Poderes e Saberes das parteiras ribeirinhas da Amazônia
Maria das Graças Silva Nascimento Silva
(...) a gente não tem muitos recursos aqui, somente as
mãos e o poder de Deus (...)
Introdução
Existe na Amazônia uma gama de diversidade cultural e de saberes, por exemplo, os encantamentos das águas, a prática dos curadores, rezadores e benzedores, o encontro das festas e festejos, a habilidade das parteiras. Trabalhar com as parteiras ribeirinhas tradicionais é vivenciar o cotidiano da simplicidade e naturalidade do nascimento da vida. Entender o fascinante universo das parteiras. Seu dia a dia, seus rituais.
Esta pesquisa foi desenvolvida com 15 parteiras da área ribeirinha do município de Porto Velho e com 250 mulheres, também, ribeirinhas, que em algum momento de suas vidas haviam procurado os serviços da parteira. Para este artigo, analisaremos apenas a caracterização que construímos sobre as parteiras com as quais trabalhamos no espaço ribeirinho e a questão dos hábitos em específico, os alimentares segundo os seus saberes.
É evidente que todas as regras, preconceitos e convenções são de origem social. Logo, a questão dos tabus está intimamente ligada à cultura de cada indivíduo, pois o que se torna um tabu para um grupo social, em uma localidade, para uma comunidade, pode não ser para outra. A palavra tabu, geralmente, é utilizada para se referir a proibições que são explícitas e sustentadas por sentimentos de pecados e sanções sobrenaturais a um nível consciente, segundo Leach (1983), mas o autor trabalha com o conceito num sentido mais geral, de modo que abranja todas as classes de proibições alimentares explícitas e implícitas, conscientes e inconscientes.
As determinações de valores alimentares estão amplamente associadas ao ambiente físico de qualquer sociedade humana que contém um amplo espectro de materiais, que são tanto comestíveis quanto nutritivos, mas, somente uma pequena parte deste meio comestível será de fato classificada como alimento potencial. Esta classificação é um problema de linguagem e de cultura, jamais da natureza.
Foram dois fatores que me levaram a pesquisar a categoria da parteira ribeirinha e os temas relacionados como as relações sociais resultantes do partear, que é o sistema de compadrio entre parteiras e a parturiente e o sistema das escolhas e proibições alimentares que as mesmas orientam: primeiro, o fato de ser uma categoria de mulheres atuantes e respeitadas e de ter prestígio e influência na comunidade, pelo fato de ser um espaço, eminentemente, de dominação masculina. O outro fator é o de não haver visibilidade no trabalho da parteira, a começar pelos dados, pois não se tem um censo dessas profissionais.
Pelos dados das organizações de parteiras, estima-se que hoje, apenas no Brasil, o quantitativo de parteiras em atividade esteja em torno de 60 mil. Elas estão presentes em todas as comunidades rurais, em especial nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, segundo informações da Rede Nacional de Parteiras Tradicionais. Estima-se, também, que no Estado de Rondônia tenha em torno de 1.500 parteiras em atividade.
84A origem das parteiras remonta à antiguidade. Segundo Muraro (1994, p. 209), eram curadoras populares que detinham um saber próprio que lhes era transmitido de mãe para filha, de geração para geração:
Essencialmente naturalistas, as práticas das parteiras continham tratamento mágicos que somados ao saber ancestral, que as identificam com a natureza e a Mãe Terra, lhes conferia um grande prestígio social e respeito.
De acordo com Bessa e Ferreira (1999), a arte de partejar é uma atividade que acompanha a história da própria humanidade e, particularmente, a história da mulher. Por muitos milênios foi considerada uma atividade eminentemente feminina, tradicionalmente realizada pelas parteiras. No Brasil, a origem da parteira é a fusão da mulher índia e negra, ou seja, a fusão das duas culturas revela o perfil da parteira brasileira.
Identificamos três grupos de parteiras no espaço ribeirinho que correspondem a três grupos: o primeiro grupo são as parteiras de “dom”; o segundo, as parteiras onde o saber foi adquirido através de outra parteira, e o terceiro grupo é formado pelas parteiras que estão inseridas no serviço de saúde local. As parteiras ribeirinhas estão classificadas de acordo com a seguinte tipologia:
Parteiras | Características | Rituais de parto |
---|---|---|
Parteiras carismáticas | São as de dom, aquelas que receberam o “chamado”, para cumprir uma missão, são as vocacionais. | Mágicos e religiosos |
Parteiras tradicionais | São as que receberam o repasse através da família (avó, mãe) que já foram parteiras e por ser tradição do local, o convívio com as parteiras. | Mágicos e religiosos |
Parteiras racionais | São as Agentes Comunitárias de Saúde, o exercício profissional requer ensino fundamental, além de curso profissionalizante. Trabalham sob a supervisão permanente | Utiliza-se dos instrumentos da medicina moderna disponíveis na unidade de saúde onde atua |
Parteiras carismáticas
As parteiras carismáticas ou de “dom” são mulheres com idade entre 40 e 70 anos, algumas de origem indígena outras de origem nordestina, mas todas com experiência na área ribeirinha, boa parte delas analfabetas. As mais velhas não exercem mais a missão, e dedicaram boa parte de sua vida ao trabalho de partejar. Zola (1996) considera como “terapeutas tradicionais” ou “parteiras empíricas” possuindo saberes, conhecimentos e habilidades para curar.
