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Corpos e marcadores de desigualdades na análise geográfica: gênero, sexualidade e racialidade

Joseli Maria Silva
Marcio Jose Ornat
Tamires Regina Aguiar de Oliveira Cesar
Alides Baptista Chimin Junior
Grupo de Estudos Territoriais – GETE- UEPG

Introdução

Este capítulo tem por objetivo contribuir com a história científica da Geografia Brasileira, trazendo alguns elementos como gênero, sexualidades e raça para o registro epistemológico nacional. Mesmo desconsiderados nas narrativas oficiais expressas em disciplinas e livros da área de geografia, houve pesquisadores brasileiros que estiveram preocupados com os marcadores sociais dos corpos, realizando várias análises capazes de tensionar os tradicionais limites da análise geográfica e trazer para o debate científico brasileiro as relações entre corpos e espaços.

Para elaboração deste capítulo utilizamos o banco de dados que vem sendo construído pelo Grupo de Estudos Territoriais – UEPG, desde 2008. Atualmente fazem parte do acerto do referido banco de dados 6.904 artigos coletados de 35 periódicos científicos brasileiros disponíveis na internet e mantidos por instituições de cunho geográfico. As revistas que fazem parte do universo pesquisado cobrem um período temporal de 1981 a 2012 e estão classificadas, segundo o Sistema Qualis-CAPES do triênio 2010-2012, como pertencentes aos estratos A1, A2, B1 e B2. Os artigos que fazem parte do banco de dados do GETE são classificados por palavras-chave, o que permite o resgate das informações por termos de busca. Além desse procedimento foi realizado um levantamento no Banco de Teses da Capes e na biblioteca digital do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), tomando como base os mesmos critérios de busca utilizados para o levantamento dos artigos no banco de dados do GETE.

Os resultados obtidos estão organizados em três seções. A primeira explora a emergência do corpo na análise geográfica, tomando como base um contexto internacional, a fim de instigar pesquisadores brasileiros por meio de caminhos geográficos já trilhados, mesmo que em outros contextos. Na segunda parte do texto estão registradas algumas trajetórias de pesquisas geográficas no Brasil sobre gênero e sexualidades, sendo que a terceira aborda a produção científica de raça/etnia. Esses temas estão profundamente relacionados com marcadores sociais dos corpos que hierarquizam os seres humanos e incidem nas suas experiências espaciais.

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Corpo e Espaço: algumas trajetórias geográficas

A imaginação geográfica capaz de questionar a relação entre corpo e espaço emergiu apenas no final do século XX e início do século XXI. Os corpos são materiais, possuem forma e tamanho e inegavelmente, 'ocupam' um espaço físico. Por meio de ações os corpos produzem mercadorias. Sendo assim, o estado corpóreo como saúde, doença, força física, capacidade reprodutiva e habilidades manuais são elementos de intensa associação entre corpo e sociedade e, portanto, espaço. Toda energia despendida e sua incorporação ao maquinário, bem como a divisão de tarefas que cada corpo executa, contém espaço, como propõe Callard (1998), ao examinar as contribuições do primeiro volume de O Capital de Marx aos estudos do corpo.

No entanto, mesmo tendo uma expressão material e incorporado pela teoria marxista, amplamente utilizada na Geografia, o corpo manteve-se como uma perspectiva irrelevante para o meio científico geográfico durante muito tempo, ganhando gradativamente importância na última década do século XX. McDowell (1999) alude para o fato de que o corpo recebeu atenção por parte da sociedade e também do meio científico devido às transformações materiais que foram produzidas, notadamente nos países industriais avançados.

A transformação da natureza do trabalho e do ócio, conforme McDowell (1999), situou o corpo no centro do interesse das pessoas e da sociedade, de modo que ele é tanto o motor do desenvolvimento econômico como fonte de prazer e dor individuais. O argumento da referida autora é de que com a transformação da economia industrial para uma economia de serviços, a corporeidade do trabalhador deixou de ser força muscular para ser convertida em produto de intercâmbio. Os trabalhos corporais relacionados com o setor de serviços formam parte de processos de intercâmbio que converte o 'corpo produtor' em um 'corpo desejante', capaz de dar vazão ao consumo crescente. O ócio nas sociedades pós-industriais desenvolveu várias atividades para criar e cultivar corpos esbeltos, saudáveis e desejantes, como as academias de ginásticas, clínicas de medicina genética e de estética, que realizam intervenções cirúrgicas para adequar os corpos aos padrões desejados de cada lugar. Além disso, a relação entre as indústrias de alimentos e farmacêuticas, ligadas aos distúrbios alimentares e ao sobrepeso da população, passou a ser alvo de discussões em torno da relação entre corpo e espaço.

As vertentes geográficas que realizaram esforços em problematizar a relação entre corpo e espaço foram as Feministas, Queer, Nova Geografia Cultural e a Fenomenológica. Foi justamente a desconstrução da herança moderna da oposição entre corpo e mente que construiu um caminho investigativo jamais visto antes. Longhurst (1997) no artigo '(Dis)embodied geographies' publicado na Progress Human Geography,realiza uma reflexão em torno das abordagens sobre o corpo e examina a contribuição da Geografia nesse processo, defendendo a ideia de que essa literatura emergente tem um imenso potencial para ampliar a compreensão do conhecimento sobre o poder e as relações sociais entre pessoas e lugares.

