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O conceito de lugar no processo-projeto patrimonial negro-brasileiro

Geny Ferreira Guimarães

Introdução

Este artigo apresenta algumas reflexões acerca do conceito de lugar, das possibilidades de relacioná-lo com a discussão patrimonial brasileira e relações étnico-raciais. No seu desenvolvimento, a princípio, foi traçada uma revisão conceitual de lugar por meio das perspectivas de Gomes (2012, 2013), Souza (2013), Oslender (2002) Ferreira (2000) e Massey (2001, 2007). Entendemos que para pensar a construção patrimonial brasileira necessitamos relacionar o seu processo de estruturação nacional em paralelo com o projeto de construção de identidade e nação brasileira. Neste caso, torna-se quase impossível não sustentar uma reflexão geográfica desvinculada do conceito e lugar. O artigo segue construindo a relação entre lugar, patrimônio e lugar e racismo. Importante salientar que o ponto de partida para as reflexões neste artigo é o recente trabalho de Guimarães (2015), tese de doutorado, cujo foco foi discutir o processo-projeto patrimonial na cidade do Rio de Janeiro a partir do ponto do Cais do Valongo. O que foi trazido da tese para este artigo foi especificamente um repensar a importância e a característica que o conceito de lugar apresenta na discussão de patrimônios negros (assunto encontrado na tese mencionada em seu capítulo 3 - Geografia, Patrimônio e Racismo, no subitem denominado, O lugar do negro e o negro como lugar).

Pensando e repensando o conceito de lugar

Neste ponto inicial do artigo apresentamos algumas concepções conceituais que nos ajudam a apreender determinados fenômenos.

Podemos afirmar que lugar encontra-se no grupo dos conceitos fundamentais básicos dos estudos e pesquisas geográficas, logo, é relevante pensá-lo e repensá-lo, mas, neste momento, será feito por meio de uma breve revisão bibliográfica.

Para Souza (2013), este conceito possui numerosas acepções que podem, desde significar uma localidade qualquer, até referir-se a uma área com limites definidos ou indefinidos, ocupada por pessoas e coisas. Afirma ainda que lugar é mais do que território e quase espaço em termos de relevância para a Geografia.

Um texto curto e bem explicativo foi o escrito por Ferreira (2000) onde encontramos uma revisão bibliográfica bem interessante. O autor apresenta que inicialmente o conceito de lugar era pouco trabalhado na Geografia, que alguns geógrafos o utilizavam, mas sem muita ênfase e aprofundamento no seu significado. Contudo, esse conceito vem tomando força e importância, principalmente para as discussões contemporâneas e para as abordagens de Geografia Humana e Cultural que envolvem identidades. Também Holzer (2003) apresenta uma composição interessante para se pensar o conceito de lugar na Geografia Cultural e dentro de uma abordagem fenomenológica, assim o objetivo de seu texto é enfatizar a obra de Yi Fu Tuan.

Para Gomes (2013) um ponto é um lugar, mesmo que este não seja o foco central da sua discussão, mas, a partir desta sua afirmação, podemos na cartografia como ocupante de uma posição de destaque nas suas reflexões e sobre este assunto. A localização é relevante e pode contribuir para qualificar o lugar diante de seus elementos constitutivos, o que foi uma premissa central nos estudos culturais desde Carl Sauer e que vem sendo modificado e ampliado ao longo do tempo. Mesmo assim, esta perspectiva nos remete à discussão de escala de Castro (2000) que aponta ser intrínseca nas análises espaciais o direcionar de um recorte que facilite a visibilidade do fenômeno. Voltando a Gomes (2012, 2013), este autor se refere a lugar a partir do olhar geográfico. Neste caso, atribuindo-lhe subjetividade e relacionando-o, de forma inseparável, com outros conceitos geográficos, principalmente paisagem. A questão da subjetividade para este artigo é essencial, pois esta perspectiva é vista de forma marginal nas ciências, mas é tão real quanto à objetividade. Principalmente nas questões culturais contemporâneas, nas quais a subjetividade é central. A imparcialidade e neutralidade científica já vêm sendo questionadas há tempos por ser, a subjetividade, algo intrínseco no ser humano. Portanto,

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[q]uando empregamos comumente a idéia de “ponto de vista”, em geral, estamos nos referindo à opinião. Raramente consideramos o quanto essa expressão é geográfica uma vez que possui um inequívoco comprometimento espacial. Um ponto de vista é, antes de tudo, uma posição (no espaço). Dessa posição “vemos” algo e, por isso, o acesso à visualidade é dependente da localização e da posição do observador. (GOMES, 2012, p.6)

A citação acima de Gomes (2012) nos remete a outras perspectivas, como, por exemplo, pensar o que Gregory (1994) apresenta a perspectiva de Imaginações Geográficas (também título de um de seus livros) cuja proposta é vincular estudos geográficos com Antropologia e Cartografia, em busca de entender o perfil e papel da sociedade na Geografia Humana. Ideia que perpassa cultura e localização. Para isso, propõe uma trajetória no que chama de “mundo como exibição” (world-as-exhibition) (GREGORY, 1994, p.14) e justamente esse ponto de vista proposto pelo autor é que outras áreas do conhecimento vão sendo aproximadas da Geografia, partindo da imaginação até chegar no “espaço profundo” (deep space). Também, a perspectiva da metodologia visual de Rose (2002), cujo foco é o perceptível na paisagem, no olhar, no visual, mesmo que seja o estático de uma fotografia, pois, a composição de elementos também se dá pela interpretação de quem analisa a paisagem.

