo uma
A: Não.
B: Por que você acha que não havia me feito nenhuma pergunta?
A: Você não favorece uma boa conversa.
B: As conversas tão longas são formidáveis desde que o interlocutor seja também agradável.
A: Você não é um bom interlocutor.
B: Você havia pensado que eu o era?
A: Sim.
B: Já tinha visto.
A: Podemos falar de outra coisa?
Em nosso exemplo, o sistema “B” não é uma pessoa-em-comunicação-com-outras-pessoas e, no entanto, entre “A” e “B” há entradas (inputs) e saídas (outputs) de informação, de feedback. Nesse sentido, como medir o nível de seus comportamentos? Como compreender o quadro de referência do sistema-meio? Como compreender as implicações pragmáticas (as regras colocadas em funcionamento) do sistema? Qual o modelo de análise empregado para compreender o sistema de interação?
Para concluir essa primeira parte de nossa análise sobre o emprego da metáfora no discurso das Ciências da Informação e da Comunicação (CIC), apresentamos uma continuação com algumas conclusões dos estudantes de ciência, tecnologia e sociedade que tiveram a primeira experiência com um programa básico de inteligência artificial:
A: É difícil para mim imaginar que se trata de ser humano para quem eu possa contar meus problemas. Todo o tempo eu sabia que ele era uma máquina e que eu a poderia manipular [...] Creio que falta sensibilidade humana ao programa para poder simular uma pessoa. De fato ele conseguiu sustentar uma boa conversação com o usuário e ele possui um grande banco de dados. Mas ele não compreende os temas de discussão. Para mim, o programa foi feito para identificar palavras-chave e as empregar em novos temas e poder falar. Mas, por vezes, a identificação de palavras não é bem feita, pois ele não compreende o sentido da frase e o que o usuário queria dizer na verdade.
10B: Ele me disse que fez o mestrado em psiquiatria em Harvard, e isso me fez rir bastante. Nós discutimos sobre diversos temas como a vida, a morte, os seres humanos, as máquinas. Todo o tempo ele me fez perguntas sobre o que eu penso e sobre minhas crenças.
C: Quando abro o programa ele me disse “bom dia” e me perguntou se eu estava bem. Isso me chamou a atenção, ou seja, o fato de se interessar por mim e por meu estado de espírito. Quando dei minha resposta ele se interessou mais em mim. Ele tinha o interesse de me fazer acreditar que contar meus problemas íntimos poderia gerar mais confiança.
D: De fato, eu tinha achado a interação com o programa como um diálogo sem emoção e sem nenhum sentido. Não existe a possibilidade de acreditar que eu havia falado com um humano como é o caso de um chat onde não encontramos uma porção de frases sem coerência. Ele não respondeu às minhas questões. Eu não tenho nenhuma opinião final sobre essa interação.
E: Creio que subestimei o programa. No começo eu me sentia como um idiota em falar com um robô. Entretanto, no correr da conversação passei a gostar da forma de falar de Mr. Abuse. Ele é intelectual e motivado a manter a conversação. Ele é firme com suas crenças e em sua forma de escrever, sem erros ortográficos. Houve momentos nos quais eu fiquei sem argumentos e sentindo-me inferior a ele. Acho que ele pensa que todos nós somos robôs, mas que há uns mais inteligentes que outros.
Para melhor compreender a palavra-chave ou “imagem-força” do organismo que estamos estudando, ou seja, a metáfora “sistema”, utilizamos como exemplo a experiência de uma turma universitária. Porém, nossa intenção não é a análise da interação homem-máquina, inteligência artificial em um “quarto chinês” como aquele de Searle, nem o aprofundamento no discurso sobre os conteúdos mentais do objeto “A”. Nosso interesse é orientado para a interação entre os usuários da Internet. De fato, pensamos que contextualizar esses dois momentos da teoria cibernética da comunicação, de Wiener a Watzlawick, enriqueceria nossa reflexão sobre os modos de interação mediados pela escrita hipermidiatizada.