A vertente feminista volta sua atenção para o corpo apenas quando foi superada a tendência tradicional de não reconhecer a importância corporal ao pensar o ser humano. A tradição em negar o corpo nas análises de geógrafas feministas esteve fundamentada na ideia da supremacia da cultura na construção dos papéis de gênero e que o corpo, entendido até então enquanto algo estático, biológico e essencializado, era uma barreira ao avanço das lutas sociais, na medida em que os argumentos sobre a inferioridade feminina em relação aos homens esteve, em grande parte, sustentados pelo discurso médico e biológico, em torno das características corporais.

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No editorial escrito por Kirsten Simonsen (2000) sob o título 'The Body as Battlefield', no periódico Transactions of the Institute of British Geographers, a autora estabelece um interessante fio condutor para analisar a emergência do corpo como uma abordagem na Geografia, afirmando que, apesar de outros campos geográficos também terem contribuído para a abordagem do corpo, a contribuição feminista tem sido substancial. Ela realiza sua análise reunindo as contribuições de geógrafos em três eixos: 'As geografias do armário', 'Outros corpos' e 'Transcendendo dualismos'.

O primeiro eixo de abordagem geográfica exposto por Simonsen (2000) explora a forma como os corpos são constituídos e usados, tendo como preocupação a inscrição do poder e a capacidade de resistência dos corpos envolvendo as questões de performatividade, a política do corpo e o corpo como um local de contestação. Em particular, a luta feminista em torno do direito ao corpo-espaço envolvendo a sexualidade, aborto, gravidez e o medo da violência.

O segundo eixo baseado nas ideias do feminismo, do pós-estruturalismo e do pós-colonialismo aborda a necessidade de reconhecer as diferenças e as relações de poder corporificadas, ligadas à sexualidade, racialidade e origem étnica. A cultura dominante classifica e rotula valores e significados em torno de minorias étnicas, idosos, mulheres, negros, homossexuais, deficientes físicos, obesos, sempre considerados 'outros'. Os grupos dos 'outros' são definidos por seus corpos e normas sociais que os designam de formas degradantes como desviantes, impuros, feios, repugnantes, doentes, fora de ordem. Ao aprisionar o 'outro' em seu corpo, os grupos dominantes (tendo como referente o homem, branco, ocidental) estão aptos a tomar sua posição como sujeitos desincorporados, sem marcas, porque se constituem na referência positiva em que todos os demais são comparados. Essa abordagem tem evidenciado os espaços de dominação e de possibilidades de apropriação espacial por meio de lutas e movimentos para reconhecimento social.

O terceiro eixo de trabalhos tem tido a preocupação de desconstruir as dicotomias mente/corpo, mas também outras como cultura/natureza, essencialismo/construtivismo. A separação teórica entre mente e corpo é historicamente sexualizada. O feminino foi o polo corporal do dualismo, representado pela natureza, emocionalidade, irracionalidade e sensualidade, contrastando com o polo da mente, metaforicamente representado pelo masculino, que evoca o intelecto, racionalidade e autocontrole das emoções. Na relação dual e oposicional entre corpo (polo feminino) e mente (polo masculino), o corpo precisa ser comandado pela razão.

As reflexões em torno do desmantelamento da dicotomia corpo-mente, além de possibilitar estudos sobre a representação cultural dos corpos em diferentes contextos, também permitiu a emergência das ideias de instabilidade e fluidez das identidades corporais, ultrapassando a ideia de corpo, entendido tradicionalmente como algo fixo, para a ideia de corporeidade, a fim de produzir a perspectiva de mutabilidade e movimento.

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Uma relevante contribuição metodológica da superação da dicotomia mente-corpo foi a concepção de que o cientista, ser humano produtor de conhecimento, é corporificado e, assim, aquilo que é produzido como ciência se realiza de um determinado ponto de vista, de alguém que tem um corpo generificado e racializado. Novas formas de 'conhecer o conhecimento', ou seja, de novas epistemologias foram possíveis, notadamente o reforço da necessidade de que o 'conhecimento é sempre situado', conforme argumenta Haraway (1991). O conceito de 'conhecimento situado' tem sido um caminho teórico-metodológico bastante promissor nas Geografias Feministas, evidenciando que a pesquisa concreta se faz por cientistas que tem cor, gênero, corpo, sexualidade, posição politica e assim por diante. A posicionalidade de quem questiona o mundo é fundamental para conceber as perguntas passíveis de serem realizadas e, sendo assim, os resultados de uma trajetória de pesquisa deve conter a autoavaliação de como a posicionalidade da pessoa que investiga influencia nos resultados obtidos.

Obviamente, a abordagem do corpo na Geografia não ficou restrita às questões relativas à sexualidade. Os estudos são ricos e suas temáticas variadas. Houve pesquisas sobre o corpo e espaços de trabalho (MCDOWELL, 1995), nacionalidade e corpo (SHARP, 1996), saúde/doença, espaço e corpo, como em Moss e Dyck (2002), espaço e corpos gestantes (LONGHURST, 1996), corpo, raça e espaço como em Anderson (1996) e Gottschild (2003). Há ainda várias análises envolvendo corpo e cidade como os trabalhos de Pile (1996), Nast e Pile (1998), Jonhston (1996) e Smith (1992). Este pequeno número de referências certamente não reflete a totalidade de trabalhos na área e nem mesmo é fruto de um levantamento sistemático. Tem apenas a intenção de ilustrar alguns caminhos analíticos já explorados, evidenciando que a Geografia já percorreu longa trajetória de abordagem da relação entre corpo e espaço.

