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Espaços que pesam: ficção política e heterotopia no congado mineiro

Patrício Alves de Sousa

Introdução

Há espaços que não pesam. Este é o argumento que adoto para sustentar a reflexão construída neste texto. O exercício que aqui empreendo é o de problematizar, a partir da aproximação aos festejos negros de grupos de Congado, a maneira como algumas normas regulatórias atuam na abjeção de determinados espaços, conferindo a estes um status de inferioridade em relação a espaços institucionalizados e portadores de significação positiva. No texto, discuto ainda as maneiras como determinados espaços, através dos tensionamentos de poder e a partir da formulação de lugares festivos, se instituem como heterotopias que produzem novos arranjos para corpos e espaços marcados pelas questões de gênero, raça e etnicidade.

Inicio a reflexão com uma breve apresentação da natureza e dinâmica dos festejos de Congado. Os Reinados, ou Congados, como definem Núbia Gomes e Edimilson Pereira (2000[1988]), figuram como festas de coroação de reis negros. Presentes em diversas regiões do Brasil desde o período colonial, esses rituais se constituíram como espaços de celebração nas irmandades negras onde grupos se reuniam para exaltar seus santos. Marcados por um processo de cruzamento cultural, estabelecido através da violência física e simbólica entre a cultura portuguesa e a africana em terras brasileiras, os Congados se efetivaram como lugares para vivência da cultura afro-brasileira e para reencontro simbólico do negro com sua terra e povos de origem através das festas.

Após a abolição da escravatura as festas religiosas de devoção a Nossa Senhora do Rosário e a alguns santos negros, como São Benedito, Santa Efigênia e São Elesbão, permaneceram com o mesmo fervor. Na atualidade, seja no interior de santuários católicos ou nas ruas de diversas cidades e comunidades rurais brasileiras, a dinâmica dos Congados continua a reexaminar, através de festejos públicos, a vida do negro africano antes do contato com o europeu, a passagem desse negro da África para o Novo Mundo, seu sofrimento no cativeiro na passagem transatlântica e em terras além-mar e sua participação subalterna na sociedade brasileira após a abolição da escravidão; tudo isso para apontar alternativas para ressignificação da negritude e de suas espacialidades no Brasil (SOUZA, 2002).

As considerações realizadas neste texto se referenciam nos eventos festivos de dois grupos de Congado no Estado de Minas Gerais, que acompanhei durante experiências de pesquisas etnogeográficas que deram origem à minha dissertação de mestrado (SOUSA, 2011). Junto ao Grupo de Congado do distrito de São José do Triunfo, que elabora seus rituais de preparação e realização das Festas de Nossa Senhora do Rosário na cidade de Viçosa, Zona da Mata mineira, efetuei observação participante entre os anos de 2006 e 2010. Este grupo apresenta como característica o fato de ser constituído exclusivamente por homens e ocupar uma posição historicamente periférica em termos localizacionais e de significação no contexto urbano em que está inserido. As manifestações do grupo constituíram seus primeiros festejos na área central da cidade, nas décadas iniciais do século XX, mas ao ter sido negado pelo poder religioso e público local este lugar privilegiado de manifestação sociocultural, o grupo foi paulatinamente sendo empurrado para as bordas da cidade, tendo todos os seus aspectos simbólicos expurgados da área central. Igrejas do Rosário foram derrubadas e objetos relacionados à festa foram dispersos por vários cantos da cidade.

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A outra guarda de Congado que acompanhei em atividade de pesquisa foi o Grupo de Congado de São Benedito, do município de Minas Novas, Vale do Jequitinhonha. Esta é uma guarda com histórico que se estende já há dois séculos, que possui em sua constituição tanto homens quanto mulheres e que se configura como um festejo étnico-religioso atualmente incorporado e assimilado pela dinâmica social e urbana da cidade em que está estabelecida. O grupo realiza seus festejos na área central da cidade. O poder público incentiva aí a realização das festividades, vendo-as mesmo como um atrativo cultural e turístico do município. A Igreja, que recebe o nome de Nossa Senhora do Rosário, uma das figuras centrais dos festejos do Congado, abre as portas de um dos principais templos católicos da cidade para celebração da Missa Conga. Diversos segmentos da população local, em sua maioria constituída por negros e pardos, se envolvem com a festa. Meu acompanhamento aos rituais festivos do Congado de São Benedito na Festa do Rosário e na Festa de São Benedito em Minas Novas ocorreu entre os anos de 2009 e 2011.

A problematização das corporeidades elaboradas pelos Congados de São Benedito e de São José do Triunfo na pesquisa se baseou no exame, em uma perspectiva comparada, dos tensionamentos de poder que estabelecem a exclusividade da participação de indivíduos de apenas um sexo para constituição de um agrupamento e em outro em que esta norma não é instituída. A pesquisa procedeu ainda na análise da normatividade que estabelece a negação do corpo e das espacialidades negras como elementos visíveis na constituição do espaço da cidade em um dos Congados, e sua integração à dinâmica social e urbana de outra das cidades. O objetivo que dirigiu a pesquisa foi o de identificar como as diferentes corporeidades, constituídas por processos normativos de controle dos corpos (exclusão ou assimilação de certos sujeitos), produz, de maneiras distintas, qualificações espaciais em termos de generificação e marcação étnico-racial. Aproximei-me desta compreensão a partir da descrição e análise da maneira como as práticas de poder geradas entre os sujeitos celebrantes do Congado atuam na elaboração de um lugar festivo, da caracterização do espaço-temporalidade das festas em análise, do delineamento das fronteiras que demarcam os limites entre o “território negro” e o “espaço branco” que se tensionam na constituição dos festejos de coroação de reis negros e da identificação das territorialidades tidas como espaços de masculinidade e suas outras possibilidades dentro do lugar festivo do Congado.

A compreensão mais significativa permitida pela pesquisa foi a de que os grupos de Congado estudados, ao produzirem um lugar festivo durante as celebrações, conseguem reverter condições de subjugação ao mesmo tempo em que conservam a tradição de um festejo de cunho étnico-religioso que se estende ao longo de séculos. Os grupos de Congado atuam de maneira eficaz nas ações de reversão simbólica responsáveis por criar outras possibilidades de vida corpórea para sujeitos marcados por questões étnico-raciais e de gênero.

Feitas essas considerações sobre o desenho da pesquisa, é oportuno ressaltar que a reflexão que ora apresento pretende apontar, ao destacar os processos de composição e desestabilização de estruturas de poder que se fundamentam na relação corpo-espaço, para a necessidade de contribuições geográficas aos debates que concorrem para o reconhecimento e viabilização da emancipação politizada das diferenças étnicas, raciais e de gênero. Mais do que buscar generalizações para outros festejos negros ou processos sociais com dinâmicas semelhantes a estes eventos, a pretensão do texto é a de colocar em relevo aspectos que possam servir de paralelo, contraste ou mesmo negação para outras interpretações que possuem como interesse a natureza e dinâmica das espacialidades étnico-raciais e de gênero.

Sobre espaços, corpos e densidades

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A ideia sustentada no título deste texto de que há alguns ‘espaços que pesam’ e outros que, por exclusão, são forjados como abjetos, possui uma referência nas ponderações de Judith Butler (2001[1993]) a respeito dos ‘corpos que pesam’. Em “Bodies that matter”, livro lançado nos Estados Unidos no ano de 1993, Butler expõe suas reflexões a respeito do processo de materialização dos corpos a partir de normas regulatórias que se instituem através de discursos elaborados para e a partir do “sexo”. Esta obra gerou grande impacto na comunidade científica e no pensamento feminista, justificando sua tradução para diversos idiomas. Nessas traduções, um aspecto interessante se revelou a partir da reinscrição do título do livro.

A partir da utilização do vocábulo “matter”, Butler realizou um interessante jogo de palavras para confeccionar o título de sua obra, originalmente escrita em língua inglesa. Isto ocorreu porque “matter” no inglês é considerado tanto como um substantivo, expressão que pode ser traduzida para o português como ‘matéria’, quanto como um verbo, significando no idioma lusófono ‘importar’. Manipulando a linguagem, Butler condensou, dessa maneira, uma importante questão epistemológica dos estudos feministas ao intitular sua obra, enunciando com seu “Bodies that matter” a premissa de que alguns corpos se tornam matéria ao atingirem um status de importância, corpos esses que conseguem ser assimilados pelos instrumentos de poder que definem o senso de humanidade para a realidade corpórea de alguns sujeitos apenas. Para outros corpos essa qualidade de importância não é atribuída, por serem esses categorizados por uma série de práticas reiterativas como “zonas inóspitas e inabitáveis” da vida social, se constituindo, portanto, em corpos de alguma maneira desmaterializados.

Em algumas das traduções que a obra ganhou, o caráter instigante e perturbador do título foi perdido. Na versão espanhola, o livro foi intitulado “Cuerpos que importan”, não dimensionando o caráter material envolvido na obra original. Em “Ces corps qui comptent”, versão francófona do livro, o título também não possui o mesmo fulgor, denotando apenas os ‘corpos que contam’. Até a presente data o livro de Butler não ganhou uma tradução completa para o português, estando publicada no Brasil somente a tradução de sua introdução, que, a partir da tradução de Tomaz Tadeu da Silva, ganhou o imponente título de “Corpos que pesam”, expressão que considero potente e provocativa. Embora não tenha a mesma precisão em relação à forma como pensada em inglês, acredito que esta intitulação conseguiu alcançar a refinada enunciação da ideia de Butler. É baseado nesta reflexão que intitulo a presente reflexão de “Espaços que pesam”. Referenciado pela tradução brasileira da introdução do livro de Butler, pretendo também jogar com a linguagem para discutir como alguns espaços, ao serem constituídos por determinados tipos de corpos e sujeitos, não se tornam importantes, em detrimento a outros, que por serem formulados por corpos legitimados, são considerados como de relevância. Apresentarei ainda como esses espaços abjetos podem, através de algumas práticas insurgentes, adquirir um peso.

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Butler (2001[1993]) propõe que os discursos em torno do sexo se constituem na fonte fundamental que institui a materialidade dos corpos. O “sexo” se estabelece, dessa maneira, como um forte elemento envolvido nas práticas regulatórias e normativas que definem os contornos dos corpos. Os indivíduos em seu processo de socialização são constituídos a partir da adoção de determinados códigos envolvidos num ideal regulatório. Assim, possui o “sexo” um poder produtivo capaz de demarcar, diferenciar e governar os corpos. “Sexo”, mais do que um atributo físico e fixo que alguém porta, é um construto social capaz de produzir a materialidade dos corpos. Isto porque o “sexo”, no contexto ocidental moderno, funciona como um instrumento através do qual os sujeitos se tornam viáveis. Para atingir esse status de sujeito não há outro caminho que o indivíduo possa seguir que não o de “assumir” determinado papel dentro de uma estrutura generificada que conforma a vida social. A transgressão dessas normas sexuais, a priori já estabelecidas, gera, via de regra, a exclusão dos transgressores do patamar de sujeitos legítimos. É assim que os corpos que não se dispõem a se conformarem dentro de papéis já predeterminados dos modelos do ser homem ou mulher são tidos como corpos estranhos e inassimiláveis pelos códigos de inteligibilidade cultural de uma sociedade que possui contornos muito estreitos para os papéis de gênero, vide as grandes e duras sanções que sofrem os corpos transgênero dentro de nosso contexto social.

A performatividade de gênero, como problematiza Butler, se constitui, nessa medida, como um eficaz instrumento através do qual o discurso em torno do “sexo” produz uma realidade gendrada. Para que se torne parte integrante da vida social o indivíduo deve se sujeitar a normas regulatórias, sofrendo suas sanções. O indivíduo se torna sujeito, dessa maneira, através de uma performatividade. Esta performatividade, por sua vez, exerce o poder de reiterar discursos em torno do sexo, regulando as ações do sujeito e constrangendo os alcances de suas práticas corporais.

Nessa produção dos corpos legitimados são forjados simultaneamente, como aponta Butler, um domínio dos seres abjetos, destituídos do status de sujeito. Estes corpos são fundamentais para a existência dos corpos legitimados, porque se configuram como ponto de contraste para que estes últimos se estabeleçam. Os corpos que não pesam são aqueles que não possuem o status de sujeito ou os códigos designativos daquilo que é tido como humano. Ao mesmo tempo, estes corpos que não importam servem como um “exterior constitutivo” que permite que os corpos legitimados produzam sua materialidade, corpos que possuem importância e densidade.