85Quando indagadas sobre o seu dom, as parteiras ribeirinhas relatam fatos e momentos especiais em que passaram a adquirir esse conhecimento através de um sonho, uma intuição, um dom divino. Elas definem-se da seguinte forma:
“Foi Deus que me deu. Nem saber ler eu sei, nem fazer a letra do meu nome eu não sei, desde novinha eu venho trabalhando, nunca recebi dinheiro para fazer parto...” (Parteira ribeirinha, Distrito de São Carlos)
“Ninguém me ensinou, eu tive um sonho pegando uma criança da minha tia, essa já tinha até morrido. Eu nem era casada, eu era solteirinha... Nunca nem sabia como era o negócio, eu pegava a criança, cortava o umbigo, fazia tudo e quando a criança chorou, eu me espantei...” (Parteira ribeirinha, Distrito de Calama)
“Eu comecei como parteira foi da minha intuição, nunca tinha assistido com ninguém, tinha até medo de cortar o umbigo, aí eu criei coragem e fui assistir com a mulher.” (Parteira ribeirinha, Distrito de Nazaré)
“O trabalho foi uma coisa assim que nem pressenti como eu fui ser parteira, porque eu era nova ainda, e deu uma dor numa mulher e o marido dela veio me chamar, eu não sabia o que era, quando eu cheguei lá eu disse ô maninha eu num sei, nunca vi uma mulher ter filho, aí foi assim como um dom que Deus deu, assisti com a mulher, cortei o umbigo, ajeitei tudinho... Ela me deu essa oportunidade de seguir essa carreira.” (Parteira ribeirinha, Distrito de São Carlos)
Geralmente, esse grupo de parteiras é católico, até porque o “dom” está muito ligado às questões do sagrado, o que é uma das definições de Weber (1944) quando coloca o surgimento do carisma, e a que mais se aproxima da realidade ribeirinha. O dom é aquele que surge através da revelação, que pode ser pelo oráculo, por sorteio, por designo de Deus ou outras técnicas de seleção. Como podemos verificar nas falas das parteiras o seu carisma, ou o seu dom, surgiu “através do designo de Deus”.
Uma das características de uma pessoa carismática é a irracionalidade no sentido da estranheza a qualquer tipo de regra. Registramos a fala de uma parteira carismática que tinha sido convidada a trabalhar como agente comunitária na unidade de saúde da sua localidade, mas ela recusou o emprego, pela liberdade de trabalhar sem a burocracia, típica de uma dominação racional. Ela abriu mão de um salário fixo, de uma estabilidade funcional e de outros benefícios, pela liberdade de administrar o seu tempo, suas ações junto às mulheres, e de manter seus laços afetivos com o grupo. Na estrutura racional ela rompe a relação com o grupo onde o seu carisma tem credibilidade e ameaça sua liberdade. E se seu carisma for do tipo puro, ele é especificamente estranho à economia. Enquanto o racional busca a estrutura burocrática e o tradicional busca o patriarcal, o patrimonial está ligado aos precedentes do passado. O carismático subverte o passado (dentro de sua esfera) e é este o sentido especificamente revolucionário, diz Weber (1944).
E para as mulheres da comunidade a definição de uma parteira de dom ou carismática é a seguinte:
86“É aquela que recebe o dom de Deus”. (Mulher ribeirinha, 22 anos, 2 filhos com parteira)
“É aquela que tem o prazer de cuidar das pessoas”. (Mulher ribeirinha, 30 anos, 2 filhos com parteira)
“É aquela que possui de Deus essa missão, essa qualidade”. (Mulher ribeirinha, 77 anos, 7 filhos com parteira)
“É aquela que só faz o bem” (Mulher ribeirinha, 33 anos, 4 filhos com parteira)
“As parteiras de dom agem com sabedoria e paciência”. (Mulher ribeirinha, 48 anos, 7 filhos com parteira)
As mulheres sempre relacionam o dom como um saber divino, pois a pessoa já nasce com esse saber, ou seja, não é um saber adquirido. Quando perguntamos a um grupo de mulheres evangélicas sobre o dom, elas apenas não reconhecem o “dom” e não atribuem a nenhuma divindade, apenas dizem que elas “sabem fazer parto sem nunca ter feito nenhum curso”.
Perguntamos às mulheres ribeirinhas os critérios adotados por elas para escolha da parteira.
Critérios | Mulheres | Percentual |
---|---|---|
Experiência e confiança | 88 | 35,0% |
Atenciosa e prestativa | 38 | 15,0% |
É da família e/ou parente | 73 | 29,0% |
Indicada pela família | 30 | 12,0% |
A mais próxima do local | 22 | 9,0% |
TOTAL | 251 | 100% |
Geralmente, o critério experiência e confiança são atribuídos à parteira carismática. Mas, é bom lembrar que nem todas as mulheres do espaço ribeirinho têm acesso a essas parteiras, primeiro, porque são poucas as que possuem o dom e não estão presentes em todas as localidades; segundo, porque em alguns locais da área ribeirinha não formam uma comunidade, no sentido de estar próximo de conviver no dia a dia. Isso acontece com as pessoas que moram no rio Jamari, onde as casas são bem distantes uma das outras, são muitas horas de caminhadas de uma casa para outra, isso se estiver na mesma margem do rio, se não, só através de canoas ou pequenos barcos. Por isso, as mulheres dessas localidades, não podem escolher a parteira que gostariam, e sim, aquela que estiver mais próxima do local.