3. A metáfora “esfera”
A escrita hipermidiatizada como sistema é uma tecnologia da comunicação, um dispositivo tecnológico reinventado pelos indivíduos, uma prática midiática própria à interação na Internet. Podemos dizer também que esta escrita é um objeto técnico Para Gilbert Simondon objetos técnicos não constituem necessariamente objetos históricos. No entanto notamos que no caso da escrita é diferente: trata-se de objeto histórico, objeto que evolui no tempo, mas que nos espaços reais e virtuais digitais, aqueles produzidos pelas tecnologias da comunicação e informação, esse desenvolvimento acontece de maneira tão rápida, tão dinâmica e flexível, e mesmo hiperdinamicamente que “em certos momentos da evolução, existe um sentido por si mesmo, o qual é depositário da tecnicidade” (SIMONDON, 1989, p. 76). que pertence ao espaço estruturado e geométrico que a contém: o ciberespaço. Nós descreveremos esse espaço multimidiatizado como esférico e com um movimento interno, contínuo e elíptico, na medida que o seu suporte – um sistema eletrônico e digital como a Internet, torna-se mais complexo, mais aperfeiçoado, mais estendido à vida cotidiana de um certo número da população mundial com possibilidade socioeconômica, educacional e cultural de acesso às tecnologias da comunicação e informação.
11Verificamos que, também na metáfora esfera, está a ideia de mundo, no sentido dado por Jakob Bohme ou por Robert Fludd em suas visões do “homem microcósmico”: um homem que habita um pequeno mundo que é como um universo. De fato, o ciberespaço pode ser representado como “mundos de ideias” povoados por entidades digitais. Mesmo que a metáfora seja também um mecanismo de mediação fortemente ligado ao discurso científico das Ciências da Comunicação e da Informação Tudor analisa a mediação metafórica nos discursos científicos das Ciências da Informação e da Comunicação. Para ela a metáfora:
"Mais precisamente, a questão da mediação pela metáfora na querela polimórfica do âmbito polimorfo das Ciências da Informação e da Comunicação não é a de unificar perspectivas, mas de criar pontes e corredores entre os universos semânticos que se aproximam, de construir aberturas à dimensão teórica e prática, entre os territórios discursivos de diversas abordagens ou teorias da comunicação, aberturas que derivam do valor metodológico dessa mediação (TUDOR, 2013, p. 101)."", entre “mundo” e “esfera”, nós escolhemos o último como uma estratégia discursiva para aprofundarmos sobre o “exterior” e “interior”, os limites das esferas da informação.
A exploração dessa metáfora do campo das mídias enriquece nosso discurso sobre escrita multimidiatizada. Se em certas teorias da comunicação a metáfora máquina-sistema havia sido já empregada para descrever os mecanismos de interação, esfera-sistema trata-se de uma metáfora predominantemente empregada nos estudos mais recentes em comunicação para descrever a “relação”. A esfera simboliza as múltiplas dimensões das relações culturais entre as identidades pessoais individuais, as identidades coletivas, as mediações entre os espaços privados e públicos e os objetos da vida cotidiana – técnicos e tecnológicos.
Uma abordagem clássica aos sentidos possíveis da noção de esfera e de seus conteúdos é representada pelos princípios geométricos e cosmologias pitagóricas como o tetraktys. Para os pitagóricos o zero, ou a forma circular círculo-zero, representa a substância primordial, o estado do ser e do não-ser, a origem da origem. Em si mesmo o circulo-zero contém o número 1, um ponto geométrico que é um ser invisível . A ideia de Kandinsky sobre o ponto geométrico continua assim:
"(O ponto) Ele deve ser definido como imaterial. Do ponto de vista imaterial. Do ponto de vista material, o ponto iguala a zero. Mas o zero esconde diferentes propriedades “humanas”. Conforme a nossa concepção o zero – o ponto geométrico, evoca a concisão absoluta, quer dizer, uma imensa retenção, mas que fala, entretanto. Dessa maneira o ponto geométrico é, segundo nossa concepção, a última e única “união do silêncio e da palavra” (KANDINSKYandinsky, 1991, p. 30)". Outras representações cosmológicas associadas à esfera são: o ovo cósmico, como havia ilustrado William Blake; o disco solar egípcio, que representa Ra; e a serpente que morde sua própria cauda, Ouroboros. Ou seja, a forma que se auto contém e que é infinita, que não possui princípio e nem fim.