As geógrafas Lynda Johnston e Robyn Longhurst (2010) dedicaram um capítulo de seu livro sobre o corpo, intitulado 'Geografias íntimas'. Segundo elas, a Geografia pode analisar o corpo como espaço e o corpo no espaço, argumentando que nossos corpos fazem diferença em nossas experiências de espaço e lugar. Nosso tamanho, aparência, saúde, vestimenta, comportamento, sexualidade e práticas sexuais afetam a forma como nós nos apresentamos aos outros e também a forma como os outros nos representam. Assim, os corpos dissonantes das representações hegemônicas de gênero e práticas sexuais foram especialmente estudadas na chamada Geografia Queer, já que os corpos que não obedecem ao modelo dual da sexualidade heteronormativa constituem vidas 'fora de lugar'.

A relação entre corpo e espaço foi tema central do livro “Pleasure zones: bodies, cities, spaces”. No prefácio elaborado por Jon Binnie, Robyn Longhurst e Robin Peace, o corpo está claramente identificado com a perspectiva butleriana. Os geógrafos afirmam que embora o corpo apresente uma materialidade, tal materialidade é sempre constituída pelo discurso, assim como o espaço. Assim, tal como o corpo, o espaço também é produzido discursivamente. A materialidade do espaço apresenta toda força do discurso heteronormativo, mas também não é passível ao exercício do poder regulatório podendo apresentar fissuras pelas quais emergem as forças de subversão das normas estabelecidas.

O desenvolvimento das concepções de corpo na Geografia teve como grande protagonista os estudos das sexualidades e das racialidades. A Geografia atualmente traz a escala corporal como mais uma possibilidade de análise espacial, sendo que aqui no Brasil há vários estudos que indicam o desenvolvimento da abordagem do corpo, dado o perfil de crescimento de estudos sobre gênero, sexualidades e raça na geografia brasileira que serão abordados em seguida.

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Produção científica sobre gênero e sexualidades na geografia brasileira.

A estrutura da produção científica brasileira durante muitos anos seguiu centralizada e rigidamente hierarquizada, existindo apenas alguns importantes polos de produção de saber científico que estruturavam a pós-graduação brasileira. A falta de pluralidade temática e também teórico-metodológica era viabilizada pela estrutura de produção científica que sobrepunha um saber produzido por alguns centros sobre as demais áreas do país. Portanto, não é de se surpreender que durante quase duas décadas a Geografia Brasileira apresentasse um discurso monotônico e coeso, baseado nas lutas de classe. Outras categorias como gênero, raça e sexualidade não fizeram parte das preocupações da Geografia Brasileira, até os anos 90 do século XX.

O levantamento de dados realizado no Banco de Teses e Dissertações da CAPES e da biblioteca digital do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) aponta que foi apenas no século XXI que ocorreu um impulso baseado em categorias sociais como gênero, mulheres e sexualidades. O gráfico que se segue evidencia este argumento.

Gráfico 1 – Comportamento Temporal das Defesas de Dissertações e Teses no Brasil sobre gênero e sexualidades. Fonte: Banco de Teses e Dissertações da CAPES e IBICT.

Entre 1991 e 2011, houveram 40 trabalhos científicos defendidos nos programas de pós-graduação brasileiros, que envolveram os temas relativos a gênero e sexualidades. Neste mesmo período, segundo as informações disponibilizadas no Geocapes, foram defendidos nos programas de pós-graduação em Geografia brasileiros um total de 6.703 trabalhos científicos, sendo 3.992 dissertações de mestrado e 2.711 teses de doutorado. Os trabalhos na área de gênero e sexualidades no Brasil representam apenas 0,60% do total. Se estratificarmos os dados em termos de níveis de doutorado e mestrado, temos 0,87 % de dissertações e 0,18 % de teses defendidas no país. Mesmo que o número absoluto de trabalhos da área seja pequeno em relação aos totais produzidos no país, o ritmo de crescimento é intenso. Se comparados os períodos 1996 – 2000 e 2001 – 2005 pode-se observar um crescimento de 400%. A comparação entre o período 2001 – 2005 e 2006 – 2010 apresenta um crescimento de 262,5%. Se for considerado o primeiro período 1996 – 2000 e o último 2006 – 2010 pode-se apontar um crescimento de 1050% de trabalhos científicos produzidos no campo de gênero e sexualidades na Geografia Brasileira.

Outro traço característico da produção geográfica brasileira em torno do gênero, mulheres e sexualidades é que ela não se constituiu por hegemonias conceituais que podem ser identificadas em diferentes temporalidades, como apontado no trabalho de Oberhauser et. al. (2003). Há uma coexistência das categorias mulher, gênero e sexualidades que constituem esse campo de saber e inclusive são interdependentes, embora a categoria 'sexualidades' tenha sido abordada posteriormente as outras duas. A figura 1 ilustra esta tendência.

