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Geografia, Trabalho e Gênero: as trabalhadoras da educação em Goiás

Carmem Lúcia Costa

Introdução

Neste artigo apresentamos alguns resultados da pesquisa “A Feminização e a Precarização do trabalho docente em Goiás”, cujo objetivo foi o de analisar a feminização como estratégia de precarização do mundo do trabalho, com ênfase no trabalho docente, que é uma atividade historicamente construída como de mulheres e está associada ao cuidado, ao amor e à vocação. A pesquisa supracitada realizou coleta de dados junto à Secretaria Estadual de Educação do Estado de Goiás, ao Sindicato dos Trabalhadores da Educação em Goiás, ao Ministério da Educação e à Secretaria do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola/UFG/SECADI/UAB – ofertado entre os anos de 2011 a 2013 em sete cidades goianas para professores e professoras da rede pública. Realizamos, ainda, entrevistas com professoras de escolas da rede estadual de educação em Catalão no intuito de compreendermos como a precarização do mundo do trabalho docente alcança a vida cotidiana destas trabalhadoras.

Gênero e o mundo do trabalho

Gênero é uma construção histórica do que é feminino e masculino, dentro da ordem do patriarcado que determina as relações entre homens e mulheres a partir da dominação e da exploração, seja no campo do trabalho ou das relações sexuais, estabelecendo uma heteronormatividade (Silva, 2009), um lugar para homens e mulheres, um conjunto de regras e padrões a serem seguidos dentro da lógica do patriarcado, entendido por Saffioti (2004) como a conversão da diferença sexual em diferença política, produzindo uma dominação masculina na forma de conceber, perceber e viver o mundo. O patriarcado é anterior ao modo de produção capitalista, no entanto, persiste enquanto prática para justificar a exploração da mulher no espaço produtivo e na extração de mais-valia social no espaço reprodutivo. Para tal, o patriarcado estabelece uma diferença espacial entre o público – lugar do homem e do exercício do poder - e o privado – lugar da mulher.

O espaço privado é historicamente construído como o reino das mulheres que cuidam da família para garantirem o trabalho do homem e a reprodução dos filhos; é também “...um lugar de submissão às regras industriais e a ‘dona de casa’, uma reprodutora da lógica do capital.” (Nogueira, 2006, p.171. Grifos da autora). No entanto, a reestruturação produtiva e do mundo do trabalho no capitalismo tem colocado em questão os lugares, uma vez que a mulher é cada vez mais “chamada” a ocupar o espaço público, no entanto, sem assumir o poder e sem mudar as relações estabelecidas pelo patriarcado. Hirata (2002) aponta o aumento da feminização do mundo do trabalho com a permanência do maior número de mulheres em postos de trabalho precarizados, terceirizados, em tempo parcial, subcontratações, informalidade e outros, reproduzindo a lógica da dominação e da exploração.

Chamon (2005), ao refletir sobre a situação da mulher na sociedade capitalista, argumenta que existem dois aspectos que justificam o poder e a subordinação nas relações de gênero. Para a autora,

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O primeiro desses aspectos – o poder – está diretamente relacionado à disponibilidade de oportunidades que os homens têm para adquirir e intensificar o poder pessoal. Já as mulheres lhes garantem, com o seu trabalho na esfera privada, as condições de subsistência, o que transforma a diferença em desigualdade.

O segundo aspecto dessa questão dá-se pela legitimação das relações de dominação masculina e subordinação feminina. A legitimação é instituída, por uma percepção ideológica e assume a característica de verdade universal que confere a essas relações a aparência de imutáveis. Tais relações passam a integrar o sistema de crenças e o imaginário social de contextos culturais diferenciados. (p.26-27)

É contra estas questões de dominação, subordinação e exploração que se constrói uma luta por reconhecimento e emancipação no movimento feminista que surge e se consolida como um dos mais expressivos do século XX. “Os estereótipos das relações de gênero eram fortemente demarcados, e o ideal de feminilidade se enclausurava nos restritos limites da vida doméstica, nas mais diferentes classes sociais.” (Chamon, 2005, p.39). A luta é ampliada à medida que as mulheres ocupam os postos de trabalho no mundo industrial e no setor de serviços, estabelecendo outras atribuições no espaço produtivo, inclusive a de chefes de família, responsáveis por prover e manter lares sozinhas.