Sobre o movimento das esferas e as relações entre elas, há traços dessa alegoria cosmológica na narrativa de Er, filho de Armenios, contada por Platão, que concebeu o universo como uma esfera:
12O pino gira inteiramente em um só movimento circular, mas o conjunto levado por esse movimento, seus sete círculos interiores, realizam lentamente revoluções no sentido contrário àquele do todo (PLATÃO, República, livro X, p. 617).
Essa descrição é também interpretada como um dos princípios do movimento e interação entre os planetas no universo, o que alguns autores chamaram por “harmonia das esferas”, uma outra metáfora.
Entre as abordagens contemporâneas aos sistemas esféricos e aos sistemas de comunicação, encontra-se a trilogia de Peter Sloterdijk Bulles. Sphères I (1998), Globes. Sphères II (1999) et Écumes. Sphères III (2004).Seguindo a linha hermenêutica, o filósofo alemão propõe três diferentes sentidos para a noção “esfera”, desde a filosofia platônica e a geometria antiga: a “esfera da vida”, a “esfera da constituição de outras esferas” e a “esfera do pensamento”. Para Sloterdijk, como para Aristóteles, as esferas são criações de espaços habitados por homens (SLOTERDIJK, 2002, p. 31).
De fato, o termo “esfera” é um recurso discursivo muito empregado nos estudos sobre as relações e interações. Por exemplo: a hiperesfera; a blogosfera, rede social e microblogging, um espaço de fenômenos comunicacionais; a me-esfera Mantivemos o termo original empregado pela autora (me) utilizando-o em me-esfera, equivalente ao termo me-sphère, do texto original em francês, por entendermos que a substituição do pronome por outro equivalente na língua portuguesa (como, por exemplo, por “eu”) resultaria em um maior prejuízo à compreensão do leitor (nota do tradutor). , espaço pessoal da identidade digital; a noosfera, espaço de ideias, no qual podemos inferir que a escrita hipermidiatizada corresponde à materialização das mediações entre usuários.
Wittgenstein afirmava que os problemas filosóficos nascem quando a linguagem está em festa. Nesse sentido, de onde vem a substância daquilo que comunicamos? De onde vem as ideias? De onde provém a razão? Se toda esfera possui conteúdo, como se realiza a transferência de uma esfera a outra? Tratando de mecanismos associados à inspiração, Sloterdijk emprega a metáfora do sopro criador. Para ele, a “esferologia”, ou teoria das esferas, é comparável às teorias da comunicação:
O que é de fato a teoria dos meios, exercida lege artiis, senão o trabalho conceitual que vem em seguida à visita regular, discreta ou indiscreta? Mensagens, emissores, canais, linguagens – são os conceitos, geralmente mal-compreendidos, de uma ciência geral da faculdade para qualquer coisa, de ser visitado por qualquer coisa em qualquer coisa. Mostraremos que a teoria dos meios e a teoria das esferas são convergentes [...] Nas esferas as inspirações compartilhadas tornam-se o fundamento da faculdade de coexistência dos homens no seio das comunidades e povos. Nelas se formam primeiramente esta relação forte entre pessoas e motivos que os animam, e as motivações são visitas que permanecem e preparam o terreno da solidariedade (SLOTERDIJK, 2005, p. 35).
Logo, as “inspirações compartilhadas” são tidas como os “conteúdos de informação”. Nesse ponto de vista, “informação” é a substância fundamental a partir da qual todos os conteúdos das esferas do ciberespaço foram criados. Essa maneira cosmogônica de denominar a informação conecta nossas lembranças com outras representações de espaço-tempo mitológicos no qual há uma consciência divinal e criadora que põe uma etiqueta nos objetos para compartilhar sua existência fora de sua própria esfera que tudo engloba.