Transpondo estas reflexões para a ideia de ‘espaços que pesam’, concebo que não é somente a partir dos corpos que as abjeções são produzidas. É, talvez, a partir da corporeidade, que estas exclusões de sujeitos se tornam mais fortemente efetivadas. Isto porque as abjeções que são produzidas não estão ligadas somente a um corpo encapsulado pela pele (HARAWAY, 2000[1991]). As sanções relacionadas com a abjeção estão ligadas com outras dimensões que estabelecem a vida dos sujeitos, como seus espaços. Assim sendo, os espaços produzidos e ocupados por alguns corpos tidos como ilegítimos sofrem também os efeitos de uma matriz excludente que os considera como zonas inóspitas e inabitáveis. As favelas são, em grande medida, representantes desses espaços construídos pela força da exclusão e da abjeção, espaços que funcionam como exteriores constitutivos para que alguns outros espaços legitimados se conformem como espaços de importância, espaços que pesam. Essa realidade é literariamente demonstrada por Carolina Maria de Jesus, quando a escritora apresenta as relações de complementaridade e tensão estabelecidas entre as áreas consideradas nobres das cidades e suas favelas, ou, como pretende a autora, entre a sala de visitas da cidade e seu quarto de despejo.

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Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de citim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. [...] Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo. (JESUS, 2014[1960], p.37)

No caso da análise que estabeleço, concebo que os espaços festivos dos grupos de Congado são tidos, por grupos hegemônicos de sujeitos, como espaços que não possuem a densidade necessária para que sejam considerados como importantes. Isto porque, como pude identificar a respeito dos festejos de coroação de reis negros, os espaços da negritude são repetidamente vistos como espaços perigosos à ordem estabelecida. Deslegitimar este espaço faz parte de uma deliberada medida de desqualificar a positividade das espacialidades negras, relegando-as a um status de “signo inabitável”, que possuem suas existências exclusivamente para que outro tipo de espaço, o do branco, possa se instituir como espacialidade legítima. Nesse sentido, vale ressaltar que as abjeções que são geradas para os corpos não se dão apenas a partir de um ideal regulatório a partir do sexo, mas também a partir de discursos raciais. Assim, em concordância com Sandra Azerêdo (1994, p. 207), concebo que as diferenças produzidas em uma sociedade multirracial como a brasileira geralmente se estruturam a partir de processos interseccionais, em que o gênero passa a ser “uma das formas que relações de opressão assumem numa sociedade capitalista, racista e colonialista”.

A contribuição do pensamento de Butler para a confecção desta reflexão não está situada, porém, no simples apontamento das práticas reiterativas que tornam alguns corpos e espaços como pertencentes a um domínio circunscrito de abjeção. Pelo contrário, o que me interessa na contribuição da autora são suas argumentações que apontam para o caráter não determinante das práticas reiterativas e que se distanciam da suposição de que são inelutáveis as condições de sujeição e abjeção. O que a reflexão de Butler situada em “Bodies that matter” busca realmente elucidar é que, embora existam formas eficazes de reiteração nos discursos que buscam reduzir os contornos dos corpos, as materializações que tais discursos produzem são na verdade processos contingenciais. Assim sendo,

O fato de que essa reiteração seja necessária é um sinal de que a materialização não é nunca totalmente completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades, as possibilidades de rematerialização, abertas para esse processo, que marcam um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela mesma, para gerar rearticulações que colocam em questão a força hegemônica daquela mesma lei regulatória. (BUTLER, 2001[1993], p. 154)

Com efeito, o que Butler nos proporciona ao sugerir a ideia de ‘corpos que pesam’ é que se localizam nas próprias práticas reiterativas e rituais dos discursos a respeito do sexo, e, eu diria, também, da raça, a possibilidade de constituição de fissuras que colocam em risco os sistemas hegemônicos que produzem normatizações sobre os corpos, tornando assim estes sistemas instáveis e provocando em seu interior rupturas. Por a matéria que produz os corpos e os espaços não se constituir apenas em superfícies, mas em materialidades que se encontram em permanente transformação, ela desfaz os próprios efeitos que a princípio busca estabilizar. Assim, de acordo com Butler, é a partir das próprias práticas regulatórias, em alguma medida, que normas podem ser colocadas em cheque, gerando uma crise potencialmente produtiva, emergindo a partir daí uma recontextualização dos corpos e também dos espaços. É nesse ponto que os corpos e espaços ilegítimos e abjetos podem se transformar em corporeidades que importam e que possuem densidade, portanto, corpos e espaços que pesam.

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No caso específico dos grupos de Congado, esta construção dos ‘espaços que pesam’ passa pelo entendimento do lugar festivo como um drama social que permite a ficção política e as heterotopias, onde corpos generificados e racializados, quando se encontram e festejam o/no espaço, passam a constituir corporeidades que atuam na ruptura e ressignificação dos seus lugares sociais hierarquicamente subalternizados nas geometrias de poder. Assim, nas próximas seções deste texto analiso como os rituais de coroação de reis negros se constituem numa forma de criação dos espaços outros, dos ‘espaços que pesam’. Contrariando as perspectivas que adotam a festa como uma inelutável repetição da estrutura social e como confirmação do estado de coisas existentes, problematizo a festa a partir da sugestão de Butler (2001[1993], p. 164) de que a possibilidade desconstrutiva de processos pode se localizar no próprio processo de repetição. O esforço será o de encontrar elementos que nos festejos analisados estabelecem paralelos com a bela proposição poética de Manoel de Barros (2010, p. 300) de que é possível “repetir, repetir - até ficar diferente”.

O lugar festivo: ritual e ficção política nos festejos de Congado

As festas, como eventos sociais, são recorrentemente associadas na literatura geográfica a expressões culturais singulares de povos em seus lugares específicos. Os escritos de muitos geógrafos e geógrafas que tratam desses eventos não têm considerado o espaço festivo como um elemento que inter-relaciona lugares e como um evento que revela em grande medida sobre as práticas de poder, os intercâmbios econômicos e as trocas simbólicas entre os diferentes lugares e povos. A configuração desta seção do texto caminhará, em função disso, num esforço de conceituação do lugar festivo como instância que atrita com as concepções reducionistas a respeito das festas, que as caracterizam como temáticas de menor relevância dentro dos debates geográficos ou que a definem como fenômeno singularizado da realidade espacial.