Neste contexto, “era necessário construir um ‘ser mulher’ um ‘sujeito feminino’ que fosse capaz de identificar as suas especificidades e lutar para que elas fossem consideradas enquanto tal.” (Nogueira, 2000, p.218 – grifos da autora). Assim, o movimento feminista se consolida e amplia as suas bases de luta, incorporando as questões de etnia, renda, escolaridade e identidades de gênero em sua pauta, contribuindo para uma ampliação do debate sobre a situação da mulher e de outras identidades. E, cada vez mais, as mulheres lutam por direitos iguais com relação à diferença e a necessidades específicas, inclusive no mundo do trabalho.

Nos dias atuais ainda são muitos os desafios na luta pelo direito à diferença e pelo respeito à diversidade. Hirata (2011), em estudo realizado sobre as condições da trabalhadora na sociedade atual no Brasil, na França e no Japão, ressalta que as mulheres ganham menos que os homens, trabalham em cargos com pouco reconhecimento, sem muitas expectativas de ascensão profissional e sem o respeito aos direitos conquistados. A autora argumenta, ainda, que quando cruzamos estes dados com os dados referentes à renda e à etnia, observamos que a maioria de mulheres pobres é negra e chefe de família.

Hirata (2011, p.14) argumenta, ainda, que,

Do ponto de vista das transformações da divisão sexual do trabalho, pode se dizer que tal processo é bastante importante, porque aponta para uma diversidade muito grande de formas de trabalho no momento atual. O processo de globalização tornou mais nítida a diversidade, pois justamente nesse processo as desigualdades entre os sexos, entre classes sociais e entre raças aparecem de uma maneira mais visível. Elas são dimensões importantes a serem analisadas em relação com os movimentos de precarização, pois apontam para um movimento simultâneo de concentração de riqueza e aumento da pobreza.

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Nesse sentido, observamos que, mesmo após anos de luta pela emancipação e pelo direito à inserção no mercado de trabalho, estes elementos tornam-se centrais no movimento de precarização, em que uma das dimensões é a feminização do mundo do trabalho, colocando milhares de mulheres em todo o mundo em situação de miséria, de abandono, de sem teto, de chefes de família sem emprego ou em empregos parciais, ainda mais precarizados. Quanto ao mundo do trabalho, a precarização alia-se ao patriarcado, colocando as mulheres em jornadas duplas, em papéis múltiplos e atribuições variadas que sobrecarregam e ampliam a exploração.

Ainda de acordo com a autora, “o aumento do emprego feminino a partir dos anos noventa é acompanhado do crescimento simultâneo do emprego vulnerável e precário, uma das características principais da globalização numa perspectiva de gênero.” (HIRATA, 2011, p.14). Concordando com Hirata, argumentamos que a feminização é também um instrumento de precarização do mundo do trabalho, contribuindo para o rebaixamento geral de salários. Associada a outras formas de reestruturação e precarização do mundo do trabalho, a feminização é acompanhada por terceirização, contratos temporários, entre outros que colocam a classe trabalhadora em condições difíceis e aumentam a miséria.

Dentre as diferentes ocupações no mundo do trabalho que as mulheres vêm assumindo, algumas possuem características ainda mais perversas, baseadas no patriarcado e na heteronormatividade que estabelece o que é lugar de mulher – ou profissão de mulher – e lugar de homem. A docência é um destes “lugares de mulher”, o que justifica a nossa pesquisa. Os dados que coletamos demonstram esta situação em Goiás e nos permitem avaliar a precarização no mundo do trabalho docente e da vida destas professoras.

