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Aquilombar-se: o processo de constituição do território quilombola de Manzo Ngunzo Kaiango, Belo Horizonte, Minas Gerais.

Ana Maria Martins Queiroz

Introdução

Neste texto, pretendo realizar uma discussão acerca das concepções de território e de quilombo, relacionando-os de forma a compreender os processos envolvidos na constituição da comunidade quilombola de Manzo Ngunzo Kaiango, localizada na cidade de Belo Horizonte (MG). A constituição desse território se dá a partir dos anos de 1960, quando a matriarca da comunidade adquire um terreno na região leste da cidade, no qual ela instala um terreiro de umbanda, que, posteriormente, se torna uma casa de candomblé. As manifestações culturais e religiosas presentes em Manzo são aspectos centrais para a formação desse quilombo, uma vez que essas podem ser consideradas como elementos de resistência da comunidade frente a processos que buscam a homogeneização das identidades e dos territórios, como são as práticas de planejamento urbano, por exemplo.

O caráter de resistência presente em Manzo se manifesta através do candomblé, das ações do projeto Kizomba e de sua mobilização política. Essas práticas conjugadas permitem à comunidade demarcar suas diferenças e estabelecer contradiscursos a uma sociedade marcada pela discriminação racial e pela intolerância religiosa. Aponto que as manifestações — o candomblé, o projeto e a mobilização — podem ser consideradas como os pilares da constituição desse território quilombola, já que, por elas, é possível que sejam estabelecidas fronteiras forjadas pela própria comunidade e, ainda, outra perspectiva para as relações de poder em que estes sujeitos se encontram imersos.

O quilombo de Manzo pode ser entendido como um território que se constitui a partir de dinâmicas culturais, políticas e identitárias de sujeitos, que têm como foco reverter uma condição de abjeção a que são submetidos em seu cotidiano por meio do racismo e dos discursos que buscam deslegitimar sua religiosidade. Trata-se de um processo que se refaz continuamente de acordo com as demandas da comunidade. O tornar-se quilombola, desse modo, configura-se em um mecanismo de garantia ao território e a suas manifestações culturais e religiosas.

A partir do que foi exposto, apresentarei as novas acepções que o termo quilombo vem adquirindo, não apenas para as ciências, como também para as comunidades negras. A emergência dos territórios quilombolas ocorre em áreas rurais e urbanas, entretanto, os processos que levam ao ressurgimento desta coletividade se distinguem nesses espaços. Distinções que precisam ser consideradas para melhor compreensão da emergência ou ressurgimento de grupos como esse na sociedade brasileira. Entendo que essas comunidades ao se reconhecerem como quilombolas reivindicam para si identidades que lhes possibilitam construir territórios de resistência, pois, a constituição dos quilombos marca um processo de contraposição a uma ordem estabelecida e a uma ideologia que homogeneíza os territórios e as identidades.

Sobre territórios

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Iniciar uma discussão sobre um conceito tão caro à geografia e com múltiplas possibilidades de apreensão constitui-se em um processo que exige de nós muitos cuidados para que não direcionemos nossas análises por vieses empobrecedores e essencialistas. Fato que vivenciamos quando nos deparamos com a necessidade de discutir território, conceito tão presente na produção do conhecimento geográfico. Refletir sobre o conceito de território e sua constituição implicam alguns riscos, visto que ele possui várias linhas de interpretação, o que também evidencia a riqueza da discussão sobre o termo. É possível encará-lo apenas como um suporte material para as ações dos sujeitos ou, então, compreendê-lo somente como um reflexo de um conjunto de símbolos que integram determinado grupo social. Posso, ainda, considerá-lo como exclusivamente constituído pelas ações do Estado-nação, negligenciando a pluralidade de trajetórias dos diversos sujeitos. O que proponho, neste texto, é buscar uma análise do território que nos permita pensá-lo a partir de perspectivas integradas e não dissociadas.

É importante ressaltar que o desenvolvimento de um conceito ― ou a sua reconfiguração ― ocorre inserido em um contexto histórico e geográfico, no qual são construídas reflexões a partir das ações dos sujeitos. Assim, se modifico o momento, posso mudar também a maneira de apreensão de um mesmo processo ou posso passar a considerar a atuação de sujeitos até então invisibilizados. Os conceitos não são estáticos, eles se transformam e refletem o movimento do mundo. Rogério Haesbaert (2009), ao discutir sobre os conceitos de espaço e território, ressalta que o conceito pode ser encarado como um meio pelo qual nos é possível tratar de questões e problemas que surgem em cada contexto histórico e geográfico, mas também deve ser entendido como a própria realidade.

O conceito só é claramente distinguível do ‘real-empírico’ numa visão tradicional. Mais que uma ‘re-apresentação’ reconhecedora/ diferenciadora do ‘real’, o conceito é um instrumento, uma ‘medi-ação’ (no sentido concomitante de ‘meio-ação’) a que recorremos para sua compreensão, mas que de forma alguma, se restringe a este caráter ‘mediador’ ou de ‘meio’. Na verdade, não se trata de separar nitidamente ‘conceito’ e ‘realidade’, mas de fazer uma leitura do conceito como, ele próprio, ao mesmo tempo, também, ‘realidade’. (HAESBAERT, 2009, p. 97, grifos do autor).