Figura 1- Configuração temporal das categorias mulher, gênero e sexualidades na Geografia Brasileira. Fonte: Banco de Teses e Dissertações da CAPES e IBICT.
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A pluralidade e coexistência das categorias mulher, gênero e sexualidades na produção científica brasileira evidencia alianças realizadas entre os pesquisadores da área, notadamente para o fortalecimento do campo frente à disciplina. A abordagem temática é também diversificada, embora o espaço urbano seja claramente privilegiado como referencial de análise As perspectivas teórico-metodológicas tampouco apresentam uma linearidade temporal como constatado por Oberhauser et. al. (2003) nos trabalhos de língua inglesa, evidenciando que a Geografia brasileira apresenta um caráter plural e de independência de diferentes grupos de pesquisas no país.

A produção científica de teses e dissertações é pulverizada espacialmente no Brasil, embora tenha um claro perfil periférico da produção científica e esteja concentrada nos cursos de pós-graduação mais jovens, fora dos centros tradicionais, como pode ser visto na figura 2 que segue:

Figura 2- Distribuição espacial de trabalhos científicos elaborados nas áreas de gênero, mulher e sexualidades no Brasil (1991-2011). Fonte: Banco de Teses e Dissertações da Capes e IBICT.

A distribuição geográfica das dissertações e teses defendidas e relacionadas aos temas de gênero, mulher e sexualidade, além dos aspectos de descentralização da pós-graduação brasileira e do processo de democratização do país, justifica-se também pelos elementos locais. Monk (2011), ao analisar a distribuição espacial mundial dos grupos de pesquisa de gênero, chama a atenção para a atuação de lideranças locais e das relações de poder em torno das tradições acadêmicas como importantes fatores a serem considerados para compreensão do fenômeno.

No Brasil, os centros tradicionais de produção de saber geográfico como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) não se constituíram em uma expressão no campo feminista e queer, embora o primeiro trabalho acadêmico na área de gênero, uma tese de doutorado, tenha sido defendido em 1991 na USP, de autoria de Sonia Alves Calió sob o título 'Relações de gênero na cidade: uma contribuição do pensamento feminista a Geografia Urbana', orientada por Maria Adélia Aparecida de Souza. Interessante observar que este trabalho pioneiro não abriu caminho para novas abordagens, pois foi apenas uma década depois que houve a defesa de outro trabalho, desta vez, uma dissertação de mestrado.

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Na UFRJ, o tema também não foi expressivo, pois houve apenas uma dissertação de mestrado defendida no ano 2000 de autoria de Jan Carlos da Silva sob o título 'Os territórios da Prostituição na cidade do Rio de Janeiro, 1841-1925'. Novamente foi necessário pouco mais de uma década para que o próximo trabalho fosse defendido na referida instituição. Trata-se da tese de doutorado de autoria de Marcio Jose Ornat sob o título 'Território Descontínuo e Multiterritorialidade na Prostituição Travesti através do Sul do Brasil', defendida em 2011. Em ambas universidades tradicionais (USP e UFRJ), importantes referências na produção geográfica brasileira, os campos feminista e queer não prosperaram. Foi nos cursos de pós-graduação mais recentes que tais abordagens foram desenvolvidas, como mostra a figura 2.

Pode-se apontar a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita – Presidente Prudente (UNESP) e a Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Tal como aponta Monk (2011), em locais tradicionais, a manutenção da hegemonia de determinadas formas de concepção geográfica e as fortes relações de poder no meio acadêmico inibem o apoio para a expansão dos estudos de gênero e sexualidades. Por outro lado, em locais onde as relações de poder são mais rarefeitas, como em jovens programas de pós-graduação, há maior possibilidade do surgimento e expansão da área. Enfim, a ideia de que a inovação surge nos grandes centros de produção científica e são reproduzidos na periferia acadêmica não pode ser confirmada no caso das Geografias Feministas e Queer. Em cada uma destas universidades citadas há um grupo de pesquisa que sustenta o ritmo de produção como o Grupo de Estudos Territoriais (GETE) na UEPG, o Laboratório de Estudos de Gênero, Étnico-raciais e Espacialidades (LAGENTE) na UFG, Centro de Estudos de Geografia do Trabalho (CEGET) na UNESP-Presidente Prudente e o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e as Relações de Gênero (GEPGENERO) na UNIR.

A subversão da ordem de inovação do discurso geográfico tem sido realizada pelos programas de pós-graduação mais recentes com a abordagem de gênero, mulheres e sexualidades e esta característica periférica da enunciação do discurso geográfico gera resistências à sua legitimação pela comunidade científica que valoriza a produção científica proveniente dos grandes centros.

Apesar da expansão dos trabalhos acadêmicos na modalidade de dissertações e teses, com abordagem de gênero, mulheres e sexualidades, o corpo não despertou interesse da Geografia no Brasil. A dissertação de mestrado de Natália Cristina Alves, defendida em 2010 sob o título 'A cidade inscrita no meu corpo: gênero e saúde em Presidente Prudente – SP' é pioneira na abordagem da relação entre corpo, gênero e espaço. Sua abordagem escalar da relação entre a cidade e o corpo constrói uma interessante possibilidade de imaginação geográfica.

Outra forma de análise sobre as transformações do padrão de produção científica na Geografia Brasileira, com base nas abordagens de gênero, mulher e sexualidades, pode ser realizada por meio das publicações em forma de artigos científicos.