Feminização, precarização e docência

Entendemos que a feminização do trabalho docente, abordado por autores como Santos (2009) e Chamon (2005), entre outros/as, pode ser observada pelo número de trabalhadoras na educação que cresce a cada ano em relação direta com o desprestígio da carreira, principalmente no ensino infantil e fundamental. Além dos fatores econômicos, o status social ligado à carreira docente lembra, ainda, alguns elementos sociais do trabalho que passou a ser uma representação do determinismo biológico. Assim, empregos que exigem força, cálculos, administração e outros, são atributos associados ao papel masculino; por administrar o lar, os empregos voltados para o cuidado e a educação passaram a ser associados ao papel da mulher e seus “atributos”, como amor, cuidado, zelo, o que permitiu a inserção desta no mercado de trabalho à medida que o capital amplia a sua reprodução em atividades como educação, saúde e beleza.

Chamon (2005), em sua obra “Trajetória de feminização: ambiguidades e conflitos”, argumenta que o papel da mulher na sociedade e a sua inserção no mundo do trabalho, majoritariamente na educação, só podem ser compreendidos através das reconstruções e transformações sociais que perpassaram ao longo da história e, ainda, que há uma apropriação da educação por parte das mulheres como uma possibilidade de emancipação social. Portanto, para essa autora, esse é um dos principais motivos presenciados na feminização da Educação brasileira.

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É importante salientar que o sistema de instrução de ensino público permite estabelecer uma ligação entre a divisão do trabalho e a organização de seu funcionamento, pois a profissão de professor do magistério não era uma ocupação feminina, os professores eram, em sua maioria, homens chamados de mestres, que tinham como tarefa o ofício de ensinar (Chamon, 2005). O projeto de universalização da educação básica no país para atender a interesses do capital coloca na responsabilidade do Estado a função oferecer a educação escolar, exigindo mais professores para realizarem esta tarefa. Nesse momento, a feminização aparece como estratégia de precarização do trabalho docente.

Esses fatores econômicos e sociais e de reconhecimento, enquanto área profissional, contribuíram para a evasão dos homens da educação, permitindo a inserção da mulher nesse mercado de trabalho. Assim, os homens e mulheres que se mantiveram nesse espaço, exerciam a profissão em períodos temporários, como em épocas de colheitas, já que era um serviço particular, e mal pago. Conforme Chamon (2005, p.49),

A organização do ensino público tornava-se cada vez mais direcionada à mulher, uma vez discriminada pela sua inserção no mercado de trabalho, agora sofre uma inversão de papeis quanto ao que poderia exercer. Tal oportunidade representava a possibilidade de liberdade financeira, de sair do lar e encontrar uma oportunidade fora das atividades domésticas, já que os homens abandonavam gradativamente e aos poucos a educação.

A mulher viu-se, então, com a possibilidade de apropriar-se da “doce missão de ensinar”, sendo uma missão digna para ela, já que os serviços que exercia eram semelhantes, como a educação de seus filhos. A docência é vista, nesse sentido, como um prolongamento das atividades exercidas de mãe, chamadas de “instrutoras da infância e guardiã dos valores sociais vigentes”. (CHAMON, 2005, p.52)

Enfim, a docência construía-se como um papel sagrado, tipicamente feminino e, portanto, assumia, também, o carácter de “complementação” no orçamento doméstico, o que contribuía, ainda mais, para uma desvalorização salarial. Assim, a feminização do magistério tem início quando o Estado assume a educação formal e amplia os quadros, reduzindo salários, precarizando as condições de trabalho e consolidando a ideia de que o salário de um docente é apenas um complemento na renda familiar. A educação consolida-se, então, como uma profissão de mulher, assim como outras atribuições dentro da escola – a faxineira, a cozinheira, a recreadora.

As décadas de 1980 e 1990 são o momento em que a precarização do trabalho docente se agrava em função da reestruturação produtiva e das relações de trabalho em nível mundial. A partir disso, tornam-se expressivas e decisivas para a educação no Brasil e em outros países pobres a interferência de organismos internacionais de financiamento, tanto no sistema produtivo quanto na educação. Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO) e outros, vêm interferindo, desde então, fortemente nos rumos da escolarização e na formação de seus profissionais, ditando diretrizes que interessam ao grande capital, com objetivos claros de formação de mão de obra para os mercados, reforçando a alienação, a destruição das culturas populares e a consolidação do modo de vida urbano da sociedade de consumo em grande escala.