O conceito se refaz diante de novas questões, refletindo o momento e as dinâmicas socioespaciais dos distintos grupos sociais. Portanto, mais do que discutir o que é o território, mostra-se relevante nas discussões sobre esse conceito entender o que é possível fazer com ele e com quais questões ele nos permitiria envolvimento (HAESBAERT, 2009).

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Esse caráter de movimento e de transformação dos conceitos também se faz presente no desenvolvimento conceitual de território, que, fundamentado nas ações e nas relações de poder dos Estados nacionais, contribuiu para a constituição da ideia de nação. Contemporaneamente o conceito tem suas acepções remodeladas e outras possibilidades se configuram para a sua compreensão. E, diante dessa reconfiguração, diferentes apreensões se estabeleceram para o termo. Compreendo que ao se estabelecer uma multiplicidade de entendimentos acerca do território, posso muitas vezes optar por uma delas apenas e considerá-la como correta e classificar as demais como imprecisas e insuficientes. Esta não é a intenção do presente texto, apontar uma direção e defini-la exclusivamente como a certa, mas sim, tentar construir uma reflexão sobre o território que se aproxime da pluralidade e do movimento do mundo.

A inserção do conceito de território no conhecimento geográfico se dá a partir de sua utilização pelas ciências naturais para os estudos relacionados a grupos animais. Mas o sentido dado ao termo no âmbito das ciências da natureza estava vinculado a terra/terreno, que constituía uma área de domínio de determinado animal. Essa ideia de controle e domínio será transposta para as ciências humanas, mais precisamente para a geografia política que foi o campo do conhecimento que mais se atentou para as questões relacionadas ao território e ao seu desenvolvimento conceitual. Um dos primeiros trabalhos, ainda no século XIX, envolvendo esse conceito refere-se a Friedrich Ratzel e sua obra Antropogeografia, que traz uma ideia de território vinculado ao Estado, perspectiva que ainda perdura em algumas análises sobre o conceito, de acordo com Mônica Sampaio Machado (1997).

Compreendo que a relação território, Estado e nação constitui a base para o desenvolvimento do termo não somente entre geógrafos/as, mas também em outros campos do conhecimento, como a ciência política. A partir dessa relação e de seus estudos, o poder integra as discussões acerca do território e os processos territoriais. Essa será, então, a maneira tradicional de se pensar o conceito, considerando o território do Estado-nação, que se constitui a partir do estabelecimento de fronteiras fixas e rígidas, e pelo poder que esse pode exercer, tanto com seus membros quanto na relação com outros Estados. Trata-se de um território internamente homogêneo, que possibilita aos indivíduos o reconhecimento com uma identidade construída para unificá-los, que é a identidade nacional. No entanto, devido ao caráter mutável dos conceitos e também do movimento do mundo, outras perspectivas emergiram para discutir o termo e construíram novas possibilidades para o conhecimento geográfico. E, desse modo, outras dimensões, além da política (estatal), foram se estabelecendo nos estudos territoriais, constituindo um mosaico conceitual, que reflete a heterogeneidade e a multiplicidade que um conceito possui (HAESBAERT, 2009).

É através das relações de poder que o território se constitui e essas se estabelecem para além do âmbito do Estado, logo é possível pensá-las a partir das práticas cotidianas dos diversos grupos constituintes da sociedade. Compreendo que o poder é relacional e se faz presente nas ações dos sujeitos. Essa conotação atribuída ao poder, inspirada na teoria foucaultiana, contribuiu para uma transformação no desenvolvimento do conceito de território, apreendendo-o não como uma produção somente do Estado, mas constituído também através das dinâmicas socioespaciais de grupos sociais ou até mesmo do indivíduo.

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Claude Raffestin (1993) nos apresenta importantes discussões referentes à relação entre espaço e poder, contribuindo para a ampliação do conceito de território. Para o autor, a partir das proposições estabelecidas por Michel Foucault, é possível construir uma concepção de poder que seja capaz de afastar a ideia de território de uma perspectiva única e a aproximar de uma abordagem múltipla. É nesse sentido que o autor apresenta uma série de questões associadas ao poder, como população, religião, recursos naturais, raça e etnia. Através dessas relações, Raffestin desenvolve o conceito de território como um espaço apropriado por um grupo ou um indivíduo por meio das relações de poder que se estabelecem no cotidiano. O autor discute, ainda, as distinções entre espaço e território. Ressalta que:

É essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator ‘territorializa’ o espaço. (RAFFESTIN, 1993, p. 143, grifo do autor).