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O Grupo de Estudos Territoriais da UEPG vem organizando um banco de dados em que estão armazenados atualmente 6.904 artigos, coletados a partir de periódicos científicos brasileiros disponíveis na internet e mantidos por instituições de cunho geográfico nos estratos A1, A2, B1 e B2, conforme o Sistema Qualis-capes. A classificação dos artigos por palavras-chave permitiu organizar informações sobre a produção científica brasileira por meio de termos de busca. Do total de 6.904 artigos, apenas 139 abordam temas sobre mulheres, gênero, sexualidades e raça/etnia, representando 2,05% do universo pesquisado. O gráfico que segue evidencia o movimento temporal dos artigos publicados.

Gráfico 2 - Comportamento temporal das publicações geográficas que abordaram questões de gênero. Período 1996 – 2012. Fonte: Sistema Qualis-capes, triênio 2010-2012 e respectivos periódicos científicos.

A abordagem de gênero é crescente na Geografia Brasileira, como evidenciado no gráfico 2. Em 1998 foi publicado um artigo de autoria de Rosa Ester Rossini sob o título 'As Geografias da Modernidade – Geografia e Gênero – Mulher, Trabalho e Família. O Exemplo da Área de Ribeirão Preto – SP' na Revista do Departamento de Geografia – USP. As sexualidades também foram abordadas recentemente pela produção científica em forma de artigos. O gráfico 3 ilustra esta transformação temporal.

Gráfico 3 - Comportamento temporal das publicações geográficas que abordaram questões de sexualidades entre 1990 – 2012. Fonte: Sistema Qualis-capes, triênio 2010-2012 e respectivos periódicos científicos

O primeiro artigo abordando as sexualidades foi de autoria de Rogério Botelho de Matos e Miguel Angelo Campos Ribeiro, publicado em 1995 pelo Boletim Goiano de Geografia sob o título 'Territórios da prostituição nos espaços públicos da área central do Rio de Janeiro'. O tema torna-se mais frequentemente discutido em periódicos científicos brasileiros na primeira década do século XXI.

A expansão dos temas de gênero e sexualidades ocorreu em grande parte pela criação de um periódico específico em 2010, a Revista Latino-americana de Geografia e Gênero. A figura 3 expressa essa configuração.

Figura 3- Distribuição de artigos científicos sobre gênero e sexualidades em periódicos científicos geográficos brasileiros. Fonte: Sistema Qualis-Capes, triênio 2010-2012 e respectivos periódicos científicos.

A concentração de artigos na área de gênero e sexualidades nos periódicos científicos Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, Revista Terr@ Plural e Revista Pegada, novamente corrobora os argumentos de Monk (2011) sobre a importância das lideranças locais no desenvolvimento do campo feminista, pois os dois primeiros periódicos são oriundos da Universidade Estadual de Ponta Grossa, sede do Grupo de Estudos Territoriais e o terceiro periódico é proveniente da UNESP- Presidente Prudente, sede do Centro de Estudos do Trabalho.

A produção sobre gênero e sexualidades, contudo, está concentrada em periódicos qualificados nos estratos B1 e B2, conforme o Sistema Qualis-Capes, como pode ser evidenciado no gráfico que segue.

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Gráfico 4- Distribuição de artigos científicos sobre gênero e sexualidades segundo o Sistema Qualis-capes. Fonte: Sistema Qualis-capes, triênio 2010-2012.

Tal como a abordagem de gênero não tem sido desenvolvida nos centros de maior prestígio acadêmico, os artigos de gênero, mulheres e sexualidades não tem conseguido acessar os periódicos científicos classificados nos estratos mais altos pelo Sistema Qualis-capes (A1, A2), o que evidencia uma desvalorização da temática pelos instrumentos legitimadores da academia. Além disso, apesar do crescimento de publicações, ela está concentrada em periódico científico específico, o que produz um isolamento na produção científica do grupo de pesquisadores da temática em foco.

Embora a sede dos periódicos científicos que publicam a maioria dos artigos sobre gênero, mulheres e sexualidades esteja localizada em cidades sede dos grupos de pesquisa que têm se dedicado à temática, a distribuição espacial das procedências institucionais dos autores é mais pulverizada e, inclusive, internacional. Isso evidencia que a temática já possui um diálogo internacional, mesmo sem ter aberto diálogo com os centros hegemônicos no próprio território nacional, tamanha resistência do campo científico brasileiro à temática. O comportamento de diálogo científico rompe mais uma vez com o modelo hierárquico nacional de organização da produção científica, constituindo uma relação entre a periferia acadêmica e o exterior, sem passar pelos centros dominantes nacionais.

A figura 4 que segue é ilustrativa da configuração espacial de produção científica na área de gênero, mulheres e sexualidades. Com base na procedência institucional dos autores que publicam na área em foco, é possível afirmar que nos locais onde existe maior número de instituições de nível superior, como é o caso de Rio de Janeiro e São Paulo, a produção é pulverizada, fruto do trabalho de pesquisadores isolados, e isso dificulta o apoio e a formação de grupos de pesquisa, o que potencializa a permeabilidade da ciência geográfica aos temas em pauta. Nos locais onde há um número menor de instituições, a dinâmica de produção é mais concentrada espacialmente e intensiva. Isso tem potencializado o caráter colaborativo que se faz pelas alianças entre pesquisadores. Essa forma de organização espacial potencializa as discussões teóricas e metodológicas ao mesmo tempo em que a proximidade espacial fortalece os pesquisadores para lutar pela abertura do campo na Geografia Brasileira.