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O Neoliberalismo e a acumulação flexível estabelecem ainda mais a precarização no mundo do trabalho e a diminuição de conquistas trabalhistas, abrindo a possibilidade de expansão da contratação temporária, redução de salários, aumento das jornadas de trabalho, aumento da idade para aposentadorias, entre outras perdas por parte dos/as trabalhadores/as. Este processo, ainda em curso, abre a possibilidade de contratação de professores sem concurso público e sem formação superior para escolas públicas, os chamados “pro-labores”, entre outros atos que aumentam a pressão sobre os/as docentes e desarticulam a luta por melhorias salariais. Os dados mostram que as mulheres são maioria entre os contratos temporários na educação em Goiás, seja na sala de aula ou em outros cargos na escola.

De acordo com dados do Educacenso de 2011, no Brasil a feminização alcança o índice de 80,7%, e, em Goiás, 83,9% na Educação Básica. No ensino infantil estes índices aumentam nas escolas públicas e privadas chegando a 91% de mulheres em todo o país. No ensino fundamental e no ensino de jovens e adultos a mulher continua maioria. No ensino médio, em que temos o aumento das disciplinas do campo do conhecimento estabelecido como masculino – biologia, química, física, etc –, o número de professores homens aumenta, mas as mulheres continuam maioria. Em escolas da rede particular, observamos esta tendência, porém, com uma presença maior de homens com salários mais altos, o que se dá em função de uma valorização diferenciada (disciplina, turmas, local de origem, etc).

Na universidade, ao contrário, até o início do século XXI, as mulheres eram minoria. Os salários mais elevados e o status da academia restringia a inserção da mulher neste espaço de disputas políticas. No entanto, nos últimos anos as perdas salariais, o desprestígio da carreira e as perdas trabalhistas – principalmente em universidades públicas – corroboraram para o aumento das mulheres neste lugar. Contudo, Joseli Silva desenvolveu uma pesquisa que comprova que, mesmo estando na universidade, as mulheres ainda são minoria nas publicações acadêmicas com qualis A e em projetos de pesquisa com financiamentos por agências de fomento. Condições que podem ser compreendidas na vivência do ser mulher com as múltiplas atribuições que são relatadas por várias companheiras da docência de várias fases.

Durante a pesquisa em Goiás, observamos que dados coletados nas escolas de Catalão referentes ao vínculo empregatício mostram que cada unidade escolar possui em média 2,35 trabalhadores/as contratados/as temporariamente e que, em sua maioria, 72,2% é de mulheres. Os cargos ocupados são majoritariamente na sala de aula (pró-labore), na vigilância, na limpeza e na cozinha. Estas trabalhadoras possuem remuneração de um a, no máximo, dois salários mínimos e com direitos dilapidados nesse processo, uma vez que os contratos são de um ano e sem direito a férias, décimo terceiro, multa por demissão e outros. Esse dado é um dos contornos que nos mostra a face da feminização e precarização do trabalho docente no Estado de Goiás. Assim como em Catalão, em praticamente todas as escolas da rede estadual em Goiás há trabalhadores/as temporários nas áreas citadas; com a reestruturação da educação realizada pela política adotada no ano de 2011, muitos destes contratos foram finalizados, principalmente os de professores/as.

A partir dessas relações, entendemos que a precarização que está posta na Educação esconde estereótipos que reforçam a feminização das divisões do trabalho, como afirma Nogueira (2010) que “a precarização do trabalho tem sexo” e que é necessária para a manutenção do capital.

