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Dentro de si, no fundo do mundo: o sujeito no espaço contemporâneo

Eguimar Felício Chaveiro

Introdução

Vai ao show de rock, mastiga chiclete enquanto pensa no que dirá ao professor relativo ao atraso na aula de sociologia da imagem; retoca o batom com os dedos de olho na tela do Notebook; faz uma pose de escândalo e posta-a no facebook; toma uma cerveja no bar da esquina, já é amiga de João do Bar. Fica entre a dieta rigorosa lida e apreendida num jornal encontrado na sala do dentista e o palpite de que para melhorar a vida é preciso meditar; está firme na mobilização que luta contra o aumento do preço das tarifas do transporte coletivo; toma um remedinho para dormir; leu a biografia de Steve Jobs e conhece a vida de Tati Quebra Barraco. Ela.

Sonha em ser jogador de futebol, jogar no Barça – se possível. Rói as unhas, malha para ter uma barriga de tanquinho; vai ao shopping trocar o aparelho celular e, se rolar, vai dar uma “azarada”; possui uma identidade política definida: é ambientalista; às vezes é “deprê”, às vezes, delirante. Usa brinco e tem uma tatoo em homenagem a uma tribo da Polinésia; não suporta gente que fala demais, nem quem faz do silêncio uma ameaça. Dá um “pitaco” sobre Spielberg e considera que a sua vida é um filme triste com efeito especial. É eclético musicalmente falando: vai de Gusttavo Lima ao retrô do Legião. Tem carinho pelos mais velhos e desdém pelos que possuem preconceitos religiosos. Ele.

Ela e Ele são figuras fictícias do mundo urbano, talvez da metrópole contemporânea, todavia representam apenas uma ínfima parcela da juventude contemporânea, predicam apenas mínimas faces da complexidade do sujeito e do espaço atuais. Há, além “dele” e “dela”, outras infinidades de situações socioculturais e identitárias entre os diferentes grupos jovens; e há, em se tratando de outras camadas etárias e de vínculos e percursos sociais, diversos grupos incluindo migrantes, trabalhadores, mulheres trabalhadoras, gente do movimento social, idosos, burocratas, empreendedores etc.

O que se delineia ao mirar as trajetórias “dele” e “dela” é o que se tem feito referência ao analisar o sujeito contemporâneo: um sujeito fragmentado, imerso na dinâmica urbana, motivado por uma dança de signos com circularidade globalizada incessante; ente afeito a outro regime de afeto e desejo; a outro modo de perceber, de ver, sentir e amar; includente de um espaço organizado em rede comandado por componentes tecnocêntricos; testemunho de uma sociedade de riscos e de espaços de medo, fadado, quase sempre, a iminentes crises do sistema financeiro internacional. Componente do vasto sistema simbólico que erige, com frequência, uma subjetividade vulnerável, mas, contraditoriamente, permite acesso a um nível de informação inaugural na história do mundo. E assim de compor insurgências a partir de lastros novos.

Sob a influência de grandes mudanças e de uma pluralidade de concepções, o sujeito contemporâneo tem sido objeto de preocupação das pesquisas geográficas. Em alguns causos, o que se procede vem confirmar um princípio relativamente duradouro na história recente do pensamento geográfico: não há espaço sem sujeito; o sujeito é a centralidade do espaço. Toda ação permeia o espaço e dele se deriva (SANTOS, 1999).

As reflexões que virão ajustam-se à compreensão que não convém analisar o sujeito fora das transformações do mundo, nem reduzi-lo a um mero elemento econômico. Daí decorre o seguinte: as análises que propomos reconhecem os conflitos sociais que atravessam a pele – e a dobra, na mesma proporção que não retiram do sujeito a sua singularidade, a sua complexidade, a sua subjetividade. Especialmente, a sua capacidade de agir, propor.

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Enfim, é a capacidade de agir do sujeito, de desenvolver diferentes práticas e aceder-se ativamente no cotidiano que cria territórios existenciais em linhas de contato e de comunicação com os espaços hegemônicos, negando-os, negociando com eles, tensionando-os ou derivando deles diferentes possibilidades de produzir a vida.