Na abordagem fenomenológica da obra de Tuan (1983), o lugar relaciona-se mais diretamente com a dimensão cultural-simbólica do que com poder (o que não o ausenta do processo de reflexões e construção do conceito em questão). “O lugar está para a dimensão cultural-simbólica assim como o território está para a dimensão política” (SOUZA, 2013, p.115). Para Tuan (1983), elementos como postura, relações interpessoais (próximas ou distantes) e o corpo fazem parte da discussão de lugar.

Por outro lado, Oslender (2002) atribui política e poder/saber à discussão de espaço e lugar, principalmente no caso do segundo conceito por estar diretamente relacionado a uma posição específica, o que nos lembra da discussão sobre um ponto apresentada por Gomes (2012). Ulrich Oslender se dedica bastante aos estudos da Geografia dos Movimentos Sociais e das resistências, dentre outros assuntos, e estende suas reflexões na direção de um “sentido de lugar” que perpassa as características e qualidades físico-materiais de uma localização geográfica capazes de somar aos modos de vida ou relações dos indivíduos/comunidades, os lugares por meio da experiência, memória e intenção.

Massey (2001, 2007) apresenta lugar por uma vertente da Geografia Contemporânea que não apenas amplia a relação entre lugar e espaço proposta por Tuan (1983), mas também associando questões emergentes do mundo político-econômico globalizado com questões culturais, principalmente identidades. Daí o lugar das interseccionalidades (gênero, sexualidade, étnico-raciais etc.).

Diante dessas e tantas outras possibilidades/abordagens para se pensar o lugar, Ferreira (2000) apresenta que:

[o] conceito de lugar, considerado por muito tempo como um dos mais problemáticos da Geografia, tem se destacado, recentemente, como uma das chaves para a compreensão das tensões do mundo contemporâneo. Articulando, entre outras, as questões relativas a globalização versus individualismo, às visões de tendência marxista versus fenomenológica ou à homogeneização do ambiente versus sua capacidade de singularização, o lugar tem se apresentado como um conceito capaz de ampliar as possibilidades de entendimento de um mundo que se fragmenta e se unifica em velocidades cada vez maiores. (FERREIRA, 2000, p.65).

Ainda, Ferreira (2000) apresenta o conceito de lugar determinando três grupos ou possibilidades de análise, ou seja, divide de três maneiras a abordagem ou pensar a construção do lugar: (a) pela fenomenologia na qual são atribuídas as vivências e experiências no processo; (b) por meio da Geografia Radical estabelecendo uma relação com a globalização, mas ainda percebendo o lugar como resistências locais, também associando a ele questões que emergem nas discussões geográficas contemporâneas da Geografia Crítica e Cultural enfatizando as diferenças; (c) por fim, por uma perspectiva cultural que estabelece uma certa visão de integração das diferenças.

Dentro da perspectiva de pensar a trajetória do conceito de lugar, mas antes até, e a princípio, pensar o fenômeno lugar no momento contemporâneo como globalizado, diverso e plural. Então, cabe um comparativo à concepção de Mckittrick (2006, p.xii) ao dizer que “questões negras são questões espaciais” e afirmar que lugares negros importam nas pesquisas geográficas. Ainda dizer que, como pontos são lugares, corpos na superfície da Terra são pontos, logo, são lugares e para sociedade tanto os corpos como os lugares negros foram destituídos de espacialidade e historicidade afirmativa e valorizada.

Lugar e Patrimônio

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Podemos direcionar e delimitar o conceito de lugar na construção da noção processo-projeto patrimonial brasileiro. Esta categoria em construção pode ser pensada a partir da proposta de Oliveira (2009) que envolve dois processos ou dinâmicas de ações: a de preservação patrimonial e o de projeto em torno de legislações em paralelo com um institucional. Também pensar a partir de Guimarães (2015) que apresenta um somatório dessas ações (processo) com as diretrizes de construção de nação e identidades brasileiras (projeto). Para a autora, o processo de seleção patrimonial segue o seu curso, mas em conjunto com um projeto que se encarrega de estabelecer uma distinção hierárquica entre as heranças europeias e africanas. Assim, nas seleções e constituições de patrimônios ocorre uma supervalorização para um grupo e uma desvalorização para outros grupos. As heranças africanas permanecem sendo subjugadas pelo silenciamento, apagamento e apropriações de suas marcas negras. Neste caso, os lugares são bem delimitados em erudito para patrimônios de herança europeia e popular ou folclórica para africana, na verticalidade e não horizontalidade, onde a primeira é o topo supervalorizado e a segunda a base desvalorizada.

Diante da história de construção patrimonial brasileira é possível refletir que existiu um projeto em paralelo ao processo de seleção e estabelecimento dos patrimônios nacionais no Brasil discutido por Oliveira (2009) e Guimarães (2015) que ambos denominam de processo-projeto patrimonial brasileiro.

Podemos partir de uma reflexão sobre a cidade do Rio de Janeiro para exemplificar lugar e os primórdios do processo-projeto patrimonial brasileiro porque quando surgem as primeiras preocupações patrimoniais no país, legislações sobre o assunto, esta cidade era a capital do país, logo, a intenção dos dirigentes da nação era torná-la um ponto, um lugar-referência, um lugar-modelar algo que denotasse orgulho nacional e boa apresentação internacional e no caso de ambos, o orgulho e a boa apresentação possuíam identidades: branca, masculina, europeia e hétero. Essa seria a interseccionalidade escolhida para representar o Brasil na Europa. Seguindo essa linha seriam os patrimônios, majoritariamente representando homens, brancos, europeus e héteros como heróis nacionais.