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Docência e vida cotidiana – enfrentamentos no caminho da emancipação

Ao realizarmos a pesquisa entendemos que a precarização do trabalho possuiu uma realização na vida cotidiana que tem contribuído para precarizar também a vida, os espaços-tempos fora do trabalho. Lefebvre (1991) ao argumentar sobre a importância dos estudos da vida cotidiana lembra que a mesma sempre foi negligenciada em sua essência transformadora. Estudar a vida cotidiana nos abre a possibilidade de compreendermos as estratégias de sobrevivência em um espaço-tempo programado de forma distante das necessidades dos sujeitos, a partir de políticas elaboradas de acordo com a lógica do capital, do patriarcado e que encontram um limite na reprodução da vida, que escapa aos controles, ao programado, ao racional, explodindo em “estratégias de sobrevivência” como nos mostra Michel de Certeau (1996).

Para Lefebvre, a vida cotidiana apresenta dois quadros. A miséria “com os trabalhos enfadonhos, as humilhações, a vida da classe operária, a vida das mulheres sobre as quais pesa a cotidianidade.” (1991:42). Aqui a condição de mulher trabalhadora aparece em toda a sua precarização, como vimos e veremos nos depoimentos de mulheres que precisam dar conta do trabalho no espaço produtivo e reprodutivo, no reino do número e do repetitivo. O outro quadro é a grandeza da vida cotidiana, “A vida que se perpetua, estabelecida sobre este solo. A prática incompreendida: a apropriação do corpo, do espaço e do tempo, do desejo.” (1991:42). Na pesquisa, procuramos entender um pouco destas dimensões da vida das trabalhadoras da educação em Goiás e os elementos na construção de um enfrentamento cotidiano para superar a miséria.

Neste artigo optamos por apresentar uma análise sobre a escolha da profissão, a realização profissional, tempo de trabalho e tempo de lazer, dimensões da vida das professoras entrevistadas. A partir dos dados levantados foi possível observarmos como a lógica do tempo do trabalho se expande e alcança a vida cotidiana destas trabalhadoras fora das escolas. Observamos, também, o ser professora e mulher, com suas múltiplas atribuições cotidianas. O recorte temporal é a consolidação do pacto pela educação, uma política adotada pelo governo do Estado desde 2011 e que contribui muito para a precarização do trabalho e da vida destas trabalhadoras, como veremos.

Nas entrevistas perguntamos o porquê da escolha da profissão e se as professoras se consideram realizadas na carreira docente. É recorrente a associação do magistério a um trabalho ligado ao amor, à vocação, ao cuidado entre as entrevistadas e, também, é interessante observarmos a influência de outras mulheres professoras (mãe, tia, avó) na escolha da profissão, o que reforça uma concepção de profissão ligada ao dom, à vontade, à vocação. Os depoimentos reforçam o estereótipo construído de que a docência é um lugar de mulher, conforme já argumentamos.

A minha mãe é professora também, é pedagoga. Então, desde criança, eu tinha como meta que eu ia ser professora. Eu dava aula pras bonecas, pros cachorros, então eu tinha essa vontade e até hoje sou professora e sou muito feliz com essa profissão. (Joana)

Eu amo dar aula. Eu dou aula de coração, minha mãe é professora, eu sou professora, minha filha é professora. Minha mãe aposentou, eu entrei, eu aposento minha filha, entra. Eu acho que isso tá no sangue é genética. Se eu fosse começar hoje eu seria professora. (Débora)

Eu acho que quem não gosta, não tem o dom para ser professor, ele não fica muito tempo. (Maria)

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A figura da mulher na educação está, assim, associada à visão maternal difundida por teorias pedagógicas e psicológicas, em que o papel da tia é valorizado na relação com os alunos, principalmente nas séries iniciais. Santos (2009:22) argumenta, ainda, que “o magistério é como se fosse, portanto, um prolongamento de suas funções domésticas”. Com estas características, a carreira docente para as mulheres apresenta-se como uma forma de conciliar a criação dos filhos, os afazeres domésticos com uma profissão que, aos olhos da sociedade, não exige tanta dedicação. No entanto, a realidade é bem outra.