Situando a questão, inventando rumos

Estudos e pesquisas de povos tradicionais, especialmente de povos indígenas e quilombolas; do mesmo modo que estudos e pesquisas que enfrentam problemáticas do trabalho e de trabalhadores, por exemplo, de cortadores de cana-de-açúcar; de trajetórias da juventude; de territorialização de movimentos sociais; de gêneros ou que expõem a interface entre espaço e etnia; os que miram o modo pelo qual a literatura revela a espacialidade do camponês e seu trato com a natureza – e outras – geralmente são compelidas a enfrentar diferentes questões teóricas que remetem à tradição geográfica.

Estas questões são recorrentemente repetidas em mesas de debate, tais são: como aglutinar a esfera do conflito de classes com o campo da luta contra os preconceitos e a favor dos direitos? Que abordagens, métodos e procedimentos filosóficos e geográficos deverão ser tomados para analisar o sujeito contemporâneo face a sua fragmentação? Como interseccionar existência, cotidianeidade, experiência, trajetórias com estrutura, totalidade econômica, densidade histórica?

Dentre todas as questões levantadas e certamente outro conjunto incomensurável, há outras de preocupação mais abrangentes: a geografia possui capacidade de interpretar componentes da vida humana, como a cultura e a subjetividade, tal como é a tradição de campos científicos como a antropologia, a psicologia, a sociologia? Como enriquecer a análise geográfica do sujeito no diálogo com esses campos?

Fora essas questões abrangentes, parece que o que se coloca é uma assertiva que subjaz todas as outras. Cabe ao geógrafo e à geografia ler, analisar, interpretar e compreender o sujeito pelo espaço e interpretar e ler o espaço pela via do sujeito (SILVEIRA, 2006).

Explicar o modo como sujeito com todas as suas ações projeta-se no mundo e o mundo age sobre o sujeito, é um princípio que demonstra o sentido dialético da relação entre sujeito-mundo, pela via da especialidade. Mais que uma explicação, o que está posto é o que se tem denominado geograficidade do sujeito. Ou seja, a experiência de crianças, mulheres, jovens, trabalhadores, idosos, na consecução da vida, das relações, dos encontros, dos conflitos, da produção da existência, gera uma relação amiúde com o espaço com tudo que lhe predica, constitui, instrui.

Há que se considerar ainda que não se trata de uma relação apenas material, presentificada em objetos e formas espaciais. Elementos como a história dos lugares, a memória, os valores, os sentidos, as normas, os hábitos e outros estão codificados no espaço, por isso, que Ratts (2007) diz que o espaço é sexuado quando faz referência que em determinados locais as mulheres não podem frequentar. Ou, conforme o mesmo autor, o espaço urbano é atravessado pelas etnias, quando, por exemplo, mostra que a segregação social tem cor.

Ao sintetizar a obra “VER A TERRA: seis ensaios de geografia”, de Jean-Marc Besse, Pereira (2006) assinala:

Já que não há Terra sem homens que a habitem e lhe dêem sentido de Terra, assim como não há homens sem a Terra, pois o humano se realiza na relação com a Terra, essa relação é que faz ser e ver a paisagem. Pensar junto o homem e a Terra implica numa dupla recusa: do homem enquanto ser "enraizado" num lugar e como sujeito abstrato e separado de toda condição. À geografia cabe, portanto, restituir à Terra o sentido de abertura e arco do possível. Assim, na raiz da paisagem encontra-se o movimento. (PEREIRA 2006 p. 146)

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Esta reflexão indica a pregnância do humano com a terra e induz à compreensão que só há vida a partir da pertinência de um mundo de relações. Por isso, em se tratando de uma categoria geográfica basilar, a paisagem, torna-se necessário compreendê-la em movimento, assim como a própria vida do sujeito.

Ao derivar esta compreensão ao raciocínio corrente, pode-se dizer que as diferentes e múltiplas práticas sociais dos sujeitos, transformadas, necessariamente, em práticas espaciais, na cidade, no campo, nas instituições, nas ruas, na casa etc, são atravessadas pelos componentes e pelas características que reinam no mundo. E, ao mesmo tempo, são singularizadas, especificadas pela estrutura, condição, possibilidade do espaço.