Parteiras tradicionais
Do segundo grupo faz parte as parteiras tradicionais, o saber foi adquirido através da avó, da mãe ou de outros parentes ou até mesmo de outras parteiras da comunidade, algumas ainda estão em pleno exercício de suas funções. São mulheres na faixa etária dos 40 aos 70 anos e que, muitas vezes, quando são abordadas sobre o seu trabalho, não gostam de falar que são parteiras. Algumas vezes são procuradas pelos serviços de saúde local, quando acontece alguma complicação com a parturiente, mas preferem não atender no posto de saúde e sim na residência da parturiente, junto com a família. Sobre a forma de repasse pela tradição da família, elas dizem o seguinte:
87“Aprendi com minha mãe. O primeiro que nasceu em minhas mãos era para ter sido com a minha mãe, mas ela tinha saído, era noite e tinha chegado a hora da minha irmã, aí eu fiz o parto, foi tranquilo e normal. Desde esse dia eu fiquei assistindo com as mulheres, elas foram sabendo e vinham aqui comigo, eu gosto de fazer parto, tenho prazer em trabalhar”. (Parteira ribeirinha, Distrito de Calama).
“Aprendi por curiosidade, vendo minha avó fazer parto, e fui aprendendo...” (Parteira ribeirinha, Distrito de São Carlos)
Quanto à idade de se aprender a fazer parto, vai depender muito da necessidade do grupo. Quando Bessa e Ferreira (1999) pesquisaram com as parteiras tradicionais da área rural do Estado do Acre, mostraram que com relação à idade das parteiras, estão quase na mesma faixa etária das parteiras ribeirinhas, sendo que o que as diferenciam são as formas de repasse desse saber e a idade que começaram a partejar.
Embora tenha registro de parteiras que iniciaram suas atividades na faixa etária dos 10 aos 20 anos, predomina a faixa etária daquelas que começaram na escala dos 31 aos 50 anos. Quanto à idade precoce de iniciação ao ofício de parteiras, justifica no caso para as parteiras de dom, pois elas necessariamente não precisam da experiência de ser mãe para desenvolverem suas funções.
As parteiras tradicionais estudadas por Bessa e Ferreira (1999: 33), no que diz respeito ao ingresso de jovens no ofício de partejar, estão associadas a dois fatores considerados pelas autoras como importante:
O fato de mulheres jovens e com pouca prática ingressarem na ocupação de parteiras tradicionais está associada às dificuldades locais de acesso, já que os lugares que apresentam melhores condições de tráfego e transportes, a exigência para que uma mulher se torne parteira é o domínio da prática.
O segundo fator está relacionado com a realidade rural na qual:
As mulheres casam-se bastante cedo e logo começam a ter filhos, um atrás do outro uma verdadeira “escadinha”. O aprendizado com os sucessivos partos experimentados proporciona-lhes experiências e, talvez segurança para realizá-los cada vez melhor.
Essas parteiras tradicionais são presenças constantes na área rural e de certa forma o seu saber é sempre através do repasse de outra parteira. Para algumas parteiras isso é um mérito, porque também as diferencia das outras mulheres. Querer aprender a fazer parto é uma atitude espontânea, pois não é imposta pelo grupo e nem pela família, mas, em algumas famílias, é uma tradição o repasse para outras mulheres da família. Também é tradição da comunidade ter sempre a presença de parteiras, benzedeiras e curandeiras. Por isso, o poder e o respeito dessa parteira se estabelecem pela forma tradicional que realiza seus partos, pela seriedade, pela confiança e pela experiência acumulada na realização do seu trabalho. Portanto, o motivo de piedade que Weber (1944) estabelece para o exercício do poder por uma pessoa de caráter tradicional não se aplica às parteiras tradicionais aqui pesquisadas.
88Sob o ponto de vista da percepção das mulheres que procuraram pelo trabalho das parteiras sendo que algumas dessas mulheres foram atendidas por parteiras de diferentes categorias, perguntamos se existe alguma diferença entre uma parteira de dom e as demais parteiras da comunidade.
Diferença das parteiras | Mulheres | Percentual |
---|---|---|
Sim | 151 | 60% |
Não | 25 | 10% |
Não sabe | 40 | 20% |
Não conhece o termo | 25 | 10% |
Total | 251 | 100% |
A disposição do “cuidar” orientar e acompanhar as parteiras de “dom” se diferencia e são procuradas por essa disponibilidade de esperar o tempo que for necessário e estar junto com a parturiente mesmo que leve dias ou semanas. Em se tratando da experiência e segurança que possuem a distinção não é tão evidente mesmo porque as ações das parteiras tradicionais são muito parecidas com as das parteiras carismáticas, a diferença é que as parteiras tradicionais podem cobrar pelos serviços, as carismáticas não. Geralmente, as mulheres que não sabem a diferença entre uma parteira de “dom” e as demais parteiras, são as mais novas, que já tiveram filhos com parteiras. E 10% delas não conhecem o termo dom, já que são mulheres vindas de outros municípios e/ou Estados que não ribeirinhos ou podem ser mulheres evangélicas.
Parteiras racionais
Do terceiro grupo faz parte as parteiras racionais, que estão inseridas no serviço de saúde local, como agentes de saúde, auxiliares de serviços de saúde. Essas, por sua vez, têm interesse em aprender mais sobre o ofício de partejar, ou seja, aprender com parteiras da área, mas também são treinadas e/ou buscam alguns treinamentos nos serviços oficiais de saúde. Na definição de Weber (1944), essa pessoa está inserida em uma estrutura burocrática, na qual existem normas de procedimentos, obediência e cumprimentos de atribuições que lhes são designadas.