Ao considerar que o espaço pode ser apropriado de maneira concreta ou abstrata, Raffestin (1993) está conjugando os aspectos materiais e imateriais, considerando que um território pode se constituir por ambas as formas. No entanto, compreendo que o autor ao colocar a distinção entre espaço e território constrói uma abordagem que cria uma relação dicotômica entre os conceitos e torna o espaço uma noção restrita que se configura como um suporte para a formação do território. Referente a essa proposição realizada por Raffestin, Marcos Aurélio Saquet (2007) considera que há um entendimento do espaço como um palco, no qual os atores sociais desenvolvem seus papéis para que ele se transforme em território. Haesbaert (2009) também tece considerações a partir das proposições de Raffestin e explicita que território e espaço são distintos, mas não dissociáveis, pois um não existe sem o outro.

Apesar de conceber o espaço como discutido por Haesbaert, “matéria prima preexistente” a ser apropriada, Raffestin nos apresenta a possibilidade de ampliação das discussões acerca do território. O autor ao considerar, a partir das proposições de Foucault, que “[...] em toda relação circula o poder que não é nem possuído nem adquirido, mas simplesmente exercido [...].” (RAFFESTIN, 1993, p. 07), desvincula o território da ideia clássica difundida pela geografia política, que ele concebe como pertencente ao Estado. Inicia, portanto, uma proposição de que o poder está em qualquer relação e o território pode ser concebido para além daquela concepção definida pelas dinâmicas estatais. Compreendo que há uma sinalização, a partir das discussões do autor, de que se faz necessário que a geografia se atente para os outros contextos em que um território pode se constituir. O conceito se reconfigura e nos fornece novas abordagens para os processos socioespaciais, uma vez que “[...] mudam os significados do território conforme se altera a compreensão das relações de poder[...].” (SAQUET, 2007, p. 33).

Assim, compreendo ser possível pensar o território a partir das questões étnico-raciais que podem ser compreendidas como um entrelaçamento entre corpo e relações de poder. Diante de novas formas de organização territorial, como é o caso dos quilombos e dos seus elementos constituintes, torna-se possível elaborar uma reflexão que conjugue o corpo e as relações de poder, contribuindo para que pensemos o território através de sua pluralidade e de seu movimento.

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O território pode ser apreendido como a extensão de nossos corpos e ambos podem se confundir ou até mesmo se fundir, constituindo um todo indissociável. De acordo com Cássio Hissa (2009), o corpo é parte do território e, ao mesmo tempo, constitui o seu elemento estruturador, não sendo possível a formação territorial sem o corpo. Os corpos refletem a fluidez e a transitoriedade do mundo, na medida em que nossa corporeidade é constituída a partir de nossas vivências e experiências espaciais e temporais. Assim, os corpos negros estabelecem territórios que refletem suas condições sociais, políticas e culturais e conforme negras/os requalificam suas corporeidades, outras perspectivas vão se configurando para esses povos. Seus corpos tornam-se, portanto, mais um meio pelo qual esse grupo étnico-racial pode estabelecer um contrapoder e constituir territórios plurais e reveladores de dinâmicas e processos socioespaciais específicos. Ao estabelecerem outras significações para suas identidades, os povos negros também instituem outros sentidos para seus territórios e nesse processo. Conforme Alex Ratts (2007):

A indagação de quem sou eu? de um indivíduo negro, em especial, quilombola, tem sido estudada nos termos da identidade étnica, aliada à formação de um território. No entanto, o processo de constituição de coletividades negras enquanto qualificadoras de um espaço, não se extinguiu em 1888 e não está restrito a territórios permanentes. O corpo negro plural constrói e qualifica outros espaços negros, de várias durações e extensões, nos quais seus integrantes se reconhecem (RATTS, 2007, p.59).

O corpo negro, já no período escravista, buscava a requalificação dos espaços, de forma a constituir territórios em que suas identidades pudessem ser reconstruídas e valorizadas. O território quilombola configurou-se em um importante mecanismo para que não apenas outros espaços fossem requalificados pelas/os negras/os como também os próprios corpos desses sujeitos pudessem ser ressignificados em meio a esse processo de resistência. Porém, com a abolição da escravatura, essa busca não se extinguiu, pois, esses corpos continuaram subjugados e a necessidade de manter a qualificação dos espaços a partir de suas corporeidades e territórios múltiplos foi sendo constituída a partir das dinâmicas socioespaciais de povos negros. Territórios que também se tornaram subjugados e estigmatizados diante do olhar do branco, como é o caso das favelas.

Ratts (2007), ao analisar o pensamento da historiadora e militante negra Beatriz Nascimento, assinala que a relação entre corpo, espaço e identidade pode ser reconstruída pelo negro. E com base na reconstrução dessa relação, entendo que seja possível às/aos negras/os forjarem outra humanidade, capaz de revelar as contradições e os conflitos presentes nas sociedades. Assim, a ressignificação do ser negro passa pela reconstituição de seus territórios, dos sentidos dados aos seus corpos e a suas identidades. Trata-se de um processo que vem se consolidando desde o período escravista e que tem se restabelecido diante das transformações ocorridas na sociedade brasileira. Os corpos, os territórios e as identidades negras se refazem e buscam o estabelecimento de novas relações de poder. A busca de tal relação nos permite a reconfiguração do desenvolvimento conceitual do território, ampliando a capacidade analítica do termo e, consequentemente, da geografia. Outras grafias e cartografias são, desse modo, colocadas como possibilidades de análise para o conhecimento geográfico. Considero que, entre essas novas grafias, encontram-se os quilombos que se constituem em territórios nos quais há a busca pela ressignificação da identidade negra e quilombola.