Compreende-se, por assim dizer, que as determinações espaciais atingem e motivam a existência. Mas é do logro da existência, agir, pensar, escolher, organizar-se, colocar a subjetividade para projetar, valorar, sentir, significar, conceber, perceber, Desta feita, as determinações concretas objetivas se entrançam com as dimensões existenciais e subjetivas. A vida, em toda a sua rica dimensão, enfronha o espaço, lhe outorga sentido, marca-o e é marcado por ele. Clareia este raciocínio a explicação de Berque (2000):

O humano aparece como um ser geográfico: um ser que grava (graphein) a sua existência na terra (Ge) sob a forma de geogramas que, em troca, fica gravado um certo sentido, pois ele não seria ele mesmo (humano) sem a mediância dessa relação ecumenal. (BERQUE, 2000, p. 7)

Ao ler as palavras de Berque e tomar como apoio a sua ideia que “o humano aparece como um ser geográfico” convém situar o plano de escalas de suas ações. Ou seja, a palavra “terra” em abstrato ou “mundo” não explicita o sentido histórico da mediância.

Pode-se dizer, por exemplo, que é do concerto histórico da espacialidade contemporânea o aumento da força do Estado, do dinheiro, das máquinas de guerra, das instituições como de um poder simbólico sobre o indivíduo. Contudo, o sujeito social conta com planos irredutíveis. Esses planos são potencialidades que podem servir ao reconhecimento do seu lugar no mundo e testemunhar a força singular para grafar. Recuperar a consideração do sujeito como ente de vibração parece ter um sentido político revelador no seguinte sentido: por meio de controles, alienações, técnicas de vigilância etc, as grandes máquinas geopolíticas intentam gerar táticas de aliciamento e subordinação dos indivíduos, mas o seu trato fundamental com a existência edifica territórios irredutíveis que lhes permitem enfrentar essas máquinas. Quase se pode sintetizar: a vida não é facilmente golpeada. Ela arruma um jeito de se enunciar.

Não paralisar a análise do sujeito em elementos genéricos, incluindo a sua subjetividade, a sua singularidade e não afastar esses elementos do plano geral do acontecimento do mundo pode facultar, pela via da prática geográfica de produzir o conhecimento, a contribuição no sentido de agir para o desenvolvimento de consciências que não se entregam às burocratizações da existência ou à sua mera gestão liberal.

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Para assegurar a força de ajuntamento, de insurgência, de criação, de rebelião, de pensar, repensar, imaginar do sujeito humano em seu trato diário com o espaço, parece ser necessário sair de um formalismo acadêmico que tende a empastelar qualquer tipo de discurso ou curvá-lo a um regime da mera representação dos discursos prontos que, geralmente, codificam jargões igualmente padronizados.

Desta forma, os sujeitos sociais, organizados coletivamente, podem, imersos nos espaços globalitários, criar meios de aprendizagens, de criação, de intervenção, aproveitando a profunda circulação de informações e de símbolos que, quase sempre, são controlados pelas máquinas hegemônicas. Pode, também, servir das enormes capacidades de encontros de culturas diferenciadas; de acúmulo de experiências por meio de contatos, intercâmbios e parcerias. Todavia, não há como fugir das contradições e da complexidade espacial, mas elas são, no logro do espaço contemporâneo, terreno fértil para o trabalho do geógrafo e para os saberes geográficos.

Cabe perguntar se a cultura geográfica predominante atualmente dá conta disso? Cabe perguntar quais os sentidos da geografia que se produz hegemonicamente? Ou como enxergar, no labor do pensar geográfico, os conflitos produzidos pelas instituições burocráticas vigilantes, suas fendas, suas possibilidades.

Em se tratando desse contexto, parece ser uma tarefa premente sair de duas vertentes amplamente disseminadas na produção geográfica brasileira: enfrentar o economicismo dogmático que tende a reduzir a leitura geográfica à dimensão generalizante e enfrentar o culturalismo que tende a eximir a rede de relações de poder, inclusive, em caráter geopolítico que estabelece novos sentidos para a natureza, assim como precariza o trabalho, apropria-se do território, cinde o sujeito.

A análise da situação atual da geografia brasileira, especialmente as condutas de algumas alas da geografia cultural, conforme Sáfadi (1999), pode nos conduzir ao reconhecimento do sujeito apenas na sua empiria etnográfica ou etnogeográfica, ou mesmo a sua restrição à dimensão de ente cultural. Esse modo de tratá-lo gera, segundo o autor, um reducionismo psicologizante.

Em suas ponderações a subjetividade não convém ser tratada apenas pela vivência empírica de um povo como o indígena ou remanescente de Kalunga em sua ligação com o território ou lugar, por exemplo. A questão central é: como criar uma leitura universal do sujeito sem perder as determinações de sujeito-de-ação?