Uma das características dessa parteira é que a mesma apenas realiza partos na unidade de saúde. Embora ela seja agente comunitária de saúde, visita as famílias, faz todo o levantamento, mas não faz nenhum procedimento na casa da mulher. Ainda nessa categoria, temos os homens parteiros, que também só realizam partos nas unidades de saúde. A unidade de saúde mais equipada para a realização de partos é a do distrito de São Carlos, e o responsável pela unidade é um homem, que é muito conhecido na área ribeirinha. Porém, é pouco procurado pelas mulheres da comunidade para realização de partos, somente em caso de emergência. Mas mesmo sendo emergência algumas mulheres, quando têm condições financeiras, encaminham-se para Porto Velho. Uma das mulheres, que teve complicações e precisava de alguns procedimentos hospitalares, justifica o porquê de não procurar o parteiro da unidade de saúde:
89“Eu não fui de jeito nenhum, fui para Porto Velho... lá para o hospital, porque é bem capaz de eu ficar daquele jeito que tu sabe, lá pro Lima (agente de saúde da comunidade). E quando eu precisar ir no posto lá vai eu com a mesma cara? eu não tenho a cara tão sem vergonha assim” (Mulher ribeirinha, 40 anos).
Essa parteira racional tem poucos laços afetivos com a comunidade, a sua atividade faz com que ela se distancie do grupo, embora ela visite algumas casas, mas pela estrutura que ela está inserida não permite essa vivência com o grupo. A forma de realizar os partos não estabelece laços de parentesco, pois não há espaço nessa estrutura. E é isso que as diferencia das demais parteiras e faz com que o grupo se distancie desse tipo de estrutura e não as reconheça como parteiras da comunidade, mas sim como uma funcionária da unidade de saúde.
Fazer parto em áreas rurais ou em áreas ribeirinhas, nem sempre representa uma escolha, mas uma necessidade social e, às vezes, é a única opção. Mas parir em hospitais a mulher interage cada vez menos com o seu parto, e cada vez menos tem autonomia sobre o seu corpo no momento do parto, pois ela não é informada e nem consultada sobre os procedimentos hospitalares como: tricotomia (raspagens dos pelos pubianos) e a enema (lavagem intestinal), pois é um direito dela optar ou não por esses procedimentos. Ela pode recusar-se a fazer a episiotomia (corte do períneo), pois o mesmo não se justifica cientificamente.
Na percepção das parteiras, as mulheres valorizam seu trabalho, pois parir em casa tem suas vantagens, como: a escolha da parteira em que a mulher se sinta segura, ela não precisa sair de casa, não tem muitos gastos, e não se submete a tricotomia e nem a episiotomia, o parto é acompanhado pela família em especial, pelo marido, elas escolhem a posição de parir, e ainda, as parteiras fazem tudo para ela e o bebê: chás, massagens, alimentação, inclusive os serviços domésticos no período pós-parto.
Essa assistência ao puerpério imediato é interessante, pois dependendo das condições da mulher, a parteira pode ficar até uns quinze dias na casa da mulher parida, dando toda atenção. Pensando nesse atendimento direto antes, durante e pós-parto, perguntamos as mulheres qual é o pagamento pelos serviços prestados pelas parteiras?
As parteiras carismáticas não cobram pelos seus trabalhos. O agrado e o presente que são dados a elas é pelo fato delas não cobrarem pelo parto, e as pessoas, em forma de agradecimento e reconhecimento, lhes dão presentes ou como elas dizem um “agradozinho”, que na maioria dos casos são dados em alimentos como, farinha, milho, ovos, frutas, galinha, pato. E com raríssimas exceções pode ser um presente de “loja”, como: roupa, calçado ou utensílio doméstico. Em algumas situações o processo é inverso, as parteiras levam alimentos e até roupas para o bebê, pois, às vezes, a mulher não tem nem o que comer depois do parto. Eu ouvi o seguinte relato de uma parteira:
90“Quando eu ia fazer um parto que conhecia já a mulher e sabia que ela não tinha nada, eu levava minha sacola com uns panos, roupinhas, tem vez que a mulher não tinha um pano para se forrar, até comida eu já levei”. (Parteira ribeirinha, Distrito de São Carlos)
“Eu tenho maior prazer de atender as pessoas, não sei a soma de menino que já nasceu comigo, mas eu nunca cobrei nada por ter assistido com as mulheres. Tenho passado noites de sono e fome, porque a senhora sabe que tem gente muito pobre de não ter nada para comer, a gente passa a noite sem ter nada, quando vem me buscar eu vou qualquer hora do dia e da noite, e estou viva graças a Deus”. (parteira ribeirinha, Distrito de Nazaré).