A geógrafa Bernadete Quinn (2005) sugere que um caminho que pode ser percorrido para pensarmos o lugar festivo, nesta postura aberta das festas que estou considerando, é o de ponderar que as festas são composições que se moldam a partir de interconexões entre diferentes lugares, perspectiva esta que não tem por intuito traçar os limites rígidos que conferem ao lugar autonomia e autenticidade. Nesse viés de entendimento do lugar festivo, as personagens que o compõem são concebidas como resultantes da combinação tanto de traços de origem interna quanto de processos externos que se estabelecem a partir de relações de interdependência com outros lugares. Dessa maneira, além do lugar, as festas também são entendidas como algo aberto e extrovertido, por seus significados somente se elaborarem a partir de relações de alteridade, ou seja, a partir das confrontações entre a compreensão dos próprios participantes sobre o significado dos eventos festivos e as leituras “exteriores” às festas a respeito de seus sentidos. O lugar festivo é visto, portanto, sempre como lugar de encontro e de tensão, por ser a festa constituída como uma esfera de circulação de ideias, pessoas e bens materiais e simbólicos.

Luiz Felipe Ferreira (2003) fornece importantes reflexões a esse respeito. Sugere o autor que o lugar festivo pode ser entendido como uma dimensão basilar da festa, na medida em que o ato de festejar se torna de fato festa quando se apropria dos lugares. O ato de festejar teria uma dimensão eminentemente espacial, uma vez que controlar um dado espaço e concebê-lo como festivo por meio de tensões e conflitos pelo poder seria uma dimensão fundamental do festar. O lugar festivo, nessa medida, se constitui numa das manifestações espaciais de conflitos que procuram exercer o poder sobre o espaço através do discurso, elegendo-o como espaço da festa.

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A delimitação do espaço da festa é pensada, nesse viés, a partir de constantes tensões que disputam um espaço simbólico. A apropriação de espaços, por envolver a disputa da hegemonia dos significados simbólicos de determinados lugares, é vista por Quinn (2005) como uma postura de constante luta pelo poder. Assim sendo, a festa só existe enquanto disputa pelas significações que dão coerências e sentido em festejar para e sobre algo, sendo que, como apropriadamente define Ferreira (2003, p. 12), “a batalha retórica pela definição da festa só se torna, na verdade, um afrontamento, ou seja, uma festa, quando a tensão se espacializa”.

Por ser o lugar festivo uma dimensão que envolve um teor de tensões e disputas por significados simbólicos, é possível que associemos os seus sentidos à ideia de ficção política. A noção de ficção política, da forma como a utilizo, é baseada na elaboração desta ideia por algumas teóricas feministas que debatem acerca das possibilidades de os corpos humanos reconstruírem seus significados em meios sociais em que são sujeitados, ao serem reificados ou naturalizados em posições subalternas nas geometrias de poder generificantes ou racializantes. Uma boa conceituação para a ideia é encontrada em Butler (2002[1998]), quando a autora sugere que a ficção política pode ser entendida como uma forma de imaginário que abre fissuras e torna possíveis realidades até então não vislumbráveis para que os corpos tidos como abjetos se delineiem ou para que corpos que ocupam posições hierarquicamente inferiores construam outras possibilidades de existência. A ficção política pode ser entendida, então, como um instrumento que tem por “[...] finalidade expandir e realçar um campo de possibilidades para a vida corpórea (BUTLER, 2002[1998], p. 157)”. A prática da ficção política, nesta medida, se constitui na tentativa de se utilizar da imaginação para questionar os processos perversos que definem significados ontológicos inferiores para alguns corpos, que fazem com que estes não sejam assimiláveis ou aceitáveis como possíveis pelos instrumentos definidores do que é estabelecido ou não como humano. Podemos caracterizar a ficção política, pois, baseados em Butler, como uma espécie de imaginário filosófico envolvido na tarefa de desmantelar os significados de ilegitimidade dos corpos, tornando-os realidades corpóreas possíveis e portadoras de positividade.

As maneiras de realização da ficção política sugeridas pelas teóricas feministas são diversas. Literatura e cinema são formas recorrentemente apontadas. Donna Haraway (2000[1991]), ao refletir sobre a possibilidade de existência do ciborgue como um mito político, sugere, por exemplo, que a escrita literária pode ser uma forma de se recontar histórias que foram incutidas eficazmente em nossos sistemas de valores e que acabaram por neutralizar e restringir nossas possibilidades de transgressões corporais. Para a autora, ao recontar histórias a partir da reinscrição e reelaboração de mitos fundadores, a ficção política pode subverter mitos de origem presentes na cultura ocidental. Há, portanto, um viés apocalíptico na ficção política, já que ela é imbuída de sentidos e faz uso de práticas que visam desestabilizar as maneiras como diversos corpos têm sido oprimidos por mitos de origem no Ocidente. Para Haraway (2000[1991], p. 42), a ficção política se constitui, dessa maneira, como “[...] um argumento em favor do prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da responsabilidade em sua construção”. Envolvido na ficção política está um sentido de blasfêmia, ao atentar contra lógicas consagradas nas estruturas sociais produzindo fissuras que transformam suas bases.

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Pensando nos grupos de Congado, acredito que esta ideia de ficção política, quando associada ao lugar festivo, potencializa uma série de reflexões sobre a constituição de corporeidades. O Congado, como evento festivo e ritualizado, acaba por lançar mão de uma série de instrumentos que busca atentar contra a estrutura social que coloca os seus celebrantes numa condição hierarquicamente inferior no sistema social brasileiro. As músicas entoadas e as embaixadas proferidas nas celebrações públicas estão repletas de discursos que não somente denunciam a situação de subjugação do negro, como também resgatam histórias pretéritas deste povo em situações de não escravização e ensaia pensamentos que apontam para a transformação da sua condição atual de subalternização.

Assim sendo, os festejos do Congado, em grande medida, denunciam uma situação de opressão, simultaneamente resgatando e ensejando possibilidades de outras configurações para os corpos negros. Ao manifestarem-se em espaços centrais de cidades, os grupos de Congado lançam esforços de transformação do campo de possibilidades corpóreas para o negro brasileiro, ao comunicar, para outros segmentos populacionais que com eles atritam ou mesmo o subjugam, outros significados para o corpo negro que não somente o de submissão. As narrativas mitopoéticas teatralizadas pelos Congados, repletas de sentidos políticos, abrem ainda caminho para situações imaginativas em que o negro não é somente o escravo, a mão de obra não qualificada que ocupa os piores postos de trabalho ou aquele sujeito supostamente portador de degeneração genética que o impele ao crime ou a outros atos baseados nos instintos de sua pretensa “biologia inferior”. Fazendo um paralelo com Haraway (2000[1991], p. 40) podemos considerar, então, os festejos do Congado como ficção política, uma vez que para ambos “a libertação depende da construção da consciência da opressão, depende de sua imaginativa apreensão e, portanto, da consciência e da apreensão da possibilidade”.