O processo estabeleceu uma legislação (não exclusivamente sobre patrimônio, mas extensiva à cultura no Brasil), além da catalogação e seleção de patrimônios. O projeto foi edificado pela construção de nação e identidade brasileira por parte da elite, fato que tem seu início no final do século XIX e segue pela primeira metade do século XX. Encontramos caracterização concreta do projeto na remodelação (final do século XIX) e modernização (início do século XX) da cidade do Rio de Janeiro (capital do Brasil na época) para que o país pudesse se orgulhar de sua capital nacional, logo, a mesma deveria se aproximar de outras capitais de países considerados modernos e civilizados. Então o slogan, “Rio civiliza-se” se tornou um lema, um objetivo e parte de um projeto. As remodelações no final do século XIX, pelas quais a cidade passou refez edificações, praças, ruas e bairros centrais seguindo estilos de arquitetura europeia. O objetivo era afastar a paisagem carioca que representava o país no mundo, de uma herança portuguesa, colonial e escravizada para aproximá-la do que poderia representar um orgulho nacional e um cartão de apresentação mundial, mas, de acordo com uma aprovação europeia considerada então, não apenas o centro do mundo, também, civilizatório. Não existiriam problemas para um projeto como esse se não estivesse imbuído de eugenia e racismos. Assim,

[a] intenção era a de tornar o Rio uma “Europa possível”, e para isso era necessário esconder ou mesmo destruir o que significava atraso ou motivo de vergonha aos olhos das nossas elites. Vielas escuras e esburacadas, epidemias, becos mal afamados, cortiços, povo, pobreza destoavam visivelmente do modelo civilizatório sonhado (VELLOSO, 1988, p.11).

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Então, o lugar Rio de Janeiro precisava mudar a sua paisagem, identidade e pertença. A existência de uma dimensão cultural-simbólica apontada por Tuan (1983) para o lugar Rio de Janeiro deveria ser homogeneizado e ao contrário do que Ferreira (2000) apresenta. As diferenças não importariam, afinal, deveriam ser eliminadas. Para Barreto (1915), o Rio de Janeiro, em comparação à capital Uruguaia ou a Argentina que seriam cópias dos modelos citadinos europeus, se tornava obcecado por mudanças, tanto que:

A obsessão de Buenos Aires sempre nos perturbou o julgamento das coisas.

A grande cidade do Prata tem um milhão de habitantes; a capital argentina tem longas ruas retas; a capital argentina não tem pretos; portanto, meus senhores, o Rio de Janeiro, cortado de montanhas, deve ter largas ruas retas; o Rio de Janeiro, num país de três ou quatro grandes cidades, precisa ter um milhão; o Rio de Janeiro, capital de um país que recebeu durante quase três séculos milhões de pretos, não deve ter pretos. [...] O Rio civiliza-se. (BARRETO, 1915, s./p.).

Daí vários acontecimentos marcam essa fase, como construções do Passeio Público, de prédios como a Biblioteca Nacional, o Museu de Belas Artes, o Teatro Municipal, aberturas de ruas largas e boulevares etc.

Seguem a criação de uma legislação patrimonial na década de 1930 e a criação do que gerou o atual Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), para esta instituição, a partir do momento do reconhecimento de um patrimônio, a sua preservação se dá por meio de uma política de tombamentos (algo bastante comum no Brasil) e que para Andrade Junior (2011) se confunde com a própria criação do IPHAN. Neste caso, um tombamento é entendido como o único instrumento legal voltado à preservação do patrimônio edificado, o que para ele é um equívoco. Não deixa de ser uma instrumentação importante devido a suas implicações no direito de propriedade, mas também porque,

[...] através da análise do acervo de bens tombados pelo IPHAN e pelos demais órgãos voltados à preservação do patrimônio cultural (sejam eles municipais, estaduais ou mesmo institucionais), é possível identificar as continuidades e rupturas na valoração dos diversos períodos, tipologias e estilos arquitetônicos, trazendo à luz os preconceitos e os processos de revalorização de determinadas categorias de monumentos. (ANDRADE JUNIOR, 2011, p.146).

Além dos preconceitos quanto a alguns patrimônios e monumentos, também há exclusão. Algo bastante perceptível quanto aos patrimônios negros nos grandes centros urbanos do Brasil, ainda mais notado nas antigas capitais coloniais (Rio de Janeiro e Salvador) por terem sido cidades quase que exclusivamente negras durante a maior parte do período colonial.

No Brasil, um patrimônio é reconhecido oficialmente quando é tombado. Os tombamentos não possuem os mesmos valores entre si, para alguns são atribuídas pouca importância e nenhum, ou quase nenhum reconhecimento. O que acontece com os patrimônios de herança africana. Por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro, dentre os 51 bens, apenas a Pedra do Sal, o Cais do Valongo e o Quilombo Urbano de Cantagalo são tombados e registrados como oficialmente de herança negro-africana:

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Recentemente, patrimônios negros são encontrados em maior número no campo dos imateriais, intangíveis ou simbólicos, ou melhor, são atribuídos a eles esta denominação. Contudo, permanece o questionamento sobre o fato de que em um país multicultural como o Brasil onde estão todas as outras heranças patrimoniais, as que representam a totalidade cultural do país? Por que apenas uma parcela é contemplada? Logo, torna-se relevante repensar as negras memórias, assim como as participações, construções e a própria existência negra nas discussões patrimoniais, na legislação, nos espaços onde se materializam e nos bens materiais que geram. Ainda, a maior parte dos patrimônios negros é conduzida à parcela intangível do patrimonial nacional, porém, acreditarmos que não existe imaterialidade sem materialidade.