Mas as perguntas podem ser outras: por que o sujeito ganha centralidade nos estudos atuais de geografia? Quais são os vieses teóricos e os sentidos desses vieses na propagação deste tipo de pesquisa no atual período?

No caso da Geografia brasileira e mundial, no mesmo cenário, aumentam-se os estudos baseados em modelagens moduladas por softwares, muitas vezes recuperando e recolocando em outras bases e sentidos o neopositivismo. Certamente, o avanço dos aparatos tecnológicos, o estatuto social que gera velocidade no uso do território, criando problemas ambientais, assim como a necessidade de apresentar respostas rápidas a um mundo rápido, a fragmentação dos saberes, do sujeito e da ideologia – e outros aspectos – que reinam na estrutura social do mundo contemporâneo, permitem e validam os procedimentos neopositivistas.

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Quanto ao timbre cultural e culturalista – que verte uma atenção ao sujeito, sua força possui um plano diferenciado e complexo também. O primeiro aspecto é que diante do mal-estar do sujeito, comandado por sistemas simbólicos vulneráveis, como o consumismo, o sexismo, o narcisismo de classe, o sujeito, se ver diante de um triunfo tecnocêntrico, todavia com problemas graves na subjetividade, transforma-se num centro especial da atenção científica.

Com a alma estilhaçada, com dificuldade de elaborar projetos, ideais, lançado num mundo volátil e célere, esgotado pelas “novas doenças da alma”, cabe tentar compreender, de diferentes maneiras, o sustentáculo dessa subjetividade construída no rol da vulnerabilidade simbólica. Poder-se-ia dizer: no fundo de si há o efeito do mundo, o seu novo ordenamento simbólico e social. A alma contorce-se em dor – e em gritos. Cabe compreender o processo ou enfronhar-se em linhas de fugas que o exime da história e das estruturas sociais.

Outro aspecto que justifica a adesão aos estudos culturais e de subjetividade refere-se à criação de novos paradigmas, como o indiciário, o da complexidade, o quântico, o da diferença e outros, que fazem uma crítica ao modelo mecanicista, reducionista e determinista dos denominados “paradigmas modernos”. Abrem-se possibilidades para o real seja visto como produto, também, da significação, do campo relacional, das perspectivas, da sensibilidade, da intuição.

Ao proceder assim, descobre-se a potência de saberes de povos camponeses, de mulheres, crianças, pescadores, povos indígenas etc. Em várias situações, descobre-se a potência insurgente, criadora e relacional da subjetividade. Enxerga-se a dimensão política do pensamento, sua proeza e sua força para inclinar as ações, dar-lhes rumo, operar as significações. E também para compreender que a emoção pode ser objeto de alienação, de controle, de fuga. Ou de reforço, resistência, modo de entranhamento nas relações e nos encontros por meio de motivações, paixões, capacidade de enfrentar.

Há, por fim, um aspecto funcional. Ora, a reorganização do mundo do trabalho, a mudança dos paradigmas fabris, a força do terciário, o incremento produtivo pela ação da tecnologia – e outros aspectos – podem transformar os objetos culturais, as festas, o futebol, os saberes, a memória, as peças de artesanato e outros artefatos e símbolos como uma mercadoria visível ou invisível que tem força econômica no interior das sociedades globalitárias.

Essa mercantilização inclui a estética urbana, os parques, a impregnação da imagem, da performance, do marketing, da publicidade, da propaganda como espécies de estatuto dos novos negócios, assim como a espetacularização, a criação de ídolos midiáticos, operando dentro do curso da ideologia do sujeito narcísico que, famigerado pela própria imagem, sente-se só; na solidão escapa da dor e, em escapando, reorganiza a batalha em nome de uma identificação poderosa no grupo que atua.

Neste item, máquinas poderosas como a mídia e sua relação com as corporações capitalistas, universidades e outras instituições entram no comércio dos símbolos, fazem negócios com o medo, trabalham o poder a partir das emoções, das marcas, de slogans. Modos de ver e sentir são estratos trabalhados para endereçar o curso real da mercadoria e fundar o sentido da acumulação, do lucro, da expropriação do trabalho.

Consoante ao modo como a Geografia e outros campos do saber trabalha o sujeito, cultura e existência, conceitos como territórios existenciais, identidades territoriais, territorialidades, negócios territoriais, sujeitos desviantes ou culturas desviantes – e outros – põem em questão os ganhos e as perdas, assim como asseguram a patente: os trabalhos geográficos se aproximam dos trabalhos de antropólogos e psicólogos descobrindo especialmente “o invisível que age”.