Quanto ao pagamento em mantimentos é mais comum nessa região, pois nem sempre a pessoa tem o dinheiro para pagar. Esse pagamento é feito à parteira tradicional e à parteira racional, pois só elas cobram por esse serviço. O mantimento é geralmente o que se produz no local, como: farinha, milho, feijão, galinha, pato, porco, carneiro. E também caça e pesca. A parteira tradicional que não sabe o valor que deve cobrar pelos serviços, que dependendo da situação da mulher, às vezes, dura até 15 dias após o parto, a parteira geralmente deixa a cargo da pessoa o que ela deve dar como pagamento. Vejamos a seguir o que elas dizem a respeito:
“Quando eu faço parto, as pessoas me dão assim, 2 quilos de açúcar, 1 lata de óleo, um pedacinho de sabão, me dão de bom gosto, só que eu não cobro, graças a Deus. Pra dizer que não cobrei, eu fiz um parto e cobrei porque eu queria fazer uma viagem até Humaitá para me aposentar, eu cobrei só valor da passagem, mas não deu certo minha aposentadoria. Aí eu me arrependi de ter cobrado. Eu fiz uma jura de nunca mais eu fazer isso, daqui em diante se alguém precisar de mim eu vou de bom gosto ajudar aquela pessoa e vou vencer, embora eu não me aposente...” (Parteira ribeirinha, Distrito de Nazaré)
A relação de compadrio na área ribeirinha
É comum na área ribeirinha a relação de tratamento que se estabelece após o parto entre a mãe, o bebê e a parteira. A relação de compadrio é a mais usual e as pessoas levam tão a sério esta relação que em alguns casos parece que a parteira faz parte da família, concordamos com Galvão (1976: 54), quando afirma que esta forma de parentesco cria laços de cooperação e de solidariedade. Vejamos a seguir a fala das parteiras a respeito do tratamento:
“A partir do momento que eu corto umbigo ele é meu filho, ele me chama de mãe velha.” (Parteira ribeirinha, distrito de São Carlos)
“De mãe velha. Eu gosto, eu quero bem igual aos meus filhos, parece assim que são todos meus filhos e eles gostam muito de mim e as mães são minhas comadres” (Parteira ribeirinha, distrito de Calama)
“Me chamam de mãe velha, avó e tomam a benção e entre as mães a relação é de comadre” (Parteira ribeirinha, distrito de São Carlos)
Vejamos a seguir outras falas das mulheres a respeito dessa questão:
“Os laços de amizade se fortalecem e a criança deve chamá-la de madrinha”. (Mulher ribeirinha, 19 anos)
“Passa a fazer parte da família”. (Mulher ribeirinha, 24 anos)
“Considero como uma pessoa da família”. (Mulher ribeirinha, 30 anos)
Está presente nessa relação, quase de parentesco, um respeito muito grande à pessoa da parteira, principalmente, às carismáticas e às tradicionais. Não presenciamos e nem registramos nenhum depoimento em que as parteiras racionais tivessem a mesma deferência das demais parteiras, mesmo porque os partos realizados nas unidades de saúde rompem com as relações mágicas e religiosas, por mais que as pessoas que estejam atendendo a mulher sejam parteiras, elas também rompem com a relação do “cuidar” que é característico das demais parteiras. O prestígio e o respeito se dão pela forma carismática e tradicional que as parteiras exercem o seu trabalho na comunidade, a ponto de “ser chamada de mãe”, pelas centenas de pessoas que nasceram pelas suas mãos.
91As parteiras ribeirinhas na sua maioria são mulheres idosas, as mais jovens estão em torno dos 40 anos, em sua maioria não têm o domínio da leitura, realizam os partos independentes de gostarem ou não do ofício, algumas têm a profissão como um “dom”, algo inato. Segundo Laplantine e Rabeyron (1989: 88), quem tem o “dom”, frequentemente total, global e incontestável, não é, via de regra, adquirido, mas inato ou, mais exatamente, conferido. Entre as jovens, aparentemente, não há interesse em aprender o ofício o que acarreta na possibilidade da perda da tradição por não haver sucessoras, em algumas comunidades onde realizamos o estudo, esse processo está ocorrendo.
Tabus e restrições alimentares
Com referência aos estudos sobre os tabus e as restrições alimentares em comunidades tradicionais da Amazônia, em especial, as comunidades ribeirinhas, são poucos os pesquisadores que enveredam por estas questões que são de fundamental importância para entendermos o universo cultural do grupo.
Temos alguns estudiosos da temática como Castro (1957), geógrafo e médico que, em sua obra Biologia social, analisa os problemas sociais dentro dos critérios de suas raízes biológicas, da indagação dos fatores que através de um mecanismo biológico condicionam as suas expressões. Nessa obra, o autor dedica um dos capítulos: “A fisiologia dos tabus”, para explicar as interdições dos tabus até então aparentemente tão incompreensível, ressaltando sempre os aspectos biológicos, muitas vezes relegados ao segundo plano pela maioria dos estudiosos da área social. A obra contribui para esclarecer certos fenômenos e fatos sociais, sejam eles locais ou universais. O tabu é definido como sendo:
Alguma coisa que não podemos definir nunca. Algo que escapou, em parte, ao nosso sentir civilizado [...] Os tabus são representados como resultantes de forças misteriosas e inexplicáveis, a forças místicas de que eles se encontram carregados, que não devem ser violados. (CASTRO 1957:150),
O conceito nuclear de tabu para o autor é de uma interdição, de uma proibição categórica, sem uma explicação racional.
O antropólogo inglês Leach (1983), na obra Antropologia, trata em um de seus capítulos da “Linguagem e o tabu e a relação da comestibilidade e avaliação social de animais”. O autor explica que os tabus podem ser comportamentais ou linguísticos. Discute-se sobre coisas que nem são ditas e nem feitas, os tabus, cujas proibições e restrições são aparentemente irracionais.
Na obra Vacas, porcos, guerras e bruxas: os enigmas da cultura, o antropólogo americano Harris (1978) procura responder às questões perturbadoras sobre o comportamento humano, retratando os estranhos costumes e estilos de vida, sendo eles quase sempre, invariavelmente, o produto de processos adaptativos bastante inteligíveis. O modo de vida, por mais bizarro e irracional que seja, pode ser compreendido como formas práticas de adaptações e condições ecológicas, econômicas e sociais.
92O autor indaga ainda, que só quando conseguimos isolar e identificar essas condições é que estaremos aptos a compreender e a lidar com nossos estilos de vida, aparentemente, sem sentido. Como, por exemplo, as razões pelas quais as mais diversas culturas, através dos séculos, assumem tabus, os mais estranhos e inexplicáveis, como horrores a carne de vaca ou de porco, estranhos rituais de preparo e outros.
Outra obra que também ajuda na compreensão dos tabus e restrições alimentares na região Amazônica é O dilema do papa-chibé: consumo alimentar, nutrição, prática de intervenção na ilha de Ituqui, Baixo Amazonas – PA, de Murrieta (1998), que analisa as práticas cotidianas da escolha e utilização de alimentos na ilha de Ituqui. O autor faz uma avaliação de alguns aspectos do impacto destes processos nas práticas locais de intervenções. Faz uma discussão antropológica sobre os hábitos e tabus alimentares que se concentram nas estruturas mentais e sociais, nos sistemas de representações e infraestruturas econômicas e ambientais.