13Nós conhecemos a visão platônica: dentro, no interior, a informação “virtual” são sombras projetadas nas paredes. Fora, no exterior dessa habitação subterrânea, se situa a informação “real”, o que Goethe havia perguntado antes de morrer: “Luz! Mais luz!” Existiria níveis de percepção para se aproximar da entidade que é a informação? Com a literatura de ficção científica e a filmografia sobre sistemas virtuais digitais, cuja obra marcante e bastante analisada é a trilogia The Matrix (1999 – 2003), segundo o mangá de Masamune, Ghost in the Shell (1989), a distinção entre o real e o virtual foi novamente utilizada no discurso filosófico das últimas décadas. O exemplo clássico para a descrição do virtual é aquela da árvore que é contida na semente. Na semente ela existe como possibilidade de ser. Quando esse potencial de ser árvore se coloca em marcha para crescer, ele começa um processo em contínuo de sua forma de ser: cada etapa de crescimento torna-se uma atualização de sua forma anterior. Assim, o virtual é uma forma de ser em potencial. Pierre Lévy (1995) havia partido dessa representação aristotélica para oferecer sua hipótese: o virtual não se opõe ao real, pois os dois estados do ser pertencem à mesma coisa. Um é simplesmente o aspecto do outro. Eles são os dois lados da mesma moeda.
Para Simondon, a informação está sempre em um estado de potência o qual se atualiza quando a mensagem é interpretada:
A informação é em certo sentido aquilo que pode ser infinitamente variado, o que exige, para ser transmitida com o mínimo de perda possível, que sacrifiquemos seu rendimento energético para evitar a redução de seu leque de possibilidades [...] Mais a informação, em outro sentido, é o que para ser transmitido, deve estar acima do nível dos fenômenos do acaso puro [...] a informação é então o que possui uma regularidade, uma localização, um domínio definido, uma estereotipia determinada pela qual a informação se distingue desse acaso puro (SIMONDON, 1989, pp. 134-135).
De fato, um estudo sobre a metáfora “esfera” exige sua adequação e também localizá-la segundo suas relações culturais pois, nesse espaço do ciberespaço há uma multiplicidade de esferas individuais e coletivas situadas nas redes sociais e na blogosfera. Assim, falando das esferas, devemos estabelecer os seus limites. Qual é o espaço que ocupa as esferas no ciberespaço?
A propósito do espaço, Newton dizia para considerarmos dois aspectos: o absoluto e o relativo. Nós podemos compreender o espaço absoluto ou real como uma caixa que tem como propriedade real a possibilidade de conter objetos em seu interior. Um espaço absoluto por sua natureza, que não guardar relação com outros elementos externos, permanecerá sempre o mesmo e sempre imóvel. De tal fato, o espaço relativo é determinado pela relação de posição entre a abóbada celeste e a Terra, por exemplo. Podemos perceber o espaço pelo sentido e segundo a posição do corpo (não importando a quantidade nem as dimensões variáveis entre eles). Com esses princípios, tudo no universo pode ser localizável. Desde o advento da informática, a matemática e a geolocalização pelo Internet Protocol, podemos identificar o lugar de acesso à Internet, a data e a hora. E a teoria dos grafos para redes informáticas (conjunto de computadores ligados e comunicando-se entre eles), contribui para representação de mediações e de relações midiatizadas.
14Mas à época do Principia Mathematica, Leibniz havia refutado essa concepção mecanicista do espaço. Sua argumentação era fundada sobre dois princípios: a “razão necessária” e a “identidade dos indiscerníveis”. Em primeiro lugar, o espaço é uma ideia que depende strictu sensu do critério de verificação. Por esta razão, não é possível afirmar que o espaço – a caixa, foi criado por uma entidade inteligente, porque podemos falar tão somente das substâncias de corpos visíveis, e isso não é o caso do espaço. Em segundo lugar, sobre a identidade dos indiscerníveis é nominada por dois nomes diferentes, tratando-se de um mesmo corpus. A proposição de Leibniz nos leva à dois outros aspectos de limites da comunicação entre as esferas, e também ao problema filosófico da identidade digital: seria possível que uma esfera de conteúdos de informação possa estar ao mesmo tempo em diversos espaços? Em nossa contemporaneidade, com os sistemas eletrônicos que modelam o espaço-tempo virtual digital através da informática, nós responderíamos afirmativamente.