No mesmo pendor, a geografia se abre incorporando novos campos e conceitos, recuperando, inclusive, métodos e procedimentos que se julgavam ultrapassados, como o neopositivismo. Esta recuperação possui adendos do tempo, por exemplo, a inclusão de novos aparatos tecnológicos, da evolução dos saberes matemáticos, físicos, químicos e outros. E o mais evidente: sem a vigilância epistemológica de outros períodos, todavia sob o perigo do utilitarismo próprio de um tempo franqueado pelo dilúvio da imagem e pelo esmaecimento dos projetos de mundo.

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Todavia, um ganho de cunho histórico se coloca: o sujeito assume a centralidade do espaço e se coloca como um tema complexo. E mais: novos sentidos políticos emergem, como a luta contra o preconceito, a necessidade da organização, o dever de enfrentar a doença do mundo, a importância dos encontros, das relações, a dimensão do afeto e da emoção, tudo isso ligado ao mundo objetivo, às tramas sociais totalizantes, sem, contudo, perder a força da consciência, das ações que polarizam-se em torno de causas cotidianas, incluindo a criação e a imaginação.

Uma nova sensibilidade geográfica: o curso do diálogo

Fluxos psicoquímicos modulados por hábitos, tradições e retradições, ilusões, fés, ódios, desejos, crenças etc, são, frequentemente, modos de caracterização do atual regime da subjetividade contemporânea, observando o aspecto funcional. Ora, o que se chamam de a integração e a conexão planetária produzem efeitos de contaminação que, embora não suprimem a força dos grandes sistemas, permitem ações nas brechas, nos poros e nas pausas destes sistemas. Tal como indicou Santos (1999) a efetiva circulação de símbolos ao mesmo tempo é excludente e includente, enfim o mundo pode ser lido, enxergado em escalas de interconexões e abrangências.

Desta feita, a incorporação da inteligência, da subjetividade, do inconsciente e da criação marca o atual estágio do sistema capitalista e permite outro tipo de produção de conhecimento, exige outra atenção com a realidade. Assim como a publicização íntima da vida aos intentos do lucro e da mercantilização ganha contornos de uma devassa inaugural. No processo contraditório, o mesmo processo que cria padrões, serializações, estantardizações, faz crescer singularidades, a organização de pequenos grupos, a multiplicação da criatividade.

Ou, ao ler Pelbart (2001), pode-se entender que o poder não tem mais uma geografia apenas vertical baseada nas grandes máquinas. O controle invade a profundidade da consciência. E esta, por certo, reage, cria novos rumos, novos endereços, novos contatos. Estas e outras ideias estendem para mostrar que há um espaço veloz, cheio de nuanças, com provocações e interrogações para apregoar que se vive, hoje, a gestação coletiva da insubmissão em forma de contágio e rede. Isso desafia a análise geográfica, exige-a que tenha outro modo de tratar o real e o sujeito, pois em muitos casos a resistência vem acompanhada de espetacularização, pequenos ou maiores delírios, modas.

Reconhecer que o desejo, o afeto, a intuição e outros campos da subjetividade fazem política e tem o poder de transformar, não dispensa a leitura ideológica do mundo, nem justifica o abandono de procedimentos de leituras sócio-históricas da realidade. Todavia, evidencia a necessidade de despertar-se para a construção de novas sensibilidades geográficas.

Em se tratando da operação geográfica brasileira, o profundo diálogo com outros campos do saber, sem perder as conquistas de sua tradição, especialmente o reconhecimento que há uma dimensão espacial na vida ou territorial nas relações, pode-se, de fato, defender que já está em cena, como quer Amorim Filho (1985), essa nova sensibilidade geográfica.

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Mais do que isso, temos defendido que à geografia e aos geógrafos, aos parceiros de trabalho oriundos de outros campos de saber, cabem uma atenção: o mundo contemporâneo cobra um sujeito que age, que intercambia, que se organiza e que, portanto, intervém e dialoga. Uma geografia interventora não significa subordinar-se ao mercado, nem o olvidar, pois é constituída e reconstituída nos conflitos de uma sociedade mercantil.