Menezes (2007) discute a “materialidade da imaterialidade”. Acredita que não é possível uma dissociação entre patrimônios materiais e imateriais. Segundo Martins (2012):

[p]odemo-nos valer da análise de Ulpiano Bezerra de Menezes sobre a questão da imaterialidade dos bens: não há como dissociar a materialidade da imaterialidade, na medida em que os bens materiais só são valorizados porque a eles é atribuído um valor imaterial; assim, uma cadeira somente é considerada um bem cultural se apresenta atributos artísticos (barroco, neoclássico, art-nouveau, etc.) que representam o modo de produção característico de grupos sociais ambientados em certo momento histórico; se este valor imaterial não estivesse subentendido, uma cadeira jamais seria merecedora de preservação como bem cultural. Do mesmo modo, a cidade não é apenas um conjunto de objetos, mas um conjunto de valores imateriais agregados a esses objetos, que resulta em valores consolidados no imaginário coletivo (no caso de Brasília, a ideia de modernidade, arquitetônica e política). São esses valores que definem o seu significado como patrimônio da coletividade. (MARTINS, 2012 p.4).

Menezes (2007) discute a mercantilização dos museus e a elitização patrimonial material em detrimento de uma popularização do imaterial que gerou dicotomias permanentes mantidas pelos órgãos de legislação e normatização dos patrimônios no país. Tanto que,

[d]esde Mário de Andrade, houve pessoas de grande descortino que trabalharam para a normatização dessa questão. O patrimônio de pedra e cal, queira-se ou não, sempre esteve vinculado às elites, enquanto o patrimônio intangível se associa às classes populares. Então, foi uma espécie de abertura. Mas a dicotomia em si me parece problemática. No campo do IPHAN, a política desenvolvida com relação ao patrimônio imaterial é muito séria e cautelosa. Mas pode se criar, a partir dessa dicotomia, uma visão inadequada tanto da dimensão material quanto da imaterial do patrimônio. (MENEZES, 2007, s/p.).

Desde a década de 1930 e, principalmente, a partir da participação de Mário de Andrade, que se destacou e esteve à frente deste processo de construção de políticas públicas, é que aumentaram as discussões sobre a dicotomia criada para patrimônios com a divisão material e imaterial com o seu trabalho no Departamento de Cultura de São Paulo e com a criação do Anteprojeto que inspira a primeira lei patrimonial no país. Discussão que ficou um tanto adormecida durante os anos de 1950 a 1970, obviamente também durante a ditadura, mas que retorna nos finais dos anos de 1980 e 1990 e principalmente, retorna acirrada após o ano de 2000.

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Finalizando, é relevante a associação entre lugar e patrimônio, pois os lugares quando analisados pela perspectiva da Geografia Cultural Contemporânea estão associados às questões de localização, conforme os primeiros estudos culturais em Geografia, mas não podem estar dissociados de questões políticas e econômicas. As construções de identidades são questões políticas. Sejam as identidades que surgem enquanto resistências de opressões sejam as identidades impostas por grupos hegemônicos que se encontram no poder. Assim, o lugar que os patrimônios podem ter em uma sociedade dependerá do grupo que estabelece as políticas culturais e seu valor econômico de acordo com o que este mesmo grupo determinar. Em uma sociedade hierárquica, tudo é passível de ser hierarquizado, até mesmo a cultura, seus patrimônios e suas heranças.

O negro como lugar-memória e o lugar-social do negro

Podemos afirmar que as heranças negro-africanas não foram perdidas nem no espaço, muito menos no tempo na construção da nação brasileira, mesmo diante de toda a opressão e violência da escravidão, do sistema de colonização ou no processo de invizibilização, apropriações e apagamentos criados no projeto de embranquecimento da nação brasileira imerso em um sistema eugênico e racista, até porque “a gente combinamos de não morrer” (EVARISTO, 2014, p.99).

Para relacionarmos negro e lugar podemos partir de uma primeira reflexão, a do negro como lugar de memória. Se pegarmos o exemplo do romance de Evaristo (2003), Ponciá Vicêncio, sobre a personagem principal que intitula a obra podemos interpretar que “[...] o elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus, não se perderia jamais”. Então, mesmo diante de toda a opressão apresentada no parágrafo acima, a memória se transforma em elemento de resistência e mantém as lembranças de pessoas, histórias e lugares africanos pela diáspora afora. Assim, podemos afirmar que a diáspora africana e toda a sua produção patrimonial abriga vidas negras e estas “[...] são necessariamente geográficas, mas também oprimidas pelos discursos que apagam e desespacializam seu senso de lugar” (MCKITTRICK, 2006, p.xiii).

A memória social representa um importante campo de estudos, segundo Abreu (2005, p.30) este termo foi “[...] visitado por pesquisadores das mais diversas procedências e que fazem uso de múltiplos referenciais teóricos”, já para Gondar (2005, p.7) “[...] se trata de um conceito complexo, inacabado, em permanente processo de construção” que se desenvolve por reflexões inter e transdisciplinares, questões éticas, morais e de representação”. Ainda, para esta autora, a memória social representa um conjunto de diversos assuntos transdisciplinares e adjetivações que variam de acordo com a área de conhecimento que se apropriar para o seu uso ou estudo, como, por exemplo, a memória psicossocial, histórica, social, geográfica etc. Para Gondar (2005, p.21) “[h]á sempre uma concepção de memória social aplicada na escolha do que conservar e do que interrogar” e segundo Guimarães (2015, p.242) “[...] as negras memórias são entendidas como a conservação das heranças negro-africanas na diáspora e no caso, especificamente no Brasil, a interrogação refere-se à origem ou razão de não lhes serem ofertadas o devido valor sócio-cultural”.