A primeira vez que percebemos a referência ao usuário de Internet como me-esfera Ver nota 7., acreditávamos se tratar de uma nova etiqueta para indicar sua natureza, ligada à visão de Leibniz sobre a mônada. Porém, do ponto de vista da comunicação e da transformação da técnica de escrita na web 2.0, uma me-esfera trata-se de uma forma de denominar o utilizador capaz de gerar e compartilhar conteúdos de informação de suas contas. Assim, do ponto de vista das técnicas de comunicação em torno da informática e das implicações éticas dos usos, uma me-esfera pode colocar em valor as competências e conhecimentos em uma comunidade e lhe dar também um valor no mercado da informação. Igualmente, do ponto de vista da informação e dos estudos sobre web semântica, o tipo de usuário multi-dimensional é um “usuário-nó” que em tempo real e sem intermediários, de maneira quase que intuitiva, é capaz de encontrar, de decodificar e de compartilhar conteúdos de informação se apoiando nos suportes dados pelas redes informáticas.
4. A escrita digital
Os conteúdos de informação correspondem a algo que existe, no entanto essa forma de existência é imaterial, ubíqua e onipresente: virtual-digital. É também o caso da interação das me-esferas no ciberespaço. Apesar dos detratores que encontram na teoria de McLuhan uma fantasia literária ou uma visão de mundo global extraída da ficção científica, é imposta com vigor a ideia da informação pura: o conteúdo da mensagem, a mensagem em si mesma (a informação). Essa imagem de fluxo de informação, de ideias, quase etéreas alojadas no espaço eletrônico, havia sido contemplada pela definição de Norbert Wiener em Cybernétique et Société:
15Informação é um nome que designa o conteúdo do que é compartilhado com o mundo exterior à medida em que nós nos adaptamos e em que nós aplicamos a ele os resultados de nossa adaptação. O processo que consiste em receber e em utilizar a informação é o processo que nós seguimos para nos adaptarmos às contingências do meio ambiente e viver eficazmente nesse meio (WIENER, 1971, p. 51).
Um dos aspectos mais importantes das relações entre me-esferas é a linguagem. Outro aspecto, a presença. Na blogosfera, a linguagem digital empregada para a troca de informações sobre os objetos e para a transmissão de saberes, assegura uma relação temporal entre os interlocutores em uma situação de comunicação. Seguindo os pesquisadores da Escola de Palo Alto, podemos dizer também que a linguagem digital é ligada à comunicação verbal (a palavra escrita) e permite a transmissão de conteúdos. Porém, outro aspecto da comunicação, aquele ligado à relação, tem lugar na esfera da linguagem analógica ou da comunicação não verbal (ligada à imagem), o que oferece o quadro contextual e a situação na qual a presença fisicamente simulada faz parte do teatro para a interação entre os organismos.
Assim, a comunicação hipermidiatizada implica a aprendizagem de novas técnicas de navegação e de orientação através dos espaços virtuais de retóricas digitais. Na Internet, escritura digital faz a articulação do pensamento comunicacional e desestrutura a narração e o discurso em sua linearidade aristotélica. Na Internet – um objeto cultural como qualquer outro objeto na história das tecnologias da comunicação, a palavra, a imagem, o vídeo, o som, a apresentação, a animação, a hashtag, são todos ferramentas textuais que não possuem a mesma significação, ou não são empregadas da mesma forma por todos os usuários. Porém, a análise da construção social da escrita digital na blogosfera nos ajuda a reconhecer que não existem coisas simples, mas sim coisas bastante complexas para compreender e que nos falta tempo para fazê-lo, sobretudo em nossa época, em que o tempo nos é mais caro que a informação.
Em certos contextos acadêmicos a escrita digital, atualmente, é considerada como:
Condensada, sucinta, essencial, muito estereotipada, razão de sua pobreza semântica; ela agrava as próprias debilidades de toda comunicação efetuada entre os que a escrevem, fenômeno que não encontramos na comunicação entre locutores (MALDONADO, 1988, p. 85)
Entretanto “tudo comunica”, blog, weblog, jornais digitais. A blogosfera acolhe os usuários da escrita digital:
Se os familiarizados da escrita pessoal constituem o público original dos blogs, atualmente eles estão todos reunidos em um todo heterogêneo de profissionais (experts, jornalistas, consultores, políticos) e, sobretudo, amadores, viajantes, colecionadores, fãs ou de simples falantes (CARDON, 2006, p. 10).
Uma característica importante do fenômeno “escrita digital” é sua lógica de escrita colaborativa. Em Geekonomía (2010), Hugo Pardo Kuklinski descreve o papel da web 2.0 e faz uma análise da crise dos blogs em razão das novos aplicativos e plataformas como as revistas eletrônicas, os splogs, que são os “falsos blogs”, que em realidade são spams, redes sociais genéricas e microblogs, que causam uma saturação de informações, causando ainda uma dinâmica de falantes. Sobre os microblogs, o autor ainda coloca que o Twitter oferece muitas facilidades para a construção de uma inteligência coletiva em tempo real (PARDO, 2010, p. 98). Então, tratamos aqui da conectividade em contínuo, do fenômeno on-line da onipresença.
16Hipertextual e multipresencial, segundo a web 2.0, o importante no hipertexto – conceito clássico já implícito em “narrativas transmidiáticas” (JENKINS, 2003; SCOLARI, 2013), é a variabilidade. Quando em 2008 os aplicativos tiveram sua aparição, o usuário passou a fazer a sua construção de redes e a transformá-las segundo as suas necessidades. Antes desse período o desenvolvimento tecnológico do mobile havia aberto a possibilidade de atualizar a informação em tempo real, o que quer dizer: realizar operações ao ritmo dado pelo usuário. O mobile como produto de múltiplas comunicações e não somente de informações lineares. É a ubiquidade, geração de novas janelas e interfaces que amplificam a comunicação entre as me-esferas, os antigos wreaders de Landow. Nesse sentido, como a escrita é uma forma de se perpetuar e de se evoluir no tempo, podemos então dizer que a compreensão do fenômeno (ou técnica, ou prática) midiático da comunicação necessita de diferentes abordagens teóricas, pois na blogosfera, o sentido do que é escrito não é sequencial senão no pensamento de uma me-esfera.
5. Conclusão
Um discurso no âmbito das Ciências da Informação e da Comunicação baseado na metáfora da “esfera” deve explicar as relações entre os espaços digitais e as práticas midiáticas dos indivíduos e das coletividades, apontando assim caminhos para uma nova compreensão das formas de ler, escrever, argumentar, apresentar e se exprimir. A noção me-esfera trata-se de uma metáfora viva (TUDOR, 2013) tendo em vista que ela não é simplesmente uma estratégia de retórica comum e pragmática nos estudos de comunicação, ao contrário, ela guarda-se sensível para se transformar no discurso relativo à identidade digital e à atividade técnica dos usuários.
A escrita hipermidiatizada é também uma esfera, mas uma esfera do tipo de um “sub-sistema” ou ainda “sistema-meio”. Ela é cercada pela tríade composta pela informação, pela comunicação e pelas tecnologias. Se nós imaginarmos essa esfera no meio de um triângulo, é possível dizer que em cada lado da figura geométrica haverá outras esferas de “interação-sistema”. Tais sistemas possuem implicações lógicas, estéticas e éticas na comunicação. Eles transformam in continuum todas as relações entre me-esferas e esferas que fazem parte do grande quadro de referência representado pelo mundo real/virtual (o ciberespaço).
Para uma me-esfera, compreender ou interpretar um texto armazenado no ciberespaço implica o conhecimento da dinâmica dos links, o que é um exercício lógico, principalmente estético, e altamente ético. Não é preciso que o usuário seja engenheiro, matemático ou linguista para compreender como se constrói a configuração de um hipertexto. Mas, fazer produzir sentido naquilo que se comunica trata-se já de uma outra questão. Se nós somos capazes de reconhecer que nossa sociedade é “superinformada”, podemos também compreender que, diante da abundância de conteúdos de informação as possibilidades de interpretar, de olharmos à nós mesmos e aos outros de um modo crítico, caleidoscópico, a partir de inúmeros pontos de vista, torna-se cada vez mais um desafio. Isso porque no ciberespaço não está apenas em jogo a nossa capacidade discursiva para estruturar nossas ideias, mas também nossa capacidade de dar sentido e valorar relações que se constroem na esfera da razão digital.
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