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Quilombo: ressignificação e resistência negra

A questão quilombola está muito presente nas discussões acerca das questões étnico-raciais brasileiras, entretanto, esse não é um tema muito presente na geografia. Assim, como conjugar a grande relevância e a incidência desse debate presente não apenas na academia, mas também na comunidade negra e a negligência da geografia para com essa temática? A resposta que encontrei para tal indagação se apresenta através de uma reflexão que coloca o quilombo como um território, no qual os povos negros vislumbraram e, ainda, vislumbram a possibilidade de luta política por melhores condições de vida e pela reversão de uma situação histórica de subjugação. Compreendo que o território quilombola pode ser encarado pelos povos negros como esperança para que sua história possa ser reconstruída.

A partir de apontamentos e questões levantadas no filme Ori, dirigido pela socióloga e cineasta Raquel Gerber (1989) e texto e narração de Beatriz Nascimento, estabeleci os pilares para pensar os processos envolvidos na constituição do território quilombola. O título do filme, Ori, é uma palavra de origem iorubá que significa cabeça e é utilizada por Nascimento como uma possibilidade para se pensar os processos de mudança para um reconhecimento pelo negro de seu próprio corpo e de sua história. Através do termo Ori, é possível pensar sobre o nascer de um novo indivíduo capaz de se sensibilizar com suas identidades e estabelecer outras relações com seu corpo, pois, “Ori, em sua metáfora, pode ser o repensar da identidade pessoal e coletiva, da ideia de negro e de território negro, ou seja, o espaço apropriado pelo corpo negro numa relação de poder, abrindo a interpretação para o próprio movimento negro.” (RATTS, 2007, p. 63).

Ori é um vocábulo presente nas manifestações do candomblé, religião que considera a cabeça como meio pelo qual o indivíduo pode acessar o mundo espiritual. O processo de iniciação no candomblé se dá a partir da feitura da cabeça, momento no qual o indivíduo reinicia uma nova vida. Pelo Ori, tem-se a possibilidade de construção de um novo significado para o mundo e para nossas ações. Meu entendimento, a partir das colocações realizadas por Nascimento (ORI, 2008[1989]), é que o quilombo pode ser apreendido relacionando-o com a ideia de Ori. O tornar-se quilombo é um processo pelo qual comunidades negras buscam a requalificação de seus territórios e de suas identidades por meio da descoberta de um novo significado para o ser quilombola e para a negritude. O aquilombar-se é a possibilidade de se refazer.

As questões envolvendo quilombolas apresentam-se como uma possibilidade para se discutir os processos de contraposição do negro a sistemas opressores e dominantes. Segundo Ratts (2001), a partir da década de 1930, alguns estudos passaram a ser elaborados, busca-se entender o quilombo tornando-o um tema de interesse para pesquisadores/as. Todavia, esses estudos se concentraram em análises sobre o quilombo de Palmares, são, dessa maneira, trabalhos de referência ao passado escravista. Muitos foram os estudos desenvolvidos acerca dos quilombos, procurando compreendê-los, essencialmente, como um movimento de resposta ao sistema escravista.

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Nas décadas de 1970 e 1980, a questão quilombola aparece reconfigurada pelo Movimento Negro Unificado (MNU), de forma a construir outras possibilidades para os quilombos, culminando na inserção da questão quilombola na pauta de discussão da Constituição Federal (ARRUTI, 2006; LEITE, 2008; RATTS, 2001; ANJOS, 2007). As discussões em torno das comunidades quilombolas originam-se dentro de um contexto mais amplo de lutas políticas presente nos anos de 1980, em decorrência da elaboração da Constituição da República Federativa do Brasil (1988) e da abertura política por que passava o país depois de mais de vinte anos de ditadura militar. É sob esse contexto que surgem as discussões a respeito das comunidades remanescentes de quilombo, que foram incluídas no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988. No artigo 68 do ADCT, fica estabelecido que, aos remanescentes de quilombos que se encontrem ocupando suas terras, seria garantida a propriedade das mesmas, é o Estado o responsável por emitir-lhes o título, conforme Rafael Anjos (2007). A partir desse artigo, é iniciada uma série de processos em busca do reconhecimento de comunidades afrodescendentes enquanto remanescentes de quilombo. E muitos estudos sobre as comunidades quilombolas foram desenvolvidos com o objetivo de compreender esse novo sujeito político, que surge através da Constituição Federal, de acordo com José Maurício Arruti (2006).

Arruti (2006) destaca que o artigo 68 do ADCT estabeleceu um novo sujeito político e uma nova categoria política e sociológica. Através do artigo, comunidades negras, rurais e urbanas, encontraram a possibilidade de sua manutenção enquanto coletividades étnico-raciais diferenciadas. Compreendo que as comunidades remanescentes de quilombo se constituem a partir de demandas de negras/os e o artigo 68 da ADCT configura-se no dispositivo encontrado para acessar determinados direitos e políticas. No entanto, muitas são as imprecisões contidas no artigo, que têm, desde a sua formulação nos anos 1980, causado dificuldades e impasses ao processo de reconhecimento e titulação dos territórios quilombolas. As indefinições presentes no artigo resultam de uma imagem do quilombo congelada, e, ainda, vinculada ao passado. Arruti (2006) observa que:

Ao tentarmos dar conteúdo sociológico a essa suposta ‘intenção’ no caso do ‘artigo 68’, encontramos pressupostos obscuros e confusos, um conhecimento muito limitado da realidade que nele se faria representar e uma discussão que, em momento algum, apontou para o futuro, mas sempre para o passado. (ARRUTI, 2006, p. 67, grifos do autor).

É a partir do artigo 68 que serão desenvolvidos inúmeros estudos tentando desvendar o que seriam as comunidades remanescentes de quilombos indicadas pelo texto da Constituição Federal. Os trabalhos que se desenvolvem sobre os quilombos procuram, fundamentalmente, encontrar uma definição para o termo que se aproxime da situação e das demandas das comunidades negras contemporâneas. Há uma busca pela ressemantização do conceito de quilombo para que seja possível compreender o processo de se tornar quilombola e a demanda pelo reconhecimento enquanto tal.

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Para Arruti (2006), o termo remanescente, as terras de uso comum e a etnicidade seriam os paradigmas que marcam o processo de ressemantização da ideia de quilombo. O autor destaca que o termo remanescente, primeiro paradigma, refere-se à temporalidade, uma vez que se trata da denominação de um processo que se manifesta no presente, mas que, ao mesmo tempo, é estabelecido a partir do passado, uma referência às reminiscências ou aos vestígios daquilo que um dia foi o quilombo. A presença do remanescente na legislação, de acordo com Arruti, revela a dificuldade em se pensar uma situação passada, que se manifesta no presente, através do contexto atual e não presa ao passado. A utilização do termo remanescente no artigo 68 configura-se na possibilidade de que ainda sobrevivam, de forma atualizada, as organizações e as práticas socioespaciais dos antigos quilombos.

O segundo paradigma colocado por Arruti (2006) refere-se à questão das terras de uso comum. As discussões em torno das terras de uso comum, segundo o autor, fundamentam-se essencialmente pelos trabalhos realizados por Alfredo Almeida na comunidade de Frechal no Maranhão. A situação dessa comunidade fornece elementos para que a questão das terras de uso comum fosse inserida na redefinição do quilombo. Uma situação em que a coletividade se daria não apenas em relação às práticas identitárias e à história, mas também em relação à propriedade e ao uso da terra. Considerar as terras dos quilombos como de uso comum permitiu que se criasse uma diferenciação em relação a outras comunidades, o que poderia contribuir para o processo de reconhecimento pelo Estado. Mas para Arruti (2006), a utilização do caso de Frechal para a elaboração da redefinição do quilombo poderia ser perigosa, uma vez que se estabelece um exemplo como norma. O autor ressalta, ainda, que as terras de uso comum aparecem como um substituto para a questão da fuga e do isolamento, que caracterizavam o antigo quilombo.

O terceiro paradigma levantado por Arruti (2006) diz respeito à etnicidade, que emerge da necessidade de se pensar sobre as identidades e uma suposta história comum dos quilombolas. Dessa maneira, a noção de grupo étnico, baseada nas discussões de Fredrick Barth, contribuiria para se compreender os processos de constituição das comunidades de quilombos contemporâneas. Segundo o autor, entender o quilombo com um grupo étnico é entendê-lo a partir de subjetividades e oposições, uma vez que ele não estaria preestabelecido, mas se constituiria através de suas experiências espaço-temporais. O quilombo se estabeleceria a partir das contradições presentes em seu entorno e da construção de uma identidade, que se poderia chamar de quilombola. Assim,

O conceito de grupo étnico surge, então, associado à ideia de uma afirmação de uma identidade (quilombola) que rapidamente desliza semanticamente para a adoção da noção de autoatribuição [sic], seguindo o exemplo do tratamento dado à identidade indígena. Essa leitura pragmática da identidade étnica disseminou-se rapidamente, passando mesmo a constar nas listas de itens ou critérios de identificação das comunidades remanescentes de quilombos. (ARRUTI, 2006, p. 93, grifos do autor).

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Avalio que, de certa maneira, são esses paradigmas presentes no processo de ressemantização da ideia de quilombo que orientam todo o processo de reconhecimento das comunidades quilombolas. A relação com o passado buscada através do termo remanescente, o caráter de coletividade encontrado nas terras de uso comum e o aspecto identitário e cultural presente na ideia de etnicidade se tornaram os elementos centrais para se reconhecer os territórios quilombolas contemporâneos. Aponto, contudo, que a compreensão desses quilombos não deve estar restrita a esses aspectos, pois, estabeleceríamos uma ressemantização mais preocupada em classificar e enquadrar determinados grupos do que em refletir acerca dos processos de mobilização política envolvidos no processo de tornar-se quilombola.

Com sua origem no âmbito jurídico, a questão quilombola se ampliou e se tornou de grande complexidade, não constituindo uma situação única em que possamos estabelecer um modelo e, a partir dele, pensar os quilombos de uma forma geral. Nesse sentido, Ratts (2001) aponta que os movimentos em que se encontram os quilombos são de diversas ordens e expõem as variadas trajetórias e narrativas socioespaciais que podemos encontrar dentro de um mesmo grupo étnico-racial. As mobilizações e reivindicações que têm se estabelecido a partir da elaboração do artigo 68 revelam a emergência de um novo contexto histórico e geográfico, no qual

Os quilombos — que mal aparecem em nossos livros escolares — deixaram de ser considerados apenas como um fenômeno do passado: estão em toda parte e tem direito ao futuro, onde é necessária a difícil combinação entre desenvolvimento e preservação do lugar. Não faz sentido enquadrá-los outra vez num tempo e num espaço únicos. (RATTS, 2001, p.322).

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Ilka Boaventura Leite (2000) aponta que o quilombo é a busca pela liberdade para a manutenção e realização das práticas, crenças e valores dos povos negros. É a possibilidade de reprodução de suas manifestações identitárias. Para a autora, os processos de constituição dos territórios quilombolas revelam a busca, por parte dos povos negros, por uma cidadania que jamais foi possível para esse grupo étnico-racial. Segundo Leite (2000), a reivindicação do título de quilombo expõe a emergência de um novo sujeito político, que não se acomoda diante de sua condição de subalterno e subjugado. O aquilombar-se configura, então, um modo pelo qual negras/os podem construir formas de manifestação e de mobilização política, afastando-se da imagem de acomodados e passivos (LEITE, 2000). Imagem esta amplamente divulgada desde a inserção do negro em nossa sociedade e que o colocou em um lugar de submissão e formulou meios capazes de limitar as ações de tais sujeitos.

O quilombo constitui-se território da resistência negra. A resistência negra refere-se às manifestações de contraposição aos processos de subalternização dos negros, que têm se efetivado das mais variadas formas na sociedade brasileira. Entre essas formas, aponto o projeto de construção da identidade nacional que estabeleceu uma unidade para o povo brasileiro e que invisibilizou o negro e seus territórios. A resistência, nesse sentido, constitui-se na elaboração de um contradiscurso, por parte dos negros, que seja capaz de forjar outra ideologia. Uma que revela as contradições da sociedade e evidenciam as diferenças étnico-raciais que dela fazem parte. A resistência se manifesta por meio da construção, pelos povos negros, de outras ideologias geográficas, que são os territórios quilombolas.

Ao pensar o quilombo enquanto instrumento de elaboração de outra ideologia baseio-me nas discussões realizadas por Nascimento (2007[1982]) acerca desses territórios. A autora argumenta que o quilombo não deve ser pensado somente como um aspecto histórico, como algo que se deu no passado ou que se manifesta, ainda, apenas como uma sobrevivência daquilo que se foi um dia. O quilombo é mais do que um aspecto sobrevivente da resistência negra no período da escravidão no país. Ele se manifesta enquanto uma continuidade que tende a se contrapor às formas de opressão e de dominação que o negro vivencia. O território quilombola permanece como uma forma de mobilização dos negros, mesmo que os contextos históricos e geográficos sejam outros. O reconhecimento como quilombo é, portanto, a possibilidade de construir outros sentidos para seus corpos e seus territórios, na medida em que se tem uma revalorização de suas manifestações culturais. Conforme argumentação de Nascimento (ORI, 2008[1989], 11min. 29 seg.).

Então, nesse momento o termo quilombo passa a ter uma conotação basicamente ideológica, basicamente doutrinária no sentido de agregação, no sentido de comunidade, de luta como se reconhecendo pessoas que realmente devem lutar por melhores condições de vida, porque merecem essas melhores condições de vida, na medida em que fazem parte da sociedade.

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A partir de tais proposições, podemos apreender os terreiros de candomblé como uma das possibilidades para a ressemantização da ideia de quilombo, ampliando os usos e sentidos do termo. A inserção dos terreiros de candomblé na questão quilombola reflete o caráter de resistência que esses territórios possuem. Aponto que a prática religiosa do candomblé configura uma manifestação de oposição às normatizações colonialistas presentes na sociedade brasileira. A existência dos terreiros nas cidades constitui-se uma tentativa de se estabelecer um contrapoder à ordem vigente, pois, “[...] os terreiros têm funcionado como efetivos centros de luta, de resistência cultural africana desde o século XVI”, de acordo com Abdias do Nascimento (1980, p.101). Compreendo que, ao buscarem o reconhecimento como quilombolas, os terreiros de candomblé procuram mais um meio que os permitam reforçar sua oposição aos processos de subjugação. Assim, o aquilombar-se para os terreiros é um elemento que agrega novos sentidos a sua resistência e a uma possível mobilização política.

A resistência no terreiro se manifesta através das danças, do toque do tambor e da música, confluindo para uma configuração territorial singular que revela outra relação com o corpo e com o território. Trata-se de um território, conforme Aureanice de Mello Corrêa (2008), que encarna a cultura dos povos negros. Em convergência, ainda, corroborando com as ideias da autora, ressalto que o terreiro pode ser apreendido como um território religioso e, ao mesmo tempo, político. Esse processo de resistência e de constituição de um território encarnador da cultura da população negra pode ser observado no quilombo urbano de Manzo Ngunzo Kaiango, onde a prática do candomblé se faz presente e permite a ruptura com os discursos que deslegitimam e desqualificam esta religião.

O quilombo de Manzo Ngunzo Kaiango

O quilombo de Manzo Ngunzo Kaiango está localizado no bairro Santa Efigênia, na região Leste da cidade de Belo Horizonte (MG), onde se instalou nos anos 1960, quando a matriarca da família adquiriu ali um terreno. A partir da aquisição deste foi possível a instalação de um barracão para as práticas da umbanda. A mãe de santo de Manzo teve seu primeiro contato com as religiões de matriz africana através da umbanda, foi somente mais tarde, ao final dos anos 1970, que ela se tornou candomblecista e também mudou sua casa religiosa para tal religião. Mesmo com a mudança para o candomblé, ainda são realizadas na comunidade algumas manifestações umbandistas, como é o caso das festas em homenagem aos Pretos Velhos.

Em Manzo, há cerca de sete famílias, perfazendo um total de 37 residentes, aproximadamente, entre crianças e adultos, que possuem algum vínculo de parentesco com a matriarca da comunidade. Quanto à religiosidade, não são todos os moradores do quilombo candomblecistas, apesar da centralidade que essa religião possui nesse território quilombola. Mesmo aqueles que não fazem parte do candomblé frequentam as festas e estão em constante contato com as diversas práticas e rituais que ocorrem no terreiro. Pontuo que a presença de não candomblecistas em Manzo não reduz a importância do candomblé para a comunidade, pois esta prática religiosa é um dos principais pilares no processo de constituição desse território.

Compreendo que a constituição do território quilombola de Manzo está ancorado basicamente em três aspectos, que são a sua religiosidade, a presença do projeto Kizomba e a sua mobilização política. Esses elementos estruturam o caráter de resistência da comunidade frente aos processos homogeneizantes e opressores presentes na sociedade brasileira, tais como os discursos da identidade nacional. Por contrapor a esses padrões, considero Manzo como um território de resistência. As manifestações religiosas conjugadas com as atividades desenvolvidas pelo projeto Kizomba e sua mobilização política revelam as diferenças dessa comunidade, estabelecendo identidades negras bem demarcadas. Identidades que se constituem através do contato com o outro, ou seja, com a sociedade envolvente.

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O candomblé é uma religião de matriz africana desenvolvida no Brasil desde a colonização, na qual se cultuam orixás que são considerados deuses da natureza. Os rituais realizados nessa religião são conduzidos pelo pai de santo (babalorixá ou tateto) ou por uma mãe de santo (ialorixá ou mameto), que também são os responsáveis por toda a organização e funcionamento do terreiro. A prática candomblecista no Brasil é bastante diversificada e se estrutura a partir de aspectos característicos de certos segmentos que são denominados de nação. Em Manzo, os rituais se estruturam pela nação angola, é utilizado o grupo etno-linguístico de origem banto para a realização dos rituais. O candomblé pode ser interpretado como uma forma de resistência encontrada pelos negros escravizados, uma vez que através dele se tornou possível também se contrapor às opressões do colonizador. E esse caráter de resistência ainda permanece, na medida em que essa religião é colocada à margem na sociedade brasileira, mas é requalificada por aqueles que a praticam, como ocorre em Manzo.

Para além do candomblé, na comunidade há um projeto denominado Kizomba, que realiza atividades com crianças e adolescentes da região e que tem como objetivo a valorização e a ressignificação das culturas negras. Essas ações possuem um caráter pedagogizante, pois buscam reconstruir os sentidos dados às práticas culturais e identitárias de negras e negros. Entre essas atividades estão aulas de capoeira, oficinas de dança e samba de roda, que acontecem de acordo com a disponibilidade de parcerias da comunidade. O desenvolvimento de tais ações permite ao quilombo reconhecimento e valorização no contexto sociocultural, político e territorial no qual se encontra inserido.

Juntamente ao candomblé e as ações do projeto Kizomba, a mobilização política constitui-se outro aspecto importante no processo de constituição do quilombo. Essa mobilização política dos sujeitos tem reconfigurado, de maneira direta, as dinâmicas socioespaciais do quilombo, uma vez que por ela tem sido possível encontrar mecanismos e instrumentos que permitem a qualificação e a ressignificação de suas identidades e de seu território. Foi através dessa mobilização que se tornou possível o reconhecimento como quilombo e é por ela que Manzo tem buscado a garantia de seu território, uma vez que muitas são as pressões para que a comunidade o perca.

Ressalto que a mobilização política é fundamental no reconhecimento quilombola, uma vez que o processo não se esgota apenas no plano legal. A questão quilombola nasce a partir de um dispositivo legal, no entanto, ela não se extenua nele. A questão é colocada na legislação, através da qual os povos negros podem vislumbrar possibilidades de reversão de sua condição. Mas a discussão em torno da questão quilombola se alavancou e se tornou o que é em decorrência das mobilizações e reivindicações por parte dos negros para que seus territórios fossem reconhecidos por esse dispositivo legal.

É nesse sentido que a mobilização política de Manzo é um aspecto que tem grande interferência no reconhecimento como quilombo, pois ela complementa as demais manifestações da comunidade, as ações do Kizomba e a prática do candomblé. Foi a partir de tais aspectos que a comunidade de Manzo buscou o seu reconhecimento como território quilombola e foi certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP), em 2007. Ao se autoatribuir a identidade quilombola, Manzo ampliou as possibilidades de ressignificação de suas manifestações identitárias, além de agregar um importante instrumento para a garantia de seu território. Assim, muitas são as contraposições aos discursos que tendem a homogeneizar esses sujeitos e também às práticas racistas e de intolerância religiosa que fazem parte do cotidiano da comunidade.

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Os processos envolvidos na constituição do território de Manzo revelam os novos usos e sentidos que o quilombo vem adquirindo na sociedade. Um quilombo que se estabelece a partir de discursos que direcionam para uma valorização da história e da identidade do negro. E, como apontado por Nascimento (2007), compreendo que a constituição do quilombo de Manzo traz a continuidade de um processo que se iniciou no período escravagista, na medida em que este novo quilombo também é uma manifestação de resistência contra um sistema que ainda mantém, fortemente, as marcas do colonialismo.

Considerações finais

A possibilidade de garantia de seu território e de seus direitos, através do reconhecimento como quilombolas, constitui-se uma alavanca para que, cada vez mais, negras/os estabeleçam alternativas para as formas como o poder vem sendo exercido por séculos na sociedade brasileira. A busca pelo reconhecimento e pela titulação torna-se, assim, uma estratégia através da qual esses sujeitos podem enxergar a transformação de suas experiências espaço-temporais. Apesar da morosidade do processo de aquilombar-se e das dificuldades enfrentadas pelos quilombolas para acessarem as políticas a eles direcionadas, a busca por esse reconhecimento configura-se, ainda, em ações de contraposição ao poder exercido por outro grupo. Ao considerar a constituição dos territórios quilombolas como a emergência de um contrapoder, compreendo que esse processo constitui-se uma estratégia, uma vez que se pretende a conquista e a garantia de direitos.

O reconhecimento de Manzo como quilombola configura-se um processo de territorialização através do qual seus moradores buscam a ressignificação de suas práticas identitárias para si e também para o outro. E, como ressaltado por Haesbaert (2007, p. 97, grifos do autor):

Territorializar-se, desta forma, significa criar mediações que proporcionem efetivo ‘poder’ sobre nossa reprodução enquanto grupos sociais (para alguns também enquanto indivíduos), poder este que é sempre multiescalar e multidimensional, material e imaterial, de ‘dominação’ e ‘apropriação’ ao mesmo tempo.

Esse processo se manifesta através das práticas religiosas, das ações do projeto Kizomba e da mobilização política, que considero como a base dos modos pelos quais Manzo vem estabelecendo um contrapoder, na medida em que não se sujeita aos padrões e normas que lhe são impostos. São as manifestações identitárias da comunidade que lhe permite acionar mecanismos que lhe possibilite, em algum momento, acessar políticas que lhe forneça condições de reprodução enquanto um grupo étnico-racial diferenciado.

E, como apontado anteriormente, o território desse grupo não se estabelece somente após o reconhecimento concedido pelo Estado, pois, suas dinâmicas e práticas já o definiam. A busca pelo reconhecimento pode ser compreendida como um mecanismo de resistência, no qual esses sujeitos poderiam, em princípio, fortalecer suas estratégias para a emergência de um contrapoder e, ainda, negritar que a cidade constitui-se de múltiplos territórios. Territórios, muitas vezes, invisibilizados e ausentes nos discursos e práticas da sociedade brasileira, que, através da ideia de uma identidade nacional, não considera e nem valoriza as narrativas e trajetórias de negras/os.


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