Porém, existe certa vulnerabilidade imposta às negras memórias, aos seus lugares de construção e representação e aos meios de resistências para se perpetuarem, imposições de marginalidades e desvalorizações que ao longo do tempo geram para as populações negras:

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[...] toda sorte de limitações, e, por outro lado, incapaz de a elas conformar-se, desde o início dos tempos, luta para sobreviver, não só fisicamente, mas também espiritualmente, cercando de perpetuar-se em seu mundo circunstante, deixando vestígios, lembranças de sua passagem, heranças de seus feitos, legados de suas aquisições, materiais e intelectiva. (CAMARGO, 2009, p.13)

Dentro desta perspectiva as negras memórias são patrimônios de povos cuja

[...] “limitações” e “luta para sobreviver” serviram-lhes como invólucro de uma das únicas bagagens que levaram na viagem do violento processo diaspórico. Pelo fato de representarem o “migrante nu” (GLISSANT, 2005) e entre o seu lugar-passado de origem e o lugar-presente de destino perpetuaram as suas culturas (ainda que diferenciadas em forma e conteúdo), longe e distante de suas origens. A outra bagagem que levam, além da memória. São seus corpos que Ratts (2007) define como “corpo-documento: identidade” (GUIMARÃES, 2015, p.243).

Ratts (2007), sobre a obra de Beatriz Nascimento, apresenta que:

[a]s mulheres e homens africanos viveram uma travessia de separação da ‘terra de origem’, a África. Nas Américas, passaram por outros deslocamentos como a fuga para os quilombos e a migração do campo para a cidade ou para os grandes centros urbanos. Para Beatriz Nascimento, o principal documento dessas travessias, forçadas ou não, é o corpo. Não somente o corpo como aparência – cor da pele, textura do cabelo, feições do rosto – pelas quais negras e negros são identificados e discriminados. (RATTS, 2007, p.68).

Ainda, Hooks (2008) sobre o black spirituals (músicas criadas pelos negros escravizados dos Estados Unidos como meio de resistência), menciona que:

[q]uando os escravos cantavam ‘nenhum corpo conhece o problema que eu vejo’, seu uso da expressão ‘nenhum corpo’ adicionava um significado mais rico do que se eles tivessem usado a expressão ‘ninguém’, porque era o corpo do escravo que era o local concreto de sofrimento e ao mesmo tempo que o povo negro liberto cantava o spiritual, eles não mudavam a língua, a estrutura da sentença, de nossos ancestrais. Para cada uso incorreto de palavras, para cada colocação incorreta das palavras, era um espírito de rebelião que reivindicava a língua como um local de resistência. Usar o inglês de uma maneira que rompeu o uso e o significado padrões, de tal modo que o povo branco poderia frequentemente não entender a fala negra, fez do inglês muito mais do que a língua do opressor. (HOOKS, 2008, p.860)

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A leitura que podemos fazer do trecho acima de Bell Hooks (2008) é relacionar o continuum geográfico com reterritorialidades culturais ancestrais africanas que são capazes de carregar nas memórias de negras e negros, os saberes, e conhecimentos que permaneceram sob forma dos spirituals. A opressão da escravização de africanos conduz a geração de negras memórias que podem ser transformadas em “ações-resistências” e “lugares-resistências” (GUIMARÃES, 2014). Um lugar resistência pode ser comparado ao que Hooks (2008) denomina de “local concreto de sofrimento”.

Não podemos deixar de mencionar ainda o lugar do negro apresentado por intelectuais negros que o inserem dentro da perspectiva de afirmação do negro, de deslocamento do lugar discriminado para o valorizado.

Quando somadas, as negras memórias sociais com suas consequentes ações e lugares resistências (promovidos pela manutenção das memórias e sobrevivência dos grupos que mantêm tais lembranças) são geradas marcas negras no espaço geográfico que formam diferentes lugares e quando pensamos em termos de ancestralidade ou diáspora, podemos afirmar que tais memórias são geradoras de um patrimonial, lembradas no passar do tempo (seja pela oralidade ou registro impresso) e visível na paisagem.

E como pensar isso na contemporaneidade?

Com o advento de um aumento de discussões sobre a globalização podemos encontrar na obra de diversos autores(as) que a corporeidade é redescoberta nas indagações acadêmicas, assim o corpo é concebido como algo materialmente visível, palpável e concreto, diante de um universo difícil de ser apreendido. Dentro desta perspectiva, é possível arriscar o corpo negro como um lugar, um intermédio entre o mundo e o indivíduo, um meio da memória (onde as próprias memórias, as relações, as histórias estarão impressas). As marcas do passado que até então eram percebidas apenas no espaço, também estão localizadas nos corpos, assim o corpo pode ser entendido como um ponto, um lugar onde as negras memórias estarão presentes, também as resistências.

Assim, memórias e vivências se entrecruzam, o que pode ser representado em termos de africanidade pela circularidade. Neste sentido, Evaristo (2011) propõe as “escrevivências” apresentadas nos textos literários onde encontramos as experiências memoriais e as vividas. E que Dione Brand em algumas de suas obras e entrevistas ratifica ao tratar o seu corpo como um país, continente e lugar em algumas de suas obras literárias. Para Ratts (2011),

[...] uma proposição de que intelectuais negros têm um pensamento geográfico, com formação acadêmica ou não em Geografia, posto que problematizam temas como diáspora africana, efeitos da escravidão na formação territorial e étnica nacional, segregação espacial/racial e espaços negros. (RATTS, 2011, p.1).

