Prefácio
Cleomar Rocha é um inquieto. Acompanhei de perto o processo de feitura deste livro e mais todos os projetos simultâneos que tinha - e fazia acontecer - na UFG. Incansável, sua inclinação de pesquisador e estudioso da cultura digital, em todas as suas facetase implicações, compete com seu perfil empreendedor, raro na academia.
Neste livro, o perfil duplo de Cleomar é aquecido e produz um estudo no qual alia a competência do pesquisador ao impulso executivo que traça metas e estratégias para conseguir seu objetivo. Digamos que a meta estabelecida seja a explicitação dos aspectos poéticos latentes e ativados na construção de interfaces geralmente observada como um processo de construção tecnológica ou, no máximo, como uma criação na área do design.
Na contramão, Cleomar vai nos oferecer uma viagem circular pelos sentidos, entendimentos e percepções da ideia de interface até chegar ao ponto desejado: o encontro com uma poética da interface.
Para uma especialista na área da literatura e, por consequência, do poder metafórico e suas infinitas possibilidades e usos, acompanhar este estudo foi especialmente gratificante.
Uma primeira observação é que Pontes, janelas e peles não é um exercício teórico de base intuitiva ou impressionista. Cleomar, ciente de sua meta, parte de uma observação meticulosa para desnaturalizar o sentido popular da noção de interface. Com cuidado e paciência, estabelece várias entradas possíveis para esta leitura, produzindo um quase caleidoscópio do universo de pequenas oscilações nos sentidos de interface.
Mas, operacionalmente, começa pelo começo, por sua origem etimológica. Etimologicamente, interface quer dizer o elemento entre duas faces. Com base nessa definição, observa a emergência de uma primeira metáfora: a metáfora da ponte, sugerida por Hackos, representando um terceiro elemento que une as duas margens de um rio. Mas, se aflige o autor: Por que ponte? Por que não um rio ou uma embarcação? Estas perguntas estimulam o próximo passo da pesquisa. Ou a próxima metáfora: a janela, formulada por Raskin como a expressão do locus no ciberespaço que se abre para o mundo. A ponte, a janela. Ou ainda mais sensível, a pele, segundo Pierre Levy , a pele enquanto contato do corpo com o mundo exterior traduzindo em via dupla informações para os impulsos nervosos do corpo e vice versa. Vão se acumulando e se confundindo fantasias, percepções , experiências , práticas da e sobre a interface.
A metáfora muito estudada politicamente pelas teóricas feministas, sinaliza não apenas um desejo de expressividade mas, ao contrário, uma clara necessidade de nomear fatos ainda não muito identificados ou o desejo de recusar a nomeação e deslizar para o estereótipo dominador. A pergunta
“o que tornou essa metáfora necessária?” acompanha de perto as análises dos estudos culturais especialmente aqueles sobre as minorias ou novos objetos e campos de pesquisa.
Entretanto, não só de metáforas se faz uma poética. Outras figuras de retórica são necessárias. Neste caso, a metonímia, contígua à origem etimológica de cibernético - o timoneiro - é bastante expressiva na representação das ações do usuário neste novo ambiente líquido, sem governança, e tão fascinante quanto desconhecido da internet. Emerge a figura da navegação pelos fluxos abundantes e incontroláveis da informação. E o que dizer da figura do mergulho no mar de informações e simulações dos sistemas digitais interativos?
2Das primeiras experiências do Xerox 8010 star em 1981 até a interface da Apple Mac Os X Mavericks 2013 a trajetória é extensa incluindo e agregando interfaces visuais, sonoras, cognitivas, até tornar-se uma poética de fato e de direito com a transformação das interfaces em mídias criadoras de comunicação estética entre o usuário e o sistema. Trajetória esta que se confunde com as inúmeras imagens, metáforas e metonímias criadas pela necessidade urgente de criar modelos inteligíveis e amigáveis de atuação nesse ambiente radicalmente novo que é o universo digital.