Figura 4- Procedência das autorias dos artigos científicos publicados sobre gênero e sexualidades na geografia

O diálogo internacional é mais forte com os países europeus, notadamente com pesquisadores de instituições espanholas. A configuração espacial de procedência institucional dos autores na área de gênero, mulheres e sexualidades evidencia que os locais em que se constituíram alianças, redes e grupos de pesquisa, a produção científica na área frutificou e foi capaz de tensionar as fronteiras teóricas e metodológicas da Geografia Brasileira.

O corpo aparece nos artigos científicos de periódicos nacionais em 2008, com o artigo de Joseli Maria Silva na Revista Geouerj com o título 'A cidade dos corpos transgressores da heteronormatividade' e, em 2010, a mesma autora publica na Revista Espaço e Cultura o texto 'Geografias Feministas, Sexualidades e Corporalidades: desafios às práticas investigativas da Ciência Geográfica'. Após 2010, a Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, passou a concentrar a maior parte da produção geográfica sobre corporalidades.

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Mesmo frente ao desenvolvimento das abordagens sobre mulheres, gênero e sexualidades, o corpo e sua relação com o espaço é ainda um vasto campo a ser explorado pela Geografia Brasileira, que deve trazer inúmeros desafios à nossa restrita imaginação geográfica. Afinal, não se pode negar que o corpo ocupa, mas, também, é espaço. Sendo assim, é passível de ser abordado na Geografia. Contudo, é necessário que sejam levantados os questionamentos e que a comunidade geográfica brasileira construa os caminhos teóricos e metodológicos capaz de construir a compreensão do corpo e sua geograficidade.

Produção científica sobre racialidades na geografia brasileira

O comportamento do padrão de desenvolvimento da produção científica que envolve raça na geografia brasileira é muito similar ao verificado nas abordagens de gênero e sexualidades, analisado na seção anterior. Inclusive, há eixos de importantes interseções entre gênero e raça produzidos no Brasil. Essa produção científica interseccional apresenta-se como uma importante contribuição na complexificação das análises de gênero, enriquecendo as possibilidades de interpretação e tensionando os limites geográficos estabelecidos até então na geografia brasileira. A dissertação de mestrado de Antonia dos Santos Garcia, defendida na Universidade Federal da Bahia, sob o título 'As mulheres da cidade d'oxum: relações de gênero, raça e classe e organização espacial do movimento de bairro em Salvador – BA', é um estudo pioneiro.

O incremento desta perspectiva interseccional entre raça e gênero foi realizado pela Universidade Federal de Goiás, junto ao LAGENTE, havendo uma série de estudos desenvolvidos de forma sistemática. Em 2007, foi defendida a dissertação de mestrado de Lorena Francisco de Souza, sob o título de 'Corpos negros femininos em movimento: trajetórias socioespaciais de professoras negras em escolas públicas'. Em 2008, foi defendida outra dissertação de mestrado de autoria de Renata Batista Lopes, com o título 'De casa para outras casas: trajetórias socioespaciais de trabalhadoras domésticas residentes em Aparecida de Goiânia e trabalhadoras em Goiânia'. Em 2010, já em nível de doutorado, houve a defesa da tese de Marise Vicente de Paula, intitulada 'Sob o manto azul de Nossa Senhora do Rosário: mulheres e identidade de gênero na congada de Catalão (GO)'.

Outras produções científicas sobre a interseccionalidade de raça e gênero também foram produzidas em outros programas, contudo, de forma esporádica, como é o caso da dissertação de Patrício Pereira Alves de Sousa, defendida em 2011 na Universidade Federal de Minas Gerais com o título de 'Corpos em drama, lugares em trama: gênero, negritude e ficção política nos congados de São Benedito (Minas Novas) e São José do Triunfo (Viçosa) – MG'. Outra dissertação de mestrado envolvendo elementos interseccionais, também defendida em 2011 na Universidade Federal da Paraíba, é de autoria de Jussara Manuela Santos de Santana, intitulada 'Territorialidade quilombola: um olhar sobre o papel feminino em Caiana dos Crioulos, Alagoa Grande – PB'.

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Para além, do campo interseccional da relação entre gênero e raça, os estudos de racialidades tiveram impulso na produção em torno das negritudes, envolvendo outros elementos que se interceptam pela raça. Na abordagem do espaço urbano, os estudos evidenciam a relação entre raça, exclusão e pobreza, realizando propostas de enriquecimento na análise das cidades e em espaços intraurbanos. Importantes estudos pioneiros, produzidos nos anos 90, podem ser apontados. Um deles analisa uma realidade externa ao Brasil, que é a dissertação de mestrado de Regina Coeli Zuma De Hoorn, defendida em 1994 na UFRJ, com o título 'Espaço e Segregação Residencial em Harare - Zimbábue: Passado e Presente'. Sobre o Brasil, há a dissertação de mestrado defendida em 1998 por Andrelino de Oliveira Campos, intitulada 'Do quilombo à favela: o tráfico de drogas enquanto estratégia de sobrevivência ilegal nos marcos de uma ordem segregacionista'. Posteriormente, nos anos 2000, há uma expansão da abordagem das racialidades, envolvendo os tensionamentos em torno da produção da cidade e o enriquecimento das abordagens por meio de elementos da cultura negra como festas, ritmos musicais e práticas religiosas.