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Dentro de uma mesma perspectiva apresentada por Mckittricy ao afirmar que “questões negras são questões espaciais” em passado histórico e no presente cotidiano, que formam espacialidades e lugares.

Numa direção parecida, o lugar pensado por Milton Santos envolve uma tríade: “individualidade, corporeidade e cidadania” (CIRQUEIRA, 2010).

Desta forma, podemos dizer que o conceito de lugar se adapta as discussões contemporâneas necessárias e emergentes da atualidade nas quais vários outros elementos são constituídos como lugares ou como parte deles, assim é o corpo, parte constituinte do espaço geográfico produzido ao longo do tempo e apresentado e a partir de construções sociais carregadas de simbolismos, representações e ideias.

Neste sentido é que o corpo pode ser lido espacialmente, geograficamente, acrescido às paisagens culturais expressas pela materialização das experiências vividas valorizando as representações ideológicas e considerando-as centrais em todo o processo de formação espacial. Para Milton Santos essa perspectiva pode constituir-se como método para se pensar o espaço geográfico e o corpo negro existir por meio da “tríade”: individualidade, corporeidade e cidadania (CIRQUEIRA, 2010). Assim, pensar o negro na sociedade, no espaço geográfico e nas relações raciais geradas espacialmente é propor que “[...] as relações raciais grafam o espaço, constituem-se no espaço e com o espaço. Revelar estas espacialidades é tarefa da geografia” (SANTOS, R. 2012, p.38).

O lugar do negro estabelecido historicamente e geograficamente como uma das ações dentro da estratégia para a destruição psicológica apontada de forma bem certeira por Fanon (2008). A sociedade, por meio do grupo hegemônico, estabeleceu o pior lugar para a população negra viver e conviver, assim se espelhar. Ramos (1995) menciona que:

[p]ovos brancos, graças a uma conjunção de fatores históricos e naturais que não vem ao caso examinar aqui, vieram a imperar no planeta e, em conseqüência, impuseram àqueles que dominam uma concepção do mundo feita à sua imagem e semelhança. Num país como o Brasil, colonizado por europeus, os valores mais prestigiados e, portanto, aceitos, são os do colonizador. Entre estes valores está o da brancura como símbolo do excelso, do sublime, do belo. Deus é concebido em branco e em branco são pensadas todas as perfeições. Na cor negra, ao contrário, está investida uma carga milenária de significados pejorativos. Em termos negros pensam-se todas as imperfeições. Se se reduzisse a axiologia do mundo ocidental a uma escala cromática, a cor negra representaria o pólo negativo. São infinitas as sugestões, nas mais sutis modalidades, que trabalham a consciência e a inconsciência do homem, desde a infância, no sentido de considerar, negativamente, a cor negra. O demônio, os espíritos maus, os entes humanos ou super-humanos, quando perversos, as criaturas e os bichos inferiores e malignos são, ordinariamente, representados em preto. Não têm conta as expressões correntes no comércio verbal em que se inculca no espírito humano a reserva contra a cor negra. "Destino negro", "lista negra", "câmbio negro", "missa negra", "alma negra", "sonho negro", "miséria negra", "caldo negro", "asa negra" e tantos outros ditos implicam sempre algo execrável. (RAMOS, A., 1995, p.241-242).

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A citação acima foi extraída do ensaio O negro desde dentro, de Alberto Guerreiro Ramos, escrito em 1954, por ocasião dos dez anos do Teatro Experimental do Negro. Em 1995 (obra póstume). Este autor se preocupava em apresentar propostas para o desenvolvimento da sociologia brasileira isenta de repetições de doutrinas europeias, do imperialismo estadunidense para a interpretação da organização da sociedade brasileira que, posteriormente, o autor vai denominar de “redução sociológica”, mas principalmente de perceber a diversidade racial da sociedade. Guerreiro Ramos se dedica a pensar a sociedade brasileira a partir do lugar do negro que seja diferente do imposto ou preestabelecido socialmente, nesta mesma direção é o trabalho realizado pelos vários movimentos negros brasileiros que apresenta tanto a resignificação da palavra negro, como também outra espacialidade para a população negra, na qual o ponto de partida é a visão do próprio negro de forma valorizada e reconhecida.

Santos, J. (1995) questiona o esquecimento acadêmico da vida e obra de Alberto Guerreiro Ramos, para ele, considerado um dos maiores sociólogos e pensadores da sociedade brasileira e atribui que a “[...] sociologia modernizante busca [...] descrever o lugar do negro na sociedade brasileira”, admite que “[...] descobriu que o negro ele próprio é um lugar de onde descrever o Brasil. Penso essa idéia – o negro como lugar – a mais original contribuição de Guerreiro Ramos à compreensão do dilema nacional”. (SANTOS, J., 1995, p.28).