O autor está sempre atento para os altos valores de consumo proteico e valores moderadamente baixos de calorias quando comparados com recomendações internacionais, onde os processos de escolha são práticas superpostas influenciadas e limitadas pelos sistemas de tabus locais e do mercado. O autor muitas vezes ignora a importância da variável social e cultural, em função das análises do processo nutricional dos indivíduos.
Motta Maués e Maués (1977), na obra Hábitos e crenças alimentares numa comunidade de pesca, retratam a alimentação de mulheres, onde a prática dos tabus e das restrições alimentares é um dos focos principais relacionados com o grupo das mulheres grávidas e no período do puerpério. O preparo dos alimentos tanto para a mulher grávida quanto para o recém-nascido, também é especial, como por exemplo:
A galinha consumida pela mulher de parto deve ser preparada sempre na hora da refeição, pois não deve ser requentada, caso contrário uma grande inflamação pode atacar a mulher (MOTTA MAUÉS E MAUÉS 1977: 139).
A mulher no período de gravidez e pós-parto pertence ao grupo que recebe maiores restrições e proibições alimentares em comunidades tradicionais. Murrieta (1998: 39) destaca que:
A gravidez e o pós-parto são representados como momentos de fragilidade e vulnerabilidade para mulheres, onde a ingestão de alimentos reimosos pode trazer sérias conseqüências para a mulher e o bebê [...]
Segundo Motta-Maués (1977: 140), a palavra “reima” não faz parte do vocabulário do itapuaense, ele usa somente os termos “reimoso” e “manso”, que são aplicados para classificar os alimentos. Para a autora a reima é um:
93Sistema complexo, que estabelece a classificação dos alimentos em dois grupos, mansos e reimosos, utilizando vários critérios, que levam em conta três momentos diferentes: a) o alimento em si, antes de ser preparado para o consumo; b) o estado da pessoa que vai consumi-lo; e c) o modo de preparo do alimento.
A reima é um sistema classificatório de restrições e proibições alimentares aplicados a pessoas em estados físicos e sociais, ou seja, nas palavras de Murrietta “O equilíbrio do corpo e do espírito é o principal alvo das proibições da reima, praticada principalmente, após uma enfermidade ou gravidez” (1998: 42).
No espaço ribeirinho o papel social das mulheres chama atenção por ser o símbolo da oralidade e do conhecimento local sobre a tradição do “cuidar” da saúde do grupo. E “cuidar” da saúde da comunidade, especialmente das mulheres, cabe à parteira essa responsabilidade em comunidades mais isoladas. É ela que é a responsável pela dieta alimentar da grávida e da nutriz, é ela quem vai orientar sobre os “perigos” do consumo de certos alimentos, o que fica proibido, e o que deve ser ingerido. São ensinamentos adquiridos ao longo do tempo e da história, repassados ao longo das gerações através da oralidade do grupo.
Apresentamos a seguir o quadro 02 de recusa alimentar estabelecido pelas parteiras ribeirinhas para as mulheres no período gestacional e no pós-parto.
Tipos de alimentos | Motivo da recusa | Consequência |
---|---|---|
Bicho de casco | Alimento muito reimoso | Perda da memória e inflamações na pele |
Peixe de couro | Alimento muito reimoso | Inflamações no organismo |
Carne de caça | Alimento reimoso | Inflamações no organismo |
Carne de gado | Alimento reimoso | Dores estomacais e vômitos |
Carne de macaco | Semelhante ao homem | Causa panema |
Frutas cítricas | Frutas ácidas | Corta o leite |
Banana naja | Abortiva | Aborto |
Pato | Alimento reimoso | Inflamações no organismo |
Carne de porco | Alimento reimoso | Inflamações no organismo |
Galinha caipira de pé roxo | Alimento reimoso | Inflamações no organismo |
Galinha d’angola | Alimento reimoso | Inflamações no organismo |
Para as mulheres ribeirinhas, no período gestacional e durante a amamentação, os alimentos que contém mais reima e os que sofrem maior recusa por parte delas são:
- Bichos de casco. São as tartarugas, tracajás e jabutis, comuns nas margens dos rios e igarapés da comunidade. O consumo deste alimento é unanimidade entre as mulheres, é proibido e está no topo dos alimentos recusados. O consumo destes pode trazer sérias consequências e muitas vezes deixar sequelas na mulher e no bebê, como: perda da memória, manchas no corpo tipo “impingem”. E o bebê é contaminado pelo leite da mãe, causando diarreia e manchas no corpo, idênticas às da mãe.
- Peixe de couro. Causam inflamações no organismo. Os mais comuns na área são bagres, como: dourado, mandi (Pimelodus maculatus), jaú (Paulicea luetkeni), surubim (Pseudoplatystoma corruscans) e pirarara (Phractocephalus hemioliopterus).
- Peixe de escama. Jatuarana (Brycon sp.), pirarucu (Arapaima gigas), Matrinchã (Brycon cephalus), piranha ('Pygocentrus sp) e tambaqui (Colossoma macropomum), também causam inflações no organismo.
- Carne de caça. Animais como anta, paca, tatu, cotia. Estão também no grupo dos alimentos com reima, portanto, não consumidos pelas mulheres grávidas e no período de amamentação.
- Carne de porco Alimento também muito reimoso que causa inflamações no organismo.
- Carne de gado. É um alimento recusado por algumas mulheres da comunidade, o consumo dessa carne é considerado muito reimoso, que pode causar dores estomacais e vômitos.