Outro importante eixo de análise da relação entre espaço e racialidades foi a abordagem das populações tradicionais, incorporando com mais intensidade os grupos indígenas, além dos negros. Os estudos exploram as tensões em torno dos elementos de sobrevivência e sua dependência com os elementos da natureza, como o acesso e manutenção da terra, modos de produção e manifestações culturais. Um estudo pioneiro foi a dissertação de mestrado defendida em 1996 de autoria de Alessandro José Prudêncio Ratts, intitulada 'Fronteiras invisíveis: territórios negros e indígenas no Ceará'.

Os anos da primeira década do século XXI foram produtivos no desenvolvimento dos estudos de racialidades que acompanhavam um crescimento simultâneo dos movimentos sociais em busca de construir políticas afirmativas para promoção da igualdade racial no Brasil. Além de pesquisas que denunciaram a situação de exclusão espacial e de lutas de negros e indígenas por conquistas sociais, houve ainda estudos que analisaram as políticas implantadas pelo governo brasileiro para diminuição de desigualdades e do preconceito racial. São exemplos dessa tendência de estudos geográficos a tese de doutorado defendida em 2006 na Universidade Federal Fluminense por Renato Emerson Nascimento dos Santos com o título de 'Agendas & agências: a espacialidade dos movimentos sociais a partir do Pré-Vestibular para Negros e Carentes', bem como a dissertação de mestrado de Viviani de Mattos Marcelino, defendida em 2009 na UERJ e intitulada 'Ecos do Atlântico Negro: A Lei 10.639/03 e as atribuições do campo do saber sob a ótica da geografia cultural'.

O total de 50 pesquisas produzidas no âmbito da pós-graduação brasileira, apresenta uma concentração na primeira década dos anos 2000, como pode ser visualizado no gráfico 5, 82 % do total são dissertações de mestrado e 18 % teses de doutorado. Se consideramos o total de teses e dissertações defendidas no Brasil na área de Geografia, entre 1991 e 2011, ou seja, 6.703 trabalhos, pode-se afirmar que as pesquisas sobre raça e etnia representam apenas 0,75%.

Gráfico 5 – Dissertações e teses com temas relativos à Raça/Etnia, defendidas no Brasil (1990-2011). Fonte: Banco de teses e dissertações da Capes e do IBICT.
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O papel de figuras de liderança acadêmica e a formação de grupos de pesquisa locais é um elemento fundamental para o incremento de áreas pouco reconhecidas no âmbito acadêmico, como discute Monk (2011). A força do tensionamento das tradicionais estruturas acadêmicas é mais intensa quando se verifica a formação de redes de apoio em torno de pesquisadores, possibilitando a construção conjunta de conceitos e caminhos metodológicos, bem como proteção contra os tradicionais desmerecimentos de pesquisas que abordam temas de fronteira científica. Na figura 5, destaca-se o papel da Universidade Federal de Goiás, na qual funciona o LAGENTE.

Figura 5 - Distribuição espacial da produção científica sobre Raça e Etnia nos programas de pós-graduação em Geografia no Brasil (1994-2011)

Além da produção científica no formato de teses e dissertações, há ainda que se considerar a produção de artigos científicos. O gráfico 2 evidencia a mesma tendência da publicação de artigos sobre gênero e sexualidades, já tratado na seção anterior, ou seja, uma emergência nos anos 90 e um incremento no século XXI. Essa semelhança de comportamento do desenvolvimento dos temas raça/etnia, gênero e sexualidades evidencia que há transformações epistemológicas no campo geográfico que estão tensionando o campo a considerar as diferenças de grupos sociais que vão muito além das estruturas capitalistas, mas a incorporam e constroem maior capacidade compreensiva da realidade social.

Gráfico 6 - Publicações de artigos científicos sobre raça/etnia (1990-2012). Fonte: Sistema Qualis da Capes, periódicos científicos relativos ao triênio 2010-2012.

A produção científica indicada no gráfico 6 na década de 90 esteve concentrada no periódico científico 'Estudos Avançados', mantido pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Esta revista, embora não seja mantida por uma entidade geográfica, foi um importante veículo para publicações de geógrafos (as) brasileiros(as). Contudo, cabe aqui uma ressalva, pois os artigos sobre raça/etnia publicados neste veículo, bastante considerado na área de geografia, foram, em sua maioria, de não geógrafos como historiadores, antropólogos e críticos literários. Na década de 90, há apenas um geógrafo que publicou sobre o tema, de origem alemã, e retratou o grupo de suábios no Paraná. Portanto, a década de noventa, apesar de apresentar alguns artigos científicos, não se pode afirmar que a produção seja geográfica.

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Foi apenas no século XXI que pesquisadores brasileiros do campo da geografia passaram a publicar suas pesquisas sobre o tema, aumentando gradativamente a intensidade de publicações. A produção científica publicada sobre raça/etnia apresenta-se concentrada em poucos periódicos, tal como verificado na seção anterior quando foi tratado do tema de gênero e sexualidades. Os principais veículos científicos que acolhem artigos desta natureza são a Revista Latino Americana de Geografia e Gênero, Revista Ateliê Geográfico (UFG) e Estudos Avançados (USP), como pode ser visto na figura 6.