A respeito da ficção política uma importante consideração deve ser feita. É necessário ressaltar que sua intenção não é a de fornecer fantasias para que os sujeitos e grupos, numa prática esquizofrênica, amorteçam as dores que um mundo perverso causa a seres que têm seus corpos ilegitimizados. Sua contribuição não está, absolutamente, calcada numa tentativa de criar uma ilusão que possa contribuir para que estes seres por momentos específicos e reduzidos se “alienem” de sua realidade. A contribuição é sim, como sugere Bell Hooks (1992), a de atuar no reconhecimento das limitações que o mundo impõe aos corpos ilegítimos. Nesse sentido, a ação ritual da ficção política tem por intenção apontar meios de escape a partir de uma imaginação criativa que seja de fato libertadora. E como apropriadamente pondera Hooks (1992, p. 12), “[...] somente assim a fantasia e o ritual podem ser um sítio de sedução, paixão, e atuação onde o self é verdadeiramente reconhecido, amado, e nunca abandonado ou traído”.

Para o Congado isso faz amplo sentido. Congadeiros e congadeiras ao se virem como rei ou rainha no momento festivo não intentam, como interpretam muitos, reproduzir lógicas hierárquicas de poder que subjuga outros sujeitos. Imaginar-se como realeza tem mais a ver com uma atitude de deboche direcionado por parte dos congadeiros e congadeiras a uma estrutura hierárquica de poder que os subjuga. À luz de Haraway (2000[1991], p. 40) podemos sugerir, então, que brincar de ser rei ou rainha é uma forma imaginativa irônica e bem humorada de se lançar num jogo sério que se constitui numa estratégia retórica e num método político de se blasfemar para alcançar coisas importantes.

Ficam assim estabelecidas as proximidades existentes entre os conceitos de ficção política e lugar festivo. A elaboração deste último está em grande medida relacionada aos sentidos da primeira. O lugar festivo se constitui numa instância discursiva que mais do que reproduzir um estado de coisas existentes, como se celebrasse aquelas hierarquias já postas e reprodutoras das relações sociais, abre possibilidades para que os grupos se reinventem e transformem as condições a que são impostos.

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Este entendimento do lugar festivo como ficção política leva, por conseguinte, à aproximação destes dois conceitos a outra noção, a de heterotopia, que, como irei propor na seção seguinte, pode ser vista como uma forma espacializada e espacializante da ficção política amplamente presente nos lugares festivos do Congado.

Dos “espaços outros”: as heterotopias nas coroações de reis negros

A noção de heterotopia possui suas bases fundamentais calcadas nas reflexões a respeito do espaço desenvolvidas por Michel Foucault em diversas passagens de sua obra. Antes de fazer qualquer consideração sobre a ideia de heterotopia necessitamos, porém, ter uma demarcação melhor elaborada do significado da ideia de espaço na obra do referido pensador. De acordo com o pesquisador Rodrigo Valverde (2009), a concepção de espaço presente na obra de Foucault está intimamente relacionada com a ideia de dinamismo social, à perspectiva da mudança, aos tensionamentos de ideias e ao caráter iminente das novas representações. Podemos entender, pois, que a noção de espaço na teoria de Foucault está relacionada com a perspectiva da transformação e da mutabilidade das coisas e relações. É a partir dessa perspectiva que um conceito e uma teoria a respeito da heterotopia são elaborados por Foucault, ora como uma ação de resistência, ora como uma atitude metamórfica.

Uma noção repetidamente atrelada à ideia de espaço na obra de Foucault é a de corpo. Ao refletir sobre as relações estabelecidas entre essas duas esferas, que acabam por construir o movimento histórico e as transformações do social, o pensador propõe a noção de heterotopia como uma forma de estabelecimento de espaços absolutamente diferentes, ou “espaços outros”, que acabam por contestar e afrontar todos os outros espaços. Assim, para Foucault (2009[1966]), as heterotopias se constituem em espaços corporificados que localizam e materializam utopias ao se constituírem como contraespaços.

Na reflexão do pensador, o corpo se constitui numa dimensão que se opõe radicalmente àquilo que é utópico. É assim que, de acordo com Foucault, enquanto o corpo se constitui naquilo que está junto de cada sujeito num dado ‘aqui e agora’, as utopias se estabelecem como lugares descorporificados. Por se constituírem como locais sem lugares reais, as utopias são espaços essencialmente irreais. O corpo, em contrapartida, é aquilo que possui uma forma e determinado contorno, algo que gera uma espessura, um peso. O corpo é, assim, algo que ocupa e produz lugares. Se a utopia é aquilo que não possui lugar, ela não pode ser confundida com o corpo, o agente ativo que não simplesmente ocupa um lugar, mas que irradia todos os lugares possíveis, tanto os reais quanto aqueles que ainda não se tornaram concretos. (FOUCAULT, 2009[1966]).

A heterotopia trata, então, dos encontros entre os espaços e os corpos. O espaço, enquanto esfera que nos impele para fora de nós mesmos, para que tenhamos nossas vidas consumidas pelo movimento da história, permite que os corpos ganhem espessuras, ao construírem sua existência e formularem suas materialidades. O espaço é visto por Foucault (2001[1967]) não como uma dimensão física, mas como conjunto de relações que define os lugares a partir da realidade corpórea dos sujeitos. Nesse sentido, a heterotopia se constitui numa realidade espacial onde os corpos podem construir suas múltiplas representações e se firmarem como uma realidade material. É nesse sentido que sugiro que a heterotopia é uma manifestação espacializada e espacializante da ficção política. Isto porque as heterotopias em Foucault aparecem como lugares que insistem em resistir aos espaços altamente institucionalizados, que acabam por restringir as possibilidades dos corpos se configurarem como instrumentos de liberdade. A heterotopia é, em função disso, um lugar de abertura, que caminha rumo a novas possibilidades de os corpos se reconfigurarem, um contramovimento à domesticação dos corpos e aos discursos oficiais sobre estes, enfim, uma instância a que os sujeitos subalternizados recorrem para concorrerem com formas legitimadas de corpos.