- Galinha de pé roxo. É uma espécie de galinha caipira criada na comunidade, que não é consumida no período gestacional e durante a amamentação, também por estar no grupo dos alimentos reimosos, não havendo muitas explicações com relação à restrição devido à cor dos pés.
- Galinha d’angola. É comum na comunidade, mas é um alimento que segundo as mulheres contém reima, portanto, proibido no período pós-parto.
- Macacos. O consumo da carne desses animais é considerado pelas mulheres muito perigoso, pela semelhança com o homem, e ainda, pode atrair para o marido a panema, que é uma forma de energia negativa, um maná negativo que deixa o afligido sem sorte para a pesca, caça e plantio; deixa “mofino” sem ânimo para o trabalho, preguiçoso. O panema é retirado com banhos de ervas e rezas dos curadores.
- Frutas cítricas. As mulheres quando estão amamentando não devem consumir frutas ácidas, principalmente, a laranja, o limão e o abacaxi, pois a acidez destas frutas “corta o leite” consumido pelo bebê.
- Banana najá. É uma fruta muito encontrada na comunidade, mas, extremamente proibida para as gestantes, pois possui efeito abortivo.
Na área ribeirinha a principal fonte de proteínas para a mulher é o peixe, e mesmo assim mantém um rol de tabus e restrições alimentares no período da gravidez. Durante a estiagem, a demanda de peixes para a comunidade fica reduzida, e a fartura de espécies diminui, na maioria das vezes só resta o peixe de couro para consumo, mas este fica restrito na dieta da grávida, resta então a carne de caça, mas esta também sofre restrições em algumas espécies, a galinha caipira, por exemplo, se tiver na classificação da galinha de pés roxo, também não é consumida pela mulher. Talvez essa seja uma das formas de mudança nos hábitos alimentares, pois os ribeirinhos têm uma preferência muito grande pela galinha de granja, congelada. E esse alimento é consumido em todas as etapas da vida da mulher, não recebe nenhuma restrição. O que é uma contradição por não considerar (nem saber) que essa carne possui um alto suplemento de hormônio.
Com tanta restrição alimentar a saúde da grávida ribeirinha fica comprometida? Segundo as parteiras da área, as mulheres são saudáveis justamente porque não consomem qualquer alimento que possa comprometer a sua saúde e a do bebê.
“O tambaqui é reimoso devido ao umbigo da criança e devido a ela mesma, né? Que quando a mulher tem bebê ela tá inflamada, e de repente ela pode ter uma hemorragia, devido à comida que ela come...”. (Parteira ribeirinha, distrito de Nazaré)
“Não é qualquer peixe de escama que ela pode comer, só a branquinha (Curimatella spp), sardinha (Sardinella brasiliensis), aruanã (Osteoglossum bicirrhossum) e traíra”. (Parteira ribeirinha, distrito de São Carlos)
Não há como fazer relações com a alimentação dos peixes, por exemplo. O tambaqui é frutívoro. A traíra carnívora e predadora, o aruanã busca insetos e aranhas. A jatuarana consome frutos, sementes, insetos e, às vezes, pequenos peixes. Todas as recusas ou restrições são construções históricas e culturais de cada grupo social.
O médico ginecologista e obstetra, em seu depoimento, discorda dessas restrições:
“Em uma comunidade tradicional podemos observar alguns tipos de restrições alimentares que podem afetar uma gravidez tranquila e saudável, mas cada caso é um caso, e quando nós avaliamos uma paciente, nós temos uma conduta individualizada para cada caso. No entanto, o que nós aconselhamos de um modo geral é que a dieta seja rica, e nessa riqueza, nós que moramos aqui na Amazônia, essas pessoas que vivem nessas comunidades elas têm condições de ter um pomar em sua casa, então elas podem fazer uso de todas as frutas, limão, laranja, jambo, banana, todas as frutas que for possível ingerir. Não tem nenhum problema, não existe contra indicação, manga, cupuaçu, açaí, todas à vontade... Todos os peixes também podem ser consumidos à vontade, nada de restrições, por exemplo “peixe de couro não posso comer”... Pode comer sim, peixe de couro, de escamas, sem problema nenhum. Quanto às carnes, a orientação é para carne magra, apenas evitar gorduras e fritura. Frango pode consumir à vontade, não tem nenhuma contra indicação, também não vejo problemas em consumir carnes de caça, é tudo realmente uma questão de cultura”
Segundo o médico, para que uma gravidez seja saudável é preciso que a alimentação da grávida seja rica em nutrientes, vitaminas e proteínas. Alimentar-se bem durante a gravidez contribui para uma gestação saudável. Na concepção do médico não existem restrições alimentares para carnes, peixes e frutas. Ao contrário são alimentos que devem estar na dieta da gestante. Ele considera que:
95“Os tabus fazem parte de folclore e quando é visto em forma de poesia é muito bonito, mas podem trazer riscos a muitas gestações, principalmente, esses tabus que passam despercebidos. Sabe aquele menino que foi abortado, aquele menino que não pode crescer, aquele menino que nasceu com uma má formação e depois morreu, e como morreu ficou no esquecimento, e não é lembrado, só é lembrado quem é visto, quem pode garantir que essas crianças não sofreram por conta de uma má alimentação das mães? Com certeza uma dieta deficitária no período gestacional pode causar danos ao bebê... a criança será aquilo que a mãe consumir durante a gravidez”.
Mas na cultura das parteiras e das mulheres ribeirinhas, consumir esses alimentos é um sério risco à saúde, e essa é a verdade do grupo. Pois tem toda uma simbologia a respeito dos alimentos. Então, como manter uma dieta saudável no período gestacional sem interferir na cultura do grupo? É interessante para o grupo que a parteira possa absorver novos conceitos a respeito da dieta alimentar das mulheres no período gestacional e no pós-parto? Para o médico ginecologista e obstetra isso é possível, pois:
“As parteiras geralmente são mulheres mais idosas da comunidade e trazem consigo suas experiências repassando, em trabalho com o grupo das grávidas algumas de suas crenças... E esse é o núcleo principal dessa discussão... a parteira deve receber apoio do sistema de saúde ou do poder público que preste uma orientação melhor, pois na cabecinha dela existe aquilo que é tradicional e que ela conhece como experiência própria, é a sua verdade e é assim que deve ser aplicado... Mas temos que fazer para que ela tenha outra visão de melhoria de seu trabalho. Porque se você for comparar um médico a uma parteira em uma localidade dessas, com toda certeza a parteira terá mais credibilidade porque ela fala a mesma linguagem de sua comunidade, vive os mesmos problemas, ela sente, chora, tem alegrias e sofrimentos do seu grupo, isso são eventos que um médico não participa, e como ela vive no seio da comunidade, possui uma influência muito grande... Então... ela precisa transferir para as pessoas o que é certo”.
No nosso entendimento as parteiras ribeirinhas são peças fundamentais no contexto da saúde da mulher e da criança, em especial, no ciclo reprodutivo da mulher, pois desenvolvem inúmeros papéis com os moradores das comunidades, dentre eles, os de orientadora, e como parteiras e o seu saber empírico salvam vidas, cuidam dos enfermos, ainda prestam assistência no puerpério imediato, ou seja, elas são fundamentais não só para a manutenção da vida no espaço ribeirinho, mas na vinculação das informações, na condição de organização e sustentabilidade do grupo.
Corroborando com esse entendimento, Bessa e Ferreira (1999: 91), quando se referem à liderança que a parteira exerce nas comunidades onde vivem, argumentam que:
96Uma das características mais marcantes constatadas em sua ação é a influência que exerce sobre a comunidade, na resolução de seus problemas. A parteira atribui essa liderança às atividades que desenvolve como parteira e à assistência terapêutica voltada não só à gestante, mas à comunidade de uma maneira geral.
Quando se refere à reprodução das comunidades tradicionais mexicanas, Gordilho (1994) afirma que a mesma se dá pelo saber da parteira, é ela quem orienta as mulheres e transmite o segredo do nascimento e dos cuidados com as crianças. Para as comunidades onde já existe alguma atuação da medicina moderna, o trabalho da parteira é visto como um serviço de saúde preventiva e para as comunidades onde não existe nenhum serviço de saúde, o trabalho da mesma é visto como um ritual.
Considerações finais
O mundo atual nos leva a buscar as conexões e estabelecimentos de “redes”. Encontramos no acelerar da velocidade das informações os conteúdos já definidos e a sociedade é levada a acreditar que essas informações são as verdadeiras, as modernas e até mesmos as únicas confiáveis. O conhecimento apresentado nessas redes aparenta não ter conexões com o passado.
Nossa pesquisa com as parteiras ribeirinhas nos mostra um mundo vivido e dinâmico, onde as relações sociais se organizam levando em conta valores que garantem a vida de todo o grupo social. O trabalho das parteiras reúne o conhecimento da vida que nasce da solidariedade, do cuidar e da dádiva. A decisão de uma parteira de dom está relacionada à percepção específica de tempo e espaço. Seu conhecimento lhe é entregue pelo sonho ou outra forma de encantamento, no momento de sua escolha solidária. Não passa por relações mercadológicas e a própria ideia de cobrança por esses serviços lhes parece estranha. Essa parteira domina um conhecimento antes, durante e pós-parto. Não há horário determinado seja dia, noite ou madrugada, sol ou chuva. O acompanhamento inclui o cuidado da parturiente e o suporte que precisa ao fazer das refeições, ao lavar das roupas e o que for necessário. O sistema de compadrio toma outro viés que não o da estratégia de sobrevivência, mas o do agradecimento. Parteira e parturiente tornam-se comadres, há confiança e respeito.
O conhecimento da parteira se estende para o campo da saúde da mulher, que inclui aconselhamentos para a nova mãe, cuidados de higiene e proteção, chás, massagens, alimentação, a escolha do alimento da parturiente passa pela seleção dos alimentos reimosos. Tal conhecimento da parteira acumulado pela experiência trata a mulher dentro de seu universo. A origem da vida não é considerada uma enfermidade, mas um momento muito especial que a mulher vivencia.
Esta visão integrada da vida da mulher contrasta com a visão de muitos especialistas da medicina que estuda o corpo de forma fracionada e em muito utiliza o tempo de uma lógica mercadológica, onde não se processa a espera pelo tempo natural do nascer. Os conflitos com o conhecimento das parteiras se estabelecem em diversos níveis.
97Os repasses mágicos e encantados dos conhecimentos da parteira de dom ocorrem com maiores dificuldades em nossos tempos por vários motivos, que vão desde o não interesse de praticar voluntariamente uma atividade não remunerada, até o fato de que se tornou mais fácil o atendimento em maternidades.
O conhecimento das parteiras ribeirinhas possui os valores de um modo de vida que passa por constantes e profundas modificações. A pesquisa científica ainda tem muito a compreender e descobrir deste universo cultural.
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Professora Associada do Departamento de Geografia e do Programa de Mestrado e Doutorado em Geografia da Universidade Federal de Rondônia. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Mulher e as Relações Sociais de Gênero – GEPGENERO.
Fala de uma Parteira Ribeirinha do Distrito de São Carlos – RO.
Entrevista com médico ginecologista obstetra da Rede Estadual de Saúde.