A possibilidade de pensar o lugar do negro desconectado do pejorativo estipulado, de fora para dentro, em contraposição ao afirmativo “desde dentro” (RAMOS, A., 1995), ou seja, a partir do próprio negro, na direção do estabelecimento do negro como lugar. Podemos afirmar que:

Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Milton Santos, Beatriz Nascimento e Alberto Guerreiro Ramos foram intelectuais no Brasil que muito se dedicaram a construir subsídios para refletirmos negros(as) como lugar a partir das inscrições em seus corpos lidos pela sociedade como o pior lugar para se estar, ou o lugar da punição, do desejo, da luxúria, ou seja, o corpo negro. (GUIMARÃES, 2015, p.247)

Por uma perspectiva de mulher negra, Lélia Gonzalez (1982) expôs de criticamente as violências coloniais praticadas contra o corpo negro feminino que geraram a mestiçagem no Brasil e foi além, apresentou a possibilidade de se pensar e construir, a partir do poder da mulher negra, um lugar de destaque e referência feminina negra. Ou seja, pensar uma sociedade matriarcal, cujo ponto de partida é: mulheres negras (que em grande número cuidam da educação das crianças negras e brancas, por muitas vezes são as únicas provedoras da família, amparam o homem negro diante das opressões sociais, no Rio de Janeiro do passado e por meio da figura das “tias” baianas foram responsáveis pela manutenção da religiosidade e política etc.). Imagem que para Evaristo (1990, p.30) significa o “[...] [e]u fêmea-matriz. / Eu força-motriz. / Eu-mulher” que possui uma história de dor, mas de resistência e de esperança de mudanças, cujo fio condutor, o meio da oralidade, a voz, se faz presente na manutenção de memórias, de lugares de memórias:

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A voz de minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brandos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
Com rimas de sangue
           e
           fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(EVARISTO, 1990, p.32-33)

Abdias do Nascimento nos convida a pensar a partir do corpo negro na dramaturgia, nas artes, no teatro, também na política de governo, todos esses lugares por onde negros passam invizibilizados pelo todo social. Mas, que ele Abdias, se mostrou, se fez visto, se tornou referência de uma parcela da coletividade negra.

Beatriz Nascimento que nos remete a pensar na mulher negra acadêmica que por imposições de circulação de seu corpo negro de forma plena (mente, espírito, comportamento, intelectualidade, sexualidade etc.) é impedida de exercer a plenitude de suas pesquisas. Estudos que envolvem o ser, o existir de corpos negros na sociedade por meio de suas ancestralidades, suas vivências contemporâneas, seu existir diaspórico de migrante e de resistências quilombolas (rurais e urbanas) - a transmigração. O religare de seu presente com o seu passado-ORIgem, o Ori que ao mesmo tempo lembra e esquece,

O Ori reclama
           luz e calor

Gens repousam na ulterior
generosa fonte esquecida
Ori
      gens
doces felicidades estagnadas

Gens repousam na ulterior
generosa fonte esquecida

Assim Origens
alargando o ventre
alargando o ventre
livre liberdade
rasga o espanto
Volta

(ALVES, 1990, p.47)

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Uma origem negra, um corpo negro que é geográfico para Milton Santos, Katherine McKittrick, Alex Ratts, Diogo Cirqueira, dentre outros, que estudam o assunto. Mas, pensar também que este corpo negro vem sendo construído de forma pejorativa ao longo dos anos e fortemente pela mídia. Pereira e Gomes (2001) discutem o quanto este negro como lugar não é apresentável à mídia brasileira. Denominam “ardis da imagem” a exclusão de corpos negros de revistas, jornais, televisão etc.

Um lugar que pode ser entendido por um “entre lugar”, conforme Bhabha (1998) apresenta como exemplo para um “local da cultura” com suas “vidas na fronteira” entre mundos culturais tão diferentes e de corpos africanos construídos inseridos em uma sociedade brancocentrada inventora de mitos sobre a África. Este autor discute o afastamento das singularidades que envolvem “[...] raça, gênero, geração, local institucional, localidade geopolítica, orientação sexual – que habitam qualquer pretensão à identidade no mundo moderno”. (BHABHA, 1998, p.19-20). Tais singularidades são geradoras de “entre-lugares”, “signos de identidade” que promovem as “emergências dos interstícios” (BHABHA, 1998, p.20) cujos indivíduos carregam a todo lugar que vão. Relembrando Frantz Fanon (2008): um negro o será em qualquer lugar que esteja e carregará consigo a “memória” de “migrante nu” (GLISSANT, 1996) e o “corpo-documento: identidade [...] pelos quais negros e negras são identificados e discriminados” (RATTS, 2007, p.68) e que Beatriz Nascimento localiza,

[e]ntre luzes e som, só encontro, meu corpo, a ti. Velho companheiro das ilusões de caçar a fera. Corpo de repente aprisionado pelo destino dos homens de fora. Corpo/mapa de um país longínquo que busca outras fronteiras, que limitam a conquista de mim. Quilombo mítico que me faça conteúdo da sombra das palavras. Contornos irrecuperáveis que minhas mãos tentam alcançar. (NASCIMENTO, 1997, apud RATTS, 2007, p.68).

Corpo negro que “[...] procura e constrói lugares de referência transitórios ou duradouros” (RATTS, 2007, p.67), que pode ser considerado um lugar, mesmo assim, não é historicamente representado nos monumentos, bustos, praças, memoriais etc., como corpos brancos porque socialmente estão associados à escravização (que a todo custo é silenciada no Brasil) e a toda a construção estereotipada e pejorativa que o racismo gera.

Patrimônio e racismo

A marginalização da população negra foi algo construído socialmente, mundialmente, não representa uma herança africana porque está atrelada a dois grandes problemas: o da desigualdade socioeconômica e o da desigualdade racial.