O ponto de chegada da interface como poesia e sua capacidade de promover a intensidade cognitiva e sensível da experiência estética, transforma definitivamente o deslumbramento inicial com a tecnologia, em encantamento, o efeito profundo da arte e poderoso fator de transformação na natureza da cultura moderna.
A abordagem eleita por Cleomar ao identificar, no imaginário de criadores e usuários, a trajetória da evolução tecnológica da interface me fascinou e, de certa forma, me permitiu a entrada, como profissional de Letras, no mundo das interfaces. Nesta qualidade, é que posso e venho recomendar este trabalho como uma leitura importante e instigante para
poetas-cientistas e programadores-poetas.
Heloisa Buarque de Hollanda
Palavra breve do autor
Este livro reúne as pesquisas desenvolvidas em dois estágios pós-doutorais, sendo o primeiro em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, realizado na PUC-SP, sob supervisão de Lucia Santaella, e o segundo em Estudos Culturais pela UFRJ, sob supervisão de Heloisa Buarque de Hollanda.
As pesquisas traçam um perfil das interfaces computacionais e de sua relação com as poéticas da interface, definindo melhor o termo, bem como sua emergência nas áreas da informática, arte e do design. As inúmeras definições encontradas resultavam em uma vagueza do termo e, consequentemente, uma dificuldade de precisar sua abrangência, problema este também verificado no mercado quando da indefinição de papéis e funções de equipes de desenvolvimento de interfaces computacionais. Mesmo a formação em nível de graduação e pós-graduação padece de imprecisão, ao selecionar conteúdos voltados ora exclusivamente para a área de desenvolvimento de sistemas computacionais, ora exclusivamente para as áreas de percepção e comunicação visual. Em outras, ainda, o contexto poético se confunde com intencionalidades e pouca operacionalização, o construto poético efetivamente.
O percurso teórico buscou dialogar com vários autores que nortearam não apenas a problematização do tema, mas sua abrangência, o que certamente dá condições de melhor definição da área de projeto de interfaces computacionais. De modo mais pontual, o texto condensa as discussões mais profícuas, apresentadas textualmente, como verificado, e propõe uma classificação das interfaces computacionais, tendo como fio condutor o modo de acionamento em termos de entrada e saída de dados do sistema ou, mais precisamente, o modo de interação entre interator/usuário e sistema. Após tais discussões, a título de contribuição, a pesquisa trilhou e apresenta dados teóricos relevantes para compreender as interfaces no contexto da arte tecnológica, perfazendo uma etapa importante para a compreensão das poéticas das interfaces. Isso significa dizer da construção de um pensamento que evoca desdobramentos, suscita e demanda contribuições e adensamentos.
3Ao lançar a segunda edição do livro, acrescentei um novo capítulo, não exatamente para atualizar seu conteúdo – ele continua muito atualizado -, mas para atender a uma demanda do autor, no anúncio de uma nova linguagem baseada em conexões cerebrais, mediadas pela tecnologia. As sinapses tecnológicas apresentam-se como novo capítulo não apenas do livro, mas da cultura. E é neste livro que faço este anúncio, a partir desta segunda edição. A pesquisa desta linguagem foi fruto do terceiro pós-doutoramento, em Poéticas Interdisciplinares, realizado na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob supervisão de Maria Luiza Fragoso. Como o tema é deveras intrigante, faço o anúncio neste breve último capítulo deste livro, na certeza de que um outro encaminhará, de maneira apropriada, toda sua base.
Meu muito obrigado à Lucia Santaella e Heloisa Buarque de Hollanda, escutas atentas e críticas para o que apresento; à Fundação Nacional de Artes (Funarte/MinC), pelo prêmio Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais – categoria Reflexão, que possibilitou a escrita deste livro; à Universidade Federal de Goiás (UFG) e em particular à Faculdade de Artes Visuais e ao Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, pelo apoio irrestrito. Também ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), apoiador das pesquisas realizadas enquanto pesquisador bolsista produtividade; e às equipes CIAR e Media Lab/UFG, pelo incentivo constante, e por serem propulsoras de novas emergências.
Desejo aos leitores uma leitura instrutiva, na perspectiva de diálogos promissores.
Cleomar Rocha