Os trabalhos de Geografia e literatura, geografia dos sabores, com povos tradicionais, com ressignificação da natureza, com música, poesia, pintura, com imagens e outros tantos, que palmilham conceitos de práticas espaciais, ecologia da ação, cotidianeidade, etnicidade, segregação, espacialidades enfronham-se como a rica possibilidade de a geografia perceber a dimensão espacial da vida, ou interpretar o sentido vital dos territórios.

Todavia, não se deve eximir-se da ideia que há um mundo em conflito, que a violência geopolítica, urbana, social adquire forma de um testemunho do modelo econômico mundial; não se deve olvidar que há um sistema financeirizado em rotação simultânea que gera o desemprego estrutural, diminui os intervalos das crises, abala a segurança das nações.

Em termo da pesquisa científica, é próprio desse mundo a tentativa de aliciar os saberes seculares de diferentes povos, assim como de controlar os componentes naturais ao mesmo tempo que assegurar áreas de influência para o comércio internacional. Isso tudo pode nos conduzir a desenvolver uma sensibilidade geográfica atenta e criativa, interventora e afável, pensando os modos que motivam a pensar o território como uma realidade em disputa; e os lugares constituídos à mercê do estremecimento desse mundo. E das ações dos sujeitos, dos diversos sujeitos, dos múltiplos sujeitos.

Considerações finais

Muitos predicativos, geralmente negativos, intentam nomear o sujeito contemporâneo como “sujeito sem rumo”, fragmentado, dependente de ideiais, consumista, deliquente, narcísico, individualista. Em outros casos, ao invés da predicação, o que vê é um questionamento no modo como as análises se delineiam colocando em cena a relação, a intersecção e a conexão entre classe social e etnia, gênero e raça; identidade e classe social.

Teorias amplas tecem explicações variadas: o sujeito contemporâneo, filho da razão instrumental que se constitui mediante o triunfo tecnocêntrico, tem a sua subjetividade dilacerada. Imerso num mundo instável e agente de uma sociedade de risco, numa encruzilhada entre a vida férrea e uma demanda de símbolos fervorosa, transita entre uma vertente volátil e outra nostálgica. Resulta disso, a sua inclusão em aportes metafísicos e escapatórios.

Não se exilar da história e conceber que a sua ação implica o espaço, validar os avanços de paradigmas e teorias que, a partir do século XIX, foram se enlaçando com outras do passado, tal como a descoberta do inconsciente pela psicanálise, os avanços da física relativista e quântica, a força do paradigma da diferença, interpelam o debate geográfico sobre grupos sociais, identidades, classes sociais, gêneros e etnias. Garante também o sentido de intervenção de abordagens que ao pesquisar, aprende; ao aprender, contribui com as organizações do Movimento Social, das organizações, de programas, mobilizações etc.

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Mais que isso, abre-se uma oportunidade para evidenciar o sujeito como essência do espaço, agente de sua implicação objetiva e simbólica, componente da natureza que tem a possibilidade de adentrar o mundo com a consciência, enxergar limites, coletivizar o ver e a ação, organizar-se, escolher, dirimir. Criar.

Ao objetivar aglutinar a interpretação do sujeito com a do espaço e da existência, cabe-nos enfrentar as modalidades de poder que distende a capacidade criativa e insurgente da vida. Quase sempre, pelo mecanismo do controle, o que se enxerga é um processo burocratizante das relações que capturam os afetos, a possibilidade de agir e de reagir, de organizar, adoecendo os sujeitos e os entristecendo.

A nosso ver cumpre-nos a tarefa de aglutinar a análise dos conflitos sociais com as práticas cotidianas dos sujeitos organizados em classes, diferenciados em raça-etnia, por gênero, identidade etc. É tarefa premente intervir com desejo de integridade ética, com brandura e senso de abertura para ouvir e receber o Outro. E, então, atuar no sentido de construir as novas sensibilidades geográficas propagadas como possibilidade desse tempo.


Referências

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PELBART, P. Pál. Vida capital. São Paulo: Iluminuras, 2001.

PEREIRA, Edir Augusto Dias. Resenha. Ver a terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. GEOgrafia, Ano VIII, n. 15, 2006, p. 143 - 149.

RATTS. Alecsandro. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial/ Instituto Kuanza, 2007.

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SILVEIRA, Maria Laura. O espaço geográfico: da perspectiva geométrica à perspectiva existencial. GEOUSP, espaço e tempo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 81-91.