No Brasil, o patrimonial foi escolhido pela elite hegemônica dominante; por interesses de órgãos oficiais e por uma pequena parcela da população que não se reconhece ou identifica como negros, logo, seus patrimônios foram selecionados por sua tradição luso-europeia. Dificilmente elementos de origem africana são reconhecidos e selecionados como patrimônios históricos nacionais para grandes cidades e/ou capitais metropolitanas brasileiras. Os poucos reconhecidos patrimônios de herança africana são excluídos das políticas públicas efetivas para sua preservação e são direcionados a uma parte da população de um lugar.

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Um olhar negro cria interpretações do Brasil, gera pontos de vistas, olhares geográficos da mesma maneira que cânones já fizeram e ainda o fazem. Por outro lado, negros na História brasileira não possuem nomes citados, nem bustos nas praças, ou praças com seus nomes e nenhuma outra forma de figuração contemplativa na paisagem das cidades, ou quando são referências negras, a maior parte da população desconhece a sua origem étnico-racial, pois muitos sofreram um embranquecimento social. No caso do apagamento negro, suas marcas sociais são destituídas de valor e não são conhecidas pela sociedade em geral. Os negros as desconhecem e não podem assim construir uma visão de pertencimento igualitário da cidade que divide com a elite branca. Mas, no olhar negro, seus pares têm nomes, origem e história. Novamente em seu olhar, na maior parte das vezes não são criados os desvios de uma memória baseada apenas na dor da escravidão e tristeza do racismo, mas uma perspectiva valorizada de uma origem africana que foi construída e resistiu ao tempo por conta da oralidade de seus mais velhos.

Porém, na construção social sobram as memórias do sofrimento, nos atos cruéis em uma localidade que apesar de não sinalizar isto na sua paisagem se torna abandonada pelo poder público até se desmoronar e ser apagada permanentemente do lugar, assim como o seu passado de escravidão, das chibatas, da construção de casarões em um ambiente que na época deveria ser bastante inóspito ao ser humano. Também, pelo esquecimento dos africanos e seus descendentes que não apenas sofreram com a violência da escravidão, mas que construíram o lugar.

Ao se pensar as cidades históricas brasileiras e sua geo-história, o mais comum é o foco sobre a vida da elite colonial que ocupava seus casarões e no caso de cidades que foram capitais coloniais como Rio de Janeiro e Salvador, por uma desvalorização de suas áreas centrais e históricas em detrimento a outras áreas modernizadas. No caso de Salvador, a formação urbana de seu centro histórico é considerada como se partisse unicamente de famílias europeias que constituíram as primeiras elites brasileiras, ignorando as famílias africanas e toda a sua participação na construção da cidade. Transportando as mazelas da rua exclusivamente para o tempo presente sem o devido estudo que deve ser dado ao período da escravidão. Seja no sentido de se avaliar todas as péssimas condições de vida impostas aos africanos que circulavam e moravam nesta área como também das memórias, identidades e heranças ou marcas deixadas pelas diferentes culturas dessas mulheres e homens vindos da África.

Considerar que a formação territorial inicial deste local se deve às dezenas de negros e negras que participaram de sua construção e que certamente habitavam na localidade ou próximo. Pois onde moravam os escravizados dos senhores dos casarões? Também se pensar dentro da perspectiva que os negros foram grande heróis e sobreviventes de um período tão desumano quanto a escravidão na América, mas as informações para se escrever sobre tais assuntos apesar de já estar sendo desenvolvido, mas ainda não o suficiente. Porque na atualidade ainda não é de fácil acesso o encontro dessas informações. Como nomes, origens, culturas, histórias desses negros que construíram o Brasil. Nem praças, bustos e teatros com seus nomes.

Por outro lado, patrimônios, e ainda a própria existência social dos negros, mesmo no século XXI, ainda pode ser encarada por uma segregação gerada por estratégias políticas e públicas de marginalização destas pessoas levando-as a permanecerem em partes da cidade pouco valorizadas e em subcondições de vida (muitos nas ruas e sem emparedamento algum). E lembrando Souza (1986) mais uma vez, a “hegemonia das raças, pela preponderância das civilizações” no caso de uma comparação entre europeus e africanos na formação geo-histórica das cidades coloniais e da “notoriedade” e “domínios do oficialismo” se tratando da literatura brasileira em eleger seus autores para consagração, imortalidade e patrimonialidade.


Referências

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Com o Decreto 3.551 de 04 de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, entre outras providências.

Lugares de memória: termo amplamente explorado pela História Social e História da Memória. Neste caso, o conceito geográfico de lugar está em segundo plano, pois o que vem a protagonizar e lapidar a memória e seus acontecimentos é o tempo e não o espaço com suas marcas, mas a memória com suas lembranças ao longo do tempo.

[…] black lives are necessarily geographic, but also struggle with discourses that erase and despatialize their sense of place” (MCKITTRICK, 2006, p.xiii).

As “escrevivências” de Conceição Evaristo podem ser diferenciadas dos “ensaios de escreviver” de Urbano Tavares Rodrigues no tocante ao ponto de partida, essência e/ou origem. No segundo caso, o escreviver é o universal, o tido como em qualquer lugar, a partir de qualquer indivíduo ou grupo é possível realizar-se o ato de escrever o vivido, mas no primeiro caso, a escrevivência representa a especificidade de um ato de escrever negro, assim a prática escrita de uma leitura de vida e mundo “[q]ue só os NEGROS / Sabem contar / [...] Que poucos podem / Entender.” (SEMOG, 1998).

A primeira publicação deste livro foi em 1957 pela Editora Andes, Rio de Janeiro, e a segunda em 1954 pela Editora a Universidade Federal do Rio de janeiro (EDUFRJ).