Figura 6 - Distribuição espacial da produção científica sobre Raça e Etnia no Brasil, segundo a origem institucional do Periódico Geográfico

Outra importante característica da produção científica sobre raça/etnia é que ela está mais concentrada em periódicos científicos de menor prestígio acadêmico, como pode ser visto no gráfico 7.

Gráfico 7 - Distribuição de artigos científicos sobre gênero e sexualidades de acordo com o Sistema Qualis da Capes. Fonte: Sistema Qualis da Capes, periódicos científicos relativos ao triênio 2010-2012.

A pouca representatividade do tema nos veículos científicos considerados mais qualificados pelo Sistema Qualis-Capes é um importante sintoma da resistência dos campos consagrados da Geografia em acolher a temática de estudo.

Considerações finais

Este texto foi escrito com o objetivo de registrar uma produção científica ainda pouco abordada da geografia brasileira. David Bell (2011) questionou sobre como as comunidades científicas, ao narrarem sua própria história, produzem invisibilidades. Assim, acreditamos que este texto seja uma contribuição para enriquecer a história do pensamento geográfico brasileiro. Apesar de pouco representativa, há pesquisadores que se dedicam aos temas de gênero, sexualidades e raça/etnia e merecem o registro de sua produção na historiografia nacional. Assim, quem sabe, as disciplinas de História do Pensamento Geográfico ou Epistemologia da Geografia possam olhar para a historiografia da geografia brasileira com um olhar questionador e, ao mesmo tempo, esperançoso de nossas potencialidades de pesquisa.

Ao finalizar este texto, é impossível não deixar de questionar o perfil eurocêntrico e androcêntrico da geografia brasileira. Os negros já constituem mais da metade da população brasileira tal como as mulheres. O que justifica tamanha expressão social e, portanto, espacial, frente aos silêncios e ausências temáticas aqui evidenciadas no contexto científico geográfico brasileiro? Certamente, os conceitos e métodos hegemônicos consagrados no campo científico geográfico estão em xeque, necessitam renovação para produzir visibilidades sociais tão urgentes na sociedade brasileira. Um caminho renovador pode ser a compreensão entre corpo e geografia. Certamente, o corpo não é algo que pertence ao ser humano, mas é o próprio ser, que ganha existência social por meio da experiência corpórea. Toda experiência corpórea é espacial. O corpo é também lugar onde um ser humano desenvolve a noção de limite com os outros seres e a forma que esse corpo se apresenta e ao mesmo tempo é percebido pelos outros varia de acordo com o espaço e o tempo que o compõem. Nesse sentido, a Geografia tem um longo e instigante caminho científico a ser percorrido.

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Referências

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Foi utilizado o mesmo conjunto de palavras de busca tanto para os artigos como para as teses e dissertações. Para gênero e sexualidades foram: 'travesti', 'sexo', 'gay', 'lésbica', 'homossexualidade', 'homoerotismo', 'sexualidade', 'LGBT', 'diversidade Sexual', 'queer', 'prostituição', 'gênero', 'masculinidade', corpo e 'mulheres' As palavras de busca para raça e etnia foram: 'negros', 'negritude', 'racial', 'racismo', 'afrodescendência', 'raça', 'etnia'.

A ideia de performatividade é baseada em Butler (2003 e 2005), entendida como sendo normas socialmente construídas que se impõem às pessoas e são incorporadas por elas em atos repetitivos no cotidiano.

Conforme a Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (CAPES), a pós-graduação em geografia no Brasil é muito recente. O primeiro curso foi criado em 1971 na Universidade de São Paulo e, em 1972, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em meados dos anos 90 o Brasil contava com 11 cursos de pós-graduação na área de geografia e, em 2011, passou a ter 47.

É importante registrar que o banco de dissertações e teses da Capes disponibiliza os dados apenas a partir de 1987.

As palavras de busca foram: 'Travesti', 'Sexo', 'Gay', 'Lésbica', 'Homossexualidade', 'Homoerotismo', 'Sexualidade', 'LGBT', 'Diversidade Sexual', 'Raça e Etnia', 'Queer', 'Prostituição', 'Gênero', 'masculinidade', corpo e 'mulheres'

Foram encontrados 101 artigos sobre gênero (sendo 4 sobre masculinidades e 97 sobre feminilidades, 35 sobre sexualidades. Houveram ainda 3 artigos sobre raça/etnia que não tinham relação com sexualidades e gênero, como pode ser visto no apêndice 3)

A escala de intensidade de publicação de artigos para a elaboração da figura foi estabelecida a partir de intervalos naturais dos dados. Outra informação para a compreensão da figura é que as cidades Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador concentram várias instituições de procedência dos autores e assim o tamanho das esferas é resultado da somatória dos artigos publicados em diferentes instituições localizadas nestas cidades.

Embora pautada em conceitos geográficos, a tese foi produzida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Antropologia Social) – USP

Trata-se do artigo do geógrafo Gerd Kohlhepp, da Universidade Tübingen, intitulado 'Espaço e etnia'.

Dado da Secretaria de Assuntos Estratégicos –SAE) (http://www.sae.gov.br/site/)