Para Nogueira (2004), as relações sociais de gênero são entendidas como relações desiguais, hierarquizadas e contraditórias, seja pela “exploração da relação capital/trabalho, seja pela dominação masculina sobre a feminina, expressam a articulação fundamental da produção/reprodução” (2004:04). Dessa forma, a construção da luta por uma carreira melhor sempre encontra como barreiras o discurso da vocação e de que a docência é um trabalho para complementar a renda familiar.

Mas, ao mesmo tempo em que as professoras se dizem realizadas – uma realização no plano do subjetivo ligada ao dom, amor, cuidar que estão colocados como bem próximos da profissão –, é também relatada uma insatisfação pela maioria das entrevistadas que se dizem não plenamente realizadas na carreira, pois o salário e as condições de trabalho são muito precários. O fato de trabalhar mais de 40 horas por semana e em mais de uma escola são motivos apresentados para a insatisfação com a carreira, assim como a nova política adotada pelo governo do Estado a partir de 2011, o pacto pela educação e a desvalorização salarial.

A insatisfação relatada com a profissão também encontra eco na situação de mulher que tem que administrar jornadas duplas, triplas de trabalho e os problemas referentes ao sacrifício da família em prol do trabalho, deixando transparecer uma “culpa” pela situação de ter que trabalhar por parte das mães. Administrar o trabalho com os afazeres domésticos e com a família é mais uma tarefa para estas professoras, como vemos nos depoimentos abaixo.

Meu tempo de descanso, vou te ser sincera, é arrumar minha casa, é passar minhas roupas, estão assim ...eu mesmo não tenho ajudante, então, assim, a casa fica por minha conta. (...) Então, assim, meu tempo de descanso é tá mexendo na casa. (Ana)

Domingo e feriados eu não coloco a mão em livro. Isso é uma opção que eu fiz, pra conseguir fazer tudo até no sábado. Então é um dia que eu tenho para mim, pra cuidar das coisas de casa, ficar com os filhos, etc.(Claudia)

(...) o professor na verdade é mal remunerado, são poucos deles que tem condição de ter uma empregada doméstica em casa. No meu caso, pra sobrar uma graninha, eu não tenho empregada, a doméstica sou eu, quando chego sexta-feira, em casa, é hora da faxina, depois das seis, aí meu exercício físico é com o rodo e a vassoura. (Josefa)

Eu consigo organizar direitinho o meu tempo, mas é puxado porque você chega em casa tem trabalho de casa também né? Eu tenho minhas filhas também que eu tenho que dedicar tempo pra elas. (Maria José)

Os dados coletados no ambiente virtual de aprendizagem do curso Gênero e Diversidade na Escola mostram que 80% das professoras do curso dedicam de duas a quatro horas por semana para o trabalho doméstico e todas relatam que estas atividades as sobrecarregam. Nas entrevistas com as professoras em Catalão, também é recorrente considerações sobre a situação de mulher trabalhadora. Nogueira (2007) aponta em sua obra que ocorre uma mudança nas relações de trabalho no espaço público que não é acompanhada no espaço privado onde o trabalho doméstico continua sendo responsabilidade apenas da mulher na maioria dos lares. Os depoimentos e os dados nos revelam uma precarização da vida cotidiana da mulher trabalhadora da educação e que está presente em outras categorias de trabalhadoras, como nos mostram várias pesquisas, como as de Nogueira (2007) e Hirata (2011), por exemplo.

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Com a intensificação do trabalho e a ampliação de suas atribuições estas/es trabalhadoras/es sofrem com o desgaste e a insatisfação profissional. A insatisfação é apontada nas entrevistas de professoras em Catalão que relatam a sobrecarga de trabalho e os baixos salários como motivos de falta de realização com a profissão, como vimos nos relatos acima. Também no ambiente virtual de aprendizagem do curso Gênero e Diversidade na Escola os relatos das dificuldades enfrentadas para a docência aproximam-se das descritas pelas professoras entrevistadas em Catalão e reforçam a existência de dificuldades, como os baixos salários e a sobrecarga de trabalho, realizado principalmente em casa e nos finais de semana.