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Foucault (2001[1967]) vê uma espécie de experiência mista e comum estabelecida entre a heterotopia, a utopia e o espelho. A aproximação a esta reflexão do autor nos permite uma melhor compreensão dos significados da heterotopia e também uma identificação de suas relações com o lugar festivo e com a ficção política. De acordo com Foucault, o espelho pode ser compreendido tanto como uma utopia quanto como uma heterotopia. Utopia porque o espelho é, em seu sentido mais stricto, um local sem lugar. A imagem refletida em sua superfície é uma virtualidade existente num espaço que, em certa medida, é irreal. Entretanto, o espelho constitui-se também numa heterotopia, por ser algo que de fato existe como objeto. Através deste artefato podemos lançar um olhar sobre nós mesmos, nos localizando num espaço virtual a partir de um lugar que ocupamos de forma real. Ao dirigir esse olhar sobre nós mesmos podemos, ainda que momentaneamente, tomar consciência de nossa ausência em um lugar onde, embora não estejamos estabelecidos, estamos de alguma maneira presentes através de nossa imagem. Nesse movimento constituído entre nós e nossa imagem no espelho, que talvez pudéssemos considerar como sendo um movimento dialético, dirigimos um olhar e um pensar sobre nós mesmos ao nos tornarmos conscientes de nossa ausência em um dado espaço, onde acabamos por nos reconstruir a partir do lugar onde de fato nos fazemos presentes, onde nossos corpos possuem uma densidade e um peso. Assim, de acordo com Foucault, o espelho funciona como uma heterotopia porque ele restitui o lugar que ocupamos quando nele nos olhamos, constituindo-se ao mesmo tempo em algo absolutamente real, conectado com todo o espaço que o circunda, e absolutamente irreal, porque age como algo virtual ao ser percebido por alguém que lhe é exterior.

Ainda a esse respeito, Foucault (2009[1966]) pondera que é graças ao espelho que nosso corpo não se constitui em pura e simples utopia. Se acreditarmos que nossa imagem, quando refletida no espelho, hospeda de alguma maneira parte do nosso ser em um lugar que deveria ser impossível, então acabamos por descobrir que as utopias podem portar um instante profundo e soberano de nossos corpos, transformando-se, assim, numa heterotopia, um lugar para o corpo que queremos fazer real, embora este lugar ainda não seja concreto.

Os festejos do Congado podem ser vistos como este tipo de heterotopia. Suas dinâmicas funcionam como esse espaço onde um determinado sujeito vê a imagem dos lugares que seu corpo pode ocupar. Por serem as festas do Congado, além de divertimento e regozijo, algo que também almeja a reconfiguração dos lugares dos corpos negros em determinadas geometrias de poder, elas funcionam como uma “superfície” onde os congadeiros e congadeiras podem enxergar seus corpos como legitimados, ocupando posições de centralidade e positividade. O lugar festivo funciona como uma heterotopia, um espelho que permite o vislumbre de um lugar em que os congadeiros e as congadeiras ainda não estão estabelecidos absolutamente, uma vez que os festejos do Congado se constituem em instantes especiais de convivência entre grupos e sujeitos negros que buscam, momentaneamente, interromper condições subalternas para ocuparem posições de centralidade. Entretanto, esse lugar festivo, gerado pela dinâmica dos grupos de Congado, não apenas tem o efeito de aliviar por um pequeno intervalo de tempo os duros sentidos do que significa ser negro no Brasil. O lugar festivo, enquanto prática heterotópica, permite também transformações na estrutura de poder ao atuar na reconstrução da identidade positiva do negro. Este, ao festejar suas memórias, lembra-se de um tempo mítico onde para ele preponderava a liberdade. Na mesma medida, tais negros e negras vislumbram um lugar de não sujeição que podem ocupar a partir de práticas combativas, que, nesse caso específico, se estabelece pela requalificação daqueles simbolismos que no espaço colocam corpos negros em posições hierarquicamente inferiores.

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Da mesma maneira em que os lugares festivos funcionam como uma alternativa para os sujeitos negros reconfigurarem suas possibilidades de existência corpórea, eles também servem como espaços para que, a partir de práticas de reestruturação simbólica, mulheres transformem os significados ontológicos recorrentemente atribuídos a seus corpos. São amplamente presentes nos contextos festivos que pesquisei os processos de saída de mulheres de uma situação de sujeição. Tais processos constituem-se em ações que visam o rompimento com determinados discursos que buscam reduzir os significados do que é ser mulher a apenas alguns tipos de experiências preconcebidas. A partir dessas ações, recorrentemente são construídos outros lugares em que tais corpos podem ganhar contornos para além dos já determinados por lógicas binárias, fazendo com que sejam alcançadas condições de maior liberdade identitária.

Em termos de organização das relações de gênero, as etnogeografias elaboradas nos festejos dos dois grupos de Congado apontaram aspectos formais bastante diferenciados para as relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres. Podemos, porém, encontrar importantes paralelos entre o sentido político que as ações de mulheres ganham nos rituais festivos e nos momentos de preparação das festas quando comparamos a dinâmica dos dois cerimoniais de coroação de reis negros.

No Congado de São José do Triunfo, o corpo da mulher é fortemente periferizado dos espaços visíveis de realização das festas. Os espaços em que se encontram mulheres habitualmente durante os eventos festivos são os interiores das igrejas, envolvidas na decoração de altares, e as cozinhas, na preparação da alimentação da festa. Numa interpretação mais rápida e menos cuidadosa, o que a observação dessa separação de espaços para os diferentes sexos indica é a exclusão da mulher das paisagens de maior prestígio na festa (aquelas de ordem pública) e sua consequente participação subalterna nos festejos. O que a pesquisa permitiu compreender, porém, foi que embora as mulheres de fato não se sintam confortáveis nessa posição de invisibilidade, sua participação no Congado não está restrita a atividades manuais, como a decoração e a preparação de alimentos, a que recorrentemente são associadas. Além de participarem desses importantes momentos e espaços para que a festa possa se estabelecer, em São José do Triunfo as mulheres são responsáveis também por atividades intelectuais fundamentais na produção dos rituais. São elas as responsáveis pela contratação em outras cidades de fanfarras que participam dos festejos, grupo de essencial importância para as cerimônias. Parte importante da contabilidade e da arquitetura dos rituais também é realizada por essas mulheres que, mesmo que não visivelmente, produzem valores que atritam com os sentidos masculinos que os homens participantes da banda de Congado buscam imprimir. Exemplo elucidativo disso é o fato de que como são as mulheres quem mais diretamente participam da arquitetura da festa, parte das memórias do Congado são guardadas apenas por elas e, vale lembrar, que para os festejos de matriz afro-brasileira o processo de lembrança, esquecimento e rememoração tem função primordial na elaboração das narrativas que os sujeitos possuem sobre si. É assim que muito da maneira como o congadeiro se pensa em termos étnico-raciais é estabelecido por uma economia memorial que possui nas mulheres uma administração discursiva. Uma possibilidade de formulação identitária passa, dessa maneira, necessariamente por um controle de significados gestado pelas mulheres.

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No Congado de São Benedito, em termos formais, encontramos situação bastante diferente para as mulheres. Seu corpo está impresso nas paisagens visíveis da festa e os cargos de maior hierarquia no grupo são recorrentemente assumidos por elas, o que não podemos observar no Congado de São José do Triunfo. Apesar desse estabelecimento diferenciado de relações entre homens e mulheres no Congado de São Benedito, posições hierárquicas relativas às tensões de gênero também são produzidas. Neste grupo há uma rígida divisão de tarefas na composição da banda de Congo. Tradicionalmente, mulheres assumem a atividade de dançadoras e cantadoras na estrutura da guarda, enquanto os homens são os responsáveis por tocar instrumentos e compor as músicas entoadas durante os festejos. Em termos de significação, as atividades desempenhadas por homens possuem nos contextos rituais maior importância simbólica, o que acaba por gerar, apesar de um não apontamento visual disso, posições desprivilegiadas de mulheres em relação aos homens nas dinâmicas festivas. Apesar desse histórico de relações desiguais entre os sexos no acesso aos espaços de poder na festa, a etnogeografia elaborada junto ao Congado de São Benedito mostra que nos últimos anos tem havido repetidas tentativas, na maior parte das vezes alcançando sucesso, de entrada de mulheres aos espaços concebidos como masculinos na estrutura do ritual festivo. Algumas congadeiras se tornaram instrumentistas e puxadoras dos versos que abrem cada música das festividades. Isso fica notório a partir da visualização da convivência de homens e mulheres nos mesmos espaços durante as festas, o que, segundo as próprias congadeiras, muda seus papéis nos rituais, quando elas passam a não se sentirem mais constrangidas na entrada ou circulação em nenhum dos espaços cerimoniais. Conforme apontado por elas, não se deve pensar, porém, que tudo isso tenha sido realizado de forma tranquila. Elas tiveram que provar muitas vezes que eram tão boas como os homens para tocar os instrumentos do grupo e para “inventar novas músicas”.

Os apontamentos realizados acima tratam de alguns poucos exemplos que situam questões bastante localizadas dentro de uma etnogeografia que possui uma diversidade muito maior de fatos que corroborariam com o sentido de heterotopias realizadas pelas mulheres congadeiras. Esse dimensionamento da questão se torna importante, porém, para dar pistas de que em ambos os grupos acompanhados a confecção de novas posições de sujeito, com positivação de identidades de mulheres, envolve também o acesso a espaços portadores de densidade. O que fica notório é que a recontextualização de um significado do feminino em relação ao masculino nos grupos estudados esteve completamente relacionada com uma mudança de espaços. Vale ressaltar, porém, que o que isto indica não é que os espaços apropriados e produzidos para positivação da identidade das mulheres negras devem ser semelhantes ou ter por referencial os espaços masculinos. O sentido de apropriação dos espaços de legitimidade identitária tem a ver mais com a desestruturação de uma instância de poder que exclui de alguns corpos o status de positividade do que com uma ação combativa que busca destituir outro sujeito do poder para que este lugar seja ocupado. Trata-se, pois, mais de decompor lógicas binárias de relações do que buscar restituir um espaço de poder marcadamente excludente.

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Retomando o debate mais geral sobre o que Foucault (2009[1966]) define como espaços outros, é necessário registrar que o autor aponta diversos exemplos de espaços que se constituem como heterotopias. As bibliotecas e os museus - como espaços que tudo acumulam, que se constituem num arquivo geral de diversos tempos e espaços e que aglomeram simultaneamente gostos diversos e antepostos – seriam, para o autor, as heterotopias próprias de nossa época. Interessante notar que dentre as exemplificações dadas pelo autor de espaços que se constituem em heterotopias há uma série deles que coincide com aqueles que são apontados como sendo formas de ficção política pelas teóricas feministas. É o caso do teatro e do cinema, espaços que justapõem uma série de cenas onde os sujeitos podem se olhar refletidos e se ver de alguma forma presentes num lugar em que estão de certa maneira ausentes. Nessa heterotopia e nesta ficção política em que se constituem teatro e cinema, os sujeitos podem também ser interpelados pelo conjunto de imagens e discursos que estes veículos colocam em cena, se alterando e se refazendo neste processo.

Foucault chega a ponderar ainda, em algumas pequenas passagens, a respeito da existência das heterotopias da festa. Para o autor, estas heterotopias seriam aquelas que estão relacionadas com o tempo de uma maneira não eterna, mas crônica. As heterotopias da festa seriam aquelas que se instituem por intervalos reduzidos de tempo, que, embora fugazes, são capazes de se constituir como contraespaços ante a espaços altamente institucionalizados que apenas reproduzem a ordem.

Por fim, a respeito das proposições realizadas por Foucault, é forçoso indicar que o autor, além de conjeturar sobre a existência da heterotopia, estabelece também o projeto de um saber capaz de descrever sistematicamente, estudar, analisar e constituir uma leitura destes ‘espaços diferenciais’ ou ‘espaços outros’ em que se constituem as heterotopias, espaços que funcionam como uma espécie de contestação às vezes mística e às vezes real dos espaços institucionalizados em que vivemos (FOUCAULT, 2001[1967]). Trata-se da “heterotopologia”. Acompanhemos a reflexão do autor sobre este seu projeto intelectual.

Eu sonho com uma ciência – eu digo bem uma ciência – que terá por objeto estes espaços diferentes, estes outros lugares, estas contestações míticas e reais do espaço onde vivemos. Esta ciência não estudará as utopias, porque é necessário reservar este nome àquilo que não tem verdadeiramente lugar algum, mas as hétero-topias, os espaços absolutamente outros; e inevitavelmente, a ciência em questão se chamaria, ela será chamada, ela já se chama ‘heterotopologia’. (FOUCAULT, 2009[1966], tradução minha).

Pela discussão realizada podemos estabelecer diversas aproximações entre a ficção política e as heterotopias, que em conjunto nos auxiliam na problematização da ideia de lugar festivo e na análise das corporeidades congadeiras. Tanto a ficção política quanto a heterotopia possuem imbricações com o movimento, a mudança, o caráter contingencial dos processos espaciais e da realidade corpórea dos sujeitos. Ambas conjeturam também sobre as possibilidades de abertura, fechamento e penetrabilidade que tanto o espaço quanto os corpos possuem. Tomando de empréstimo a reflexão de Daniel Defert (2009[1997]) sobre a ideia de ‘espaços outros’ em Foucault, acredito poder sugerir que o lugar festivo se comporta como uma instância de ritualização de clivagens, limiares, desvios e localizações. Neste processo, congadeiros e congadeiras elaboram, a partir de suas corporeidades, processos de ficção política que, se espacializando sob a forma de heterotopias, instituem um lugar festivo onde podem ensaiar suas possibilidades de se constituir como sujeitos participantes de forma não subalterna na estrutura social brasileira. Na mesma medida, embora de maneiras diferenciadas, mulheres congadeiras também fazem uso de tais heterotopias para, a partir de elaborações de corporeidades festivas, reconfigurarem os significados de seus corpos e de seus lugares em determinadas geometrias de poder.

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Entre dramas e tramas: os lugares festivos do Congado mineiro

Os corpos negros em movimento pelos espaços das cidades mineiras reavivam temporalidades e espacialidades constituídas a partir do encontro da trajetória de povos com distintos projetos de vida, valores religiosos, pretensões econômicas e experiências estéticas. Provenientes de diferentes geografias, esses povos se reconstruíram em terras do Novo Mundo ao mesmo tempo em que construíram novas direções para esse território em reconstituição. Povos africanos, ibéricos e indígenas, ao se tensionarem, ensejaram a história do Brasil. Em função disso, seja na rua das pequenas ou das grandes cidades, nos vilarejos ou nas metrópoles de Minas Gerais, na contemporaneidade festejos étnico-religiosos teatralizam ritualisticamente diferentes origens e trajetórias. Ao instituir estes lugares festivos, remanescentes desses povos recriam também biografias espaciais, que permanentemente lembram que o regozijo e a alegria marcantes dos cultos festejam, na verdade, a decomposição da realidade instaurada para refazê-la em novos moldes.

É este o caso dos grupos de Congado com os quais estabeleci encontros. Nas vivências que comungamos, pude mais proximamente conhecer suas composições espaciais que, organizadas por corpos festejantes, dão vida e concretude a projetos políticos de reconhecimento cultural, simbólico e social à trajetória de um segmento populacional historicamente submetido por outros. É assim que, a partir da etnogeografia, busquei destacar as maneiras como os corpos dos congadeiros e congadeiras, nos momentos festivos, assumem a condição de símbolos, que entram em ação para criar reações envolvidas no contraprojeto de reestruturar os mecanismos repressores responsáveis por delimitar rigidamente as oportunidades de vida dos negros e negras brasileiros, recorrentemente concebidos como povos portadores de uma “frágil humanidade” e detentores de espaços que não possuem nem densidade nem importância.

Nesse sentido, busquei caminhar por vieses que conduzissem ao apontamento das possibilidades da criação de novas realidades corpóreas para os sujeitos a partir da reconfiguração de seus lugares. A análise empreendida concebeu, então, que os sujeitos são portadores de agência, que apesar de estarem inseridos em estruturas com eficazes mecanismos de repressão, normatividade e assujeitamento, possuem também possibilidade de serem produtores de si e de estarem num permanente devir. A reflexão de Tânia Navarro-Swain a respeito das heterotopias feministas e das possibilidades da recriação de si e dos seus espaços pelos próprios sujeitos condensa bem esta ideia que sustentei:

O que importa, sobretudo, nesta criação constante de mim, é a quebra contínua do assujeitamento às representações do “eu”. A re-citação das normas e estereótipos aqui é invertida: em lugar de sofrê-la, ao re-criar os moldes e as imagens ancoradas no social, eu invento novos mundos, canto estrofes desconhecidas, escapo à pesada materialidade que me vem do exterior e quer me fixar; escapo assim, também das emboscadas montadas por mim mesma, nas quais me deixo enclausurar. O espaço de “mim” é a trajetória que instituo e me carrega em pontilhados, onde cada momento é diferente do outro e tem a duração de um suspiro. (NAVARRO-SWAIN, 2003, p. 10)

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Acredito que a ideia exposta pela autora é aquela que também é expressa em todos os momentos da festa, ao ser veiculada por seus elementos rituais que insistem na desconstrução das condições subalternas tanto do sujeito negro quanto das mulheres que compõem os grupos. Fato é, porém, que, apesar de toda a eficácia da festa na desconstrução das posições subalternas destes sujeitos e da produção de reversões simbólicas, que se perpetuam mesmo depois de encerrados os festejos, os negros e as negras das realidades analisadas continuam ocupando condições subordinadas dentro da cruel estrutura social e racial brasileira. O aspecto que quis chamar atenção na pesquisa foi, entretanto, que esforços para construção de mais fissuras nesta estrutura têm sido empreendidos. Seria fantasioso colocar um ponto final neste texto sugerindo que o Congado já conseguiu atingir um status de total importância dentro dos contextos analisados a ponto de reverter absolutamente a posição desprivilegiada do negro ou subalterna das mulheres. O que busquei ressaltar de fato foi que, nestes contextos, representações inesperadas do “humano” e, portanto, novas imagens “do negro”, “da mulher” e “das mulheres negras” têm sido produzidas a partir do apontamento dos descontentamentos destes sujeitos com os processos de exclusão, submissão e abjeção a que têm sido impelidos há séculos. Seria incorreto não ressaltar, porém, todas as “batalhas” já conquistadas por estes sujeitos, “pelejas” que atestam a eficácia dos lugares festivos do Congado na construção de espaços outros de produção de realidades gendradas e matizadas pela negritude. O que a convivência com os grupos me fez vislumbrar foi, portanto, que muitos são os motivos para se acreditar na continuidade da festa como elemento de ficção política e de heterotopias. Mais do que uma pesquisa de antiestrutura, gostaria de terminar este texto salientando que senti esta investigação como um trabalho de esperança.


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