Apresentação
Pelo viés de uma simples transmissão de mensagens, o fenômeno da comunicação humana se instaura de maneira a fazer abarcar em si outros fenômenos: a interação, a produção de sentido, a fala, a escrita, o simbólico. Abre-se espaço à livre expressão, à subjetividade, razão pela qual a comunicação também é encarada como uma autêntica “performance da cultura”, empregando as palavras utilizadas por Yves Winkin.
Debruçar-se sobre a produção de sentido envolvida nesse processo de interação social pode conduzir-nos à compreensão da realidade, na medida em que a observação desse fenômeno oferece-nos, a cada investida, acesso aos elementos pelos quais essa realidade é construída.
Uma característica facilmente observável no atual contexto, marcado pelo forte avanço do capitalismo, é a crescente projeção dos elementos técnicos de mediação da comunicação, empregados em suas diversas etapas, seja na transmissão, na representação ou no armazenamento de informação. Entram em cena as tecnologias da informação e da comunicação (TIC) e uma recorrente propagação do que se pode chamar por “realidade tecnológica” e por “sociedade da informação”, essa última, denominação empregada em uma das resoluções internacionais propostas pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 1998.
A pujança do tema, compreendido pelo binômio “tecnologia-informação”, deflagrada no fim dos anos 1990 pela assinatura do acordo internacional em questão, com respaldo internacional da ONU, direciona também o nosso interesse investigativo para o estudo dos níveis de participação na vida cotidiana, e nível de influência exercida pelo elemento tecnológico – os aparatos mediadores da comunicação –, sobre o processo de construção da realidade.
Cada vez mais presentes, aparatos como computadores pessoais e smartphones, não somente realizam com mais velocidade algumas funções já desempenhadas por outros aparatos, tais como o telefone ou o Minitel francês, mas também agregam novas possibilidades para a interação e para a comunicação humanas, inaugurando novas vias em um espectro de atuação muito mais amplo que aquele que se conhecia há duas ou três décadas.
Nesse novo horizonte de possibilidades, os mais diversos campos de atuação humana têm se beneficiado pela adaptação e aplicação das TIC em suas rotinas, como é o caso da telemedicina, do comércio virtual e do ensino à distância, somente para citar três exemplos. Ao mesmo tempo que novas práticas se constituem, dentro dessa nova ótica da “sociedade da informação”, outras se transformam completamente. Segundo Granjon e Denouel (2011):
2Qualquer que seja a esfera social considerada (doméstica, profissional, do lazer etc.), há que se constatar que os usos dos dispositivos digitais tornaram-se atividades as mais ordinárias na medida em que elas se integram cada vez mais ao cotidiano dos indivíduos, chegando mesmo a se apresentarem, por vezes, como verdadeiros imperativos práticos [...] A mediação pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (NTIC) favorece igualmente a emergência de novos modelos de referências, de valores, de ações e de relações sociais que transformam nossa relação à si e ao coletivo e participa totalmente da produção das sociedades contemporâneas. (GRANJON et DENOUEL, 2011, p. 8)[1]
No âmbito das pesquisas em ciências da comunicação e informação, levando-se em conta o atual estágio de desenvolvimento tecnológico, podemos sinalizar a emergência de uma importante questão, que apresentamos nos seguintes termos: como esses aparatos que participam diretamente dos processos ligados à comunicação humana interferem no próprio processo ao qual mediam? Cabe-nos, de antemão, analisar a questão antes de nos engajarmos a encontrar as suas possíveis respostas. Problematizando-a um pouco mais, há que se explicitar o sentido do verbo “interferir” ora empregado, que parece-nos abrigar as ações de moldar, de transformar, de modificar, de reconfigurar, de inovar.
Encarando-a por esse prisma, observamos que a questão deixa um sentido implícito ao inferir que o aparato técnico tem papel determinante na mediação da comunicação humana, tratando-se de elemento capaz de condicionar e definir o processo. Importantes estudos e conceitos em ciências da comunicação e da informação foram fundados sob essa perspectiva, ou seja, sob a égide do que ficou conhecido por “determinismo tecnológico”. Nesses estudos, o impacto do elemento social, do contexto das práticas humanas e da apropriação e desvio das funcionalidades dos aparatos são relegados a segundo plano.
Ora, nos parece certo reconhecer o poder, por vezes condicionante, do aparato tecnológico em nossas interações diárias, e consequentemente, nas construções simbólicas e na constituição de uma “realidade informacional”. Entretanto, há que se reconhecer a relevância do elemento humano, do elemento social em vista dos usos e apropriações que fazemos desses mesmos aparatos, aos quais são adicionadas novas funcionalidades, ou suprimidas as já existentes, adaptando-os a cada contexto.
Se por um lado a deflagração desse estado de coisas sugere que o corpo social reconheça o problema do superdimensionamento, ou do “determinismo tecnológico”, para que assim se possa guardar certa distância crítica frente às ideologias e às novas realidades que parecem se impor, por outro lado, exige-se do pesquisador, além desse distanciamento, a rápida apresentação de possíveis saídas para um potencial impasse, o que opõe sociedade e tecnologias da informação e da comunicação.
As visões deterministas constituíram e constituem a pedra fundamental de uma série de estudos desenvolvidos em diferentes campos, como os da sociologia, das ciências da computação, da comunicação e informação, por exemplo. E no seio de cada um desses campos de pesquisa, podem ser identificados alguns estudiosos que a elas se opõem. No campo das ciências da informação e da comunicação, Bernard Miège evita pensar a técnica como instância exterior à sociedade e separada dela: “é definitivamente inútil separar a técnica do social, pois são instâncias unidas por inúmeras mediações” [2] (MIÈGE, 2012, p. 22). Por essa razão o mencionado autor propõe a utilização da palavra sociotechnique ao invés de technique:
De fato, o que é fundamental é mostrar em que a esfera da técnica é feita igualmente do social, e em que as lógicas sociais da comunicação encontram os objetos técnicos, sendimentando-os nelas; em outros termos, trata-se de procurar como uma (a esfera da técnica) e a outra (o social em sua complexidade) se articulam, e abandonar o esquema de raciocínio fortemente difundido segundo o qual tudo procede de uma (ou de uma série) inovação(ões) técnica(as) originária(s), o resto, ou seja, o social, o cultural, o simbólico, etc. disso dependente e a isso tendo que se adaptar [3] (MIÈGE, 2012, p. 14).
3Atribuindo a devida relevância e premência à apropriação e ao uso do aparato técnico pelo homem, que conforme suas necessidades e com base em sua capacidade de compreensão e interpretação do contexto social em que vive, irá empregá-lo como melhor lhe aprouver, evidencia-se também a relevância de seu quadro interpretativo e, logo, dos aspectos simbólicos que participam das interações humanas.
Encarado como um animal symbolicum (Cassirer, 1972; Bratosin, 2007), o homem é também aquele que luta, que se engaja para cumprir uma tarefa, ou ainda, um homme agonique, que utiliza sua capacidade “de intervir de uma maneira simbólica nas transformações da organização simbólica da sociedade” [4] (BRATOSIN, 2007, p. 126). Ambas as considerações reforçam a importância do contexto social, e também a relevância dos estudos dos usos e apropriações – usages –, que se fazem desses aparatos, os quais são geralmente designados por tecnologias da informação e da comunicação.
Partindo do reconhecimento do papel determinante do contexto social frente aos usos, apropriações e transformações das tecnologias da informação e da comunicação, reconhecendo também o homem como animal symbolicum e, ainda, reconhecendo a força englobante do discurso determinista em torno dessas tecnologias, chegamos ao presente trabalho coletivo intitulado “Tecnologia e sociedade: configuração, reconfiguração” que compõe a coleção viabilizada pela Funarte, MinC e CAPES e dirigida por Cleomar Rocha, designada “Invenções”.
Abrigando em sua maior parte relatos atuais de pesquisa no âmbito da comunicação e informação e campos correlatos, o objetivo principal do presente volume é fornecer novos subsídios às investigações de pesquisadores brasileiros, no que tange não somente ao campo teórico, visto nas abordagens adotadas por cada autor, mas também quanto aos temas de cada um dos trabalhos apresentados, que abrigam desde questionamentos advindos da área da saúde, à filosofia, à teoria do conhecimento e às ciências da computação.
As pesquisas em curso que serviram de suporte a cada um dos autores selecionados integram o quadro investigativo atual de alguns dos principais laboratórios franceses, dentre eles, os que integram as Universidades de Montpellier, Universidade de Toulouse, Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3) e Universidade de Lyon, no âmbito das ciências da informação e da comunicação.
Além de destinar-se aos pesquisadores dos diversos campos do conhecimento ora mencionados, o presente livro destina-se igualmente ao estudante ingressante à universidade, que traz consigo um novo olhar, forjado em um contexto de fortalecimento dos preceitos da mundialização e da sociedade da informação. Ainda, para aqueles que atuam no mercado de desenvolvimento de mídias interativas, o presente trabalho abriga um relato de produção de games pela empresa Swing Swing Submarine, feito por seu programador e manager, Guillaume Martin, que atua no concorrido e exigente mercado francês do entretenimento eletrônico.
Além do relato de produção destacado, o segundo livro da coleção Invenções abriga interessantes discussões sobre interação em contextos digitais e os possíveis resultados em nosso processo de aquisição de conhecimento, como proposto por Naoil Chaouni, a nossa relação com os meta-universos, o imaginário oriundo das science fictions e o debate sobre o real e o virtual apresentado por François-Gabriel Roussel a partir de um questionamento: fusão entre real-virtual? Ou confusão? A escrita, as transformações vistas em uma forma de “escrita hipermidiatizada”, podem indicar a instauração de uma nova relação do eu com o mundo, um mundo tecnologicamente mediado? Esta é a indagação de Andrea Rodríguez Manceraque trabalha a questão em seu artigo a partir do estudo de uma metáfora.
4Os pesquisadores Mihai Crangasu e Aurora Burca contemplam o campo de estudos em propaganda e publicidade em seus respectivos artigos, o primeiro trabalhando o conceito de mundialização e o impacto sobre uma campanha e a segunda se interessando ao contexto de um advergame e do lúdico associado à tecnologia na publicidade. A autora Diana Giraldo, a partir de sua pesquisa de doutorado, apresenta os resultados do uso de ferramentas pedagógicas baseadas nas tecnologias da informação e da comunicação, enquanto que Nathalie Verdier indaga quais são os impactos dos usos das TIC na medicina, a deflagração da telemedicina no contexto francês e europeu e as questões políticas e éticas daí derivadas, artigo que contou com minha colaboração no que se refere ao levantamento do estado atual do contexto brasileiro da telemedicina.
A execução e concepção do presente projeto somente foram possíveis graças ao empenho de seu idealizador, o professor, pesquisador e desenvolvedor Dr. Cleomar Rocha, atual coordenador do recém-inaugurado Media Lab, da Universidade Federal de Goiás, a quem gostaríamos de deixar o registro de um sincero e especial agradecimento, assim como ao professor e tradutor Edouard Hugues Braun, responsável pela tradução de parte dos artigos que compõe o livro.
Vanderlei Cassiano
5Referências
BRATOSIN, Stefan. La concertation dans le paradigme du mythe. De la pratique au sens. Éditeur: Peter Lang, 2007.
DENOUEL, Julie et GRANJON, Fabien (dir.). Communiquer à l’ère numérique: regards croisés sur la sociologie des usages. Transvalor, Presses des Mines, Paris: 2011.
MIÈGE, Bernard. La société conquise par la communication. III. Les TIC entre innovation technique et ancrage social. PUG Presses universitaires de Grenoble, 2007.
WINKIN, Yves. Anthropologie de la communication. De la théorie au terrain. Éditions du Seuil, 2001.
[1] Trecho traduzido do excerto original em francês do livro Communiquer à l’ère numérique (2011), dirigido por Granjon et Denouel: Quelle que soit la sphère sociale considérée (domestique, professionnelle, du loisir, etc.), force est de constater que les usages des dispositifs numériques sont devenus des activités parmi les plus ordinaires dans la mesure où eles s’intègrent toujours davantage au quotidien des individus et se présentent parfois même comme des impératifs pratiques [...] La médiation des TNIC favorise ainsi l’émergence de nouveaux modèles de références, de valeurs, d’actions et de relations sociales qui transforment notre rapport à soi et au collectif et participent à part entière à la production des sociétés contemporaines (GRANJON et DENOUEL, 2011, p. 8).
[2] Trecho traduzido do excerto original em francês : « […] il est finalement assez vain de séparer le technique du social car ils sont reliés par des médiations nombreuses » (MIÈGE, 2012, p. 22).
[3] Trecho traduzido do excerto original em francês : « Et en effet, ce qui est capital, c’est de montrer en quoi la sphère technique est fait également de social, et en quoi les logiques sociales de la communication rencontrent les objets techniques et se ‘sédimentent’ en eux ; en d’autres termes, il s’agit de rechercher comment l’une (la sphère technique) et l’autre (le social dans sa complexité) s’articulent, et d’abandonner le schéma de pensée fort répandu selon lequel tout procède d’une (ou d’une série) d’innovation (s) technique(s) principielle(s), le reste, c’est-à-dire, le social, le culturel, le symbolique, etc en dépendant et devant s’y adapter » (MIÈGE, 2012, p. 14).
[4] Trecho traduzido do excerto original em francês: “d’intervenir d’une manière symbolique dans les transformations de l’organisation symbolique de la société” (BRATOSIN, 2007, p. 126).
Tradução dos excertos por Vanderlei Cassiano