Outro problema destacado é o de que as professoras têm que atuar como enfermeiras, psicólogas, assistentes sociais e outras, e, assim, sentem-se perdidas em meio a tantas atribuições para as quais, nem sempre, são preparadas. Neste contexto complexo o ato de ensinar perde prioridade e, as professoras, sua identidade profissional. A este fenômeno Oliveira (2004) chama de “desprofissionalização, de perda de identidade profissional, da constatação de que ensinar às vezes não é o mais importante” (Oliveira, 2004, p. 1132).

Pontuschka (2007) argumenta sobre as dificuldades encontradas pelo/a professor/a para o trabalho, por exemplo, com as diversidades na escola, temas polêmicos que exigem conhecimentos novos que muitas vezes o/a professor/a não teve acesso quando de sua formação inicial. Assim, o discurso posto pela Lei de Diretrizes e Bases/LDB e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais/PCNs (mais políticas impostas pela ordem distante e para atender a interesses em momento de reestruturação) volta-se contra a prática docente uma vez que se exige do/a professor/a o trabalho com as novas temáticas, mas não é dada a ele nenhuma condição de se formar para isso. Dessa forma, as novas temáticas inserem-se num contexto de precarização do trabalho docente, contribuindo para esta situação na medida em que o/a docente assume cada vez mais tarefas. De acordo com a autora,

O docente é chamado a assumir cada vez maiores responsabilidades. O trabalho com o conhecimento não é mais a única responsabilidade do professor, há necessidade de tratar da integração social e afetiva dos alunos, da educação sexual, de diferenças de gênero, de alunos de diferentes faixas etárias em uma mesma série, da educação dos alunos com necessidades especiais, das diferenças étnicas, das desigualdades sócio-econômicas presentes nas classes; tudo isso acrescida da violência, intra e extra muros, existente em muitas escolas, o que ocasiona desgaste nas relações entre alunos, professores e pais. (PONTUSCHKA, 2007,p.10)

Dessa forma, é exigido do/a professor/a cada vez mais “habilidades” e “competências”, domínios de categorias de análise novas – como gênero -, que exigem novas leituras, novas análises, mais estudo e formação, mais tempo investido para a docência. Por outro lado, o/a professor/a nem sempre possui as condições materiais necessárias para se preparar para o trabalho com tantas diversidades e com as novas exigências. Neste caminho, entendemos que algumas políticas públicas na área da educação têm contribuído muito mais para a precarização do trabalho docente do que para uma formação crítica e consciente dos alunos, uma vez que as mesmas são elaboradas não a partir da realidade da comunidade escolar, mas a partir de interesses da ordem distante (Lefebvre, 2002). Assim, por exemplo, o trabalho com gênero, que poderia contribuir para a superação de preconceitos e fobias, acaba não sendo realizado na maioria das escolas, colaborando para o mal-estar gerado por uma lei que funciona de forma precária na prática.

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O trabalho docente não se restringe apenas à atuação em sala de aula. Agora inclui a administração da escola, também, no sentido de que estes profissionais se dedicam ao planejamento, elaboração de projetos, discussão do currículo e da avaliação. Amplia-se o âmbito de atuação e responsabilidade e, diante disso, o/a educador/a não consegue conceber o seu processo de trabalho integralmente, tornando-se ainda mais alienado.

Segundo Oliveira (2004, p.1130),

Essa nova regulação repercute diretamente, na composição, estrutura e gestão das redes públicas de ensino. Trazem medidas que alteram a configuração das redes nos seus aspectos físicos e organizacionais e que têm se assentado nos conceitos de produtividade, eficácia, excelência e eficiência, importando, mais uma vez, das teorias administrativas as orientações para o campo pedagógico.

Dessa maneira, a escola passa a ser gerida como uma empresa, que precisa adequar-se à nova realidade do mercado mundial. Para esta mesma autora, o poder hegemônico se vale do fato de que a precarização do trabalho proporciona o desenvolvimento econômico sem o aumento do número de empregos. Entra em cena neste período a terceirização de algumas funções nas escolas públicas, como nas áreas de limpeza, de alimentação e, por incrível que pareça até mesmo o aumento dos contratos temporários de docentes como uma regra e por longos períodos.

Dentro desta lógica, no final do ano de 2011, o Governo de Goiás elaborou um Projeto de Lei que retira direitos trabalhistas de professoras/es e técnicos/as administrativos, em uma atitude autoritária e antidemocrática, ao fazê-lo de forma não transparente, sem consulta às bases. Este projeto incorporou as gratificações ao salário base, manobra realizada para garantir o pagamento do piso nacional, que, até 2011, não era pago pelo Estado de Goiás. Muitos/as professores/as foram penalizados com o novo plano de salários, como os que concluíram o curso Gênero e Diversidade na Escola e não receberam a gratificação esperada.

Como estratégia de enfrentamento a esta política, o Sindicato dos Trabalhadores da Educação de Goiás – SINTEGO – mobilizou os/as trabalhadores/as numa greve que durou quase sessenta dias em todo o Estado. No entanto, as formas de negociação fracassaram e os/as professores/as foram obrigados a arcar com um aumento da carga horária e as perdas de direitos. O sindicato tem obtido poucos resultados nos enfrentamentos com o governo de Goiás e a desmobilização da categoria é percebida neste processo.

Segundo o depoimento de uma das professoras entrevistadas:

Saímos de uma greve em que não conseguimos nada, conseguimos apenas migalhas do que a gente estava reivindicando. A gente perdeu o plano de carreira todinho, ou seja, todo mundo fala, todos os professores falam, pegamos nosso diploma e jogamos no lixo. Mas hoje eu não estou realizada não. E eu vou te ser muito sincera também, hoje eu estou assim de uma forma que a partir do ano que vem eu vou estudar pra fazer outros concursos fora da área da educação. Por que eu estou vendo assim, não quer dizer que eu não goste da educação, eu gosto muito de dar aula, porém a estrutura que desestimula a gente. Então assim, a estrutura como está, as escolas como estão, os alunos como estão, tudo. Então não é só o meu caso não eu acho que a maioria dos professores. Eu mesmo, eu só se não tiver como mais eu quero sair da educação. (Maria das Graças)

O projeto do Estado de Goiás para a Educação é conhecido como – Pacto pela Educação – e engloba alguns programas como o bônus - uma premiação em dinheiro para o/a professor/a que não acumular faltas durante o ano letivo - e, também, uma premiação em dinheiro e computadores para os/as alunos/as que se destacarem com as melhores notas durante o ano. A política também estabeleceu um novo plano de carreira em que as gratificações foram reelaboradas, sendo que as gratificações referentes à qualificação em nível de especialização foram incorporadas ao salário base. Sobre esta questão a entrevista com um membro da diretoria do SINTEGO esclarece que:

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[...] O governo liberou um pacote para a educação chamado Pacto pela Educação. E aí que pacto é esse? Porque a gente entende que pacto são ambas as partes, sociedade civil e governo organizado que senta e discute esse pacto para ver se é bom. Mas o governo não, ele comprou este pacote pronto e queria implantar isso goela abaixo aqui em Goiás.

No plano de carreira do professor em 2012 ele (o governo) mudou na progressão vertical, nós temos: professor p1 que seria nível um, que teria apenas magistério, professor p2 que tem a antiga licenciatura curta, que hoje já não existe; professor p3 que é a licenciatura plena; depois para passar a p4 teria um curso de especialização alcançando até 30% de titularidade; para mestrado 40% e doutorado 50%, era deste jeito, o governo retirou isto. Com a questão do piso nacional instituído no governo Lula [...] Piso nacional é piso mais carreira, o que governo fez? Acabou com a carreira para implantar o piso. Vou dar exemplo para ficar claro: eu professor p4 se eu ganho 2 mil reais tá abaixo do piso. Então eu tenho 30% de 2000, 600 reais não é mesmo? Então o salário era: vencimento 2 mil reais mais 30% das titularidades 2.600 reais. O que ele fez, pegou os 600 da titularidade e incorporou no vencimento e ficou pagando o piso. Aí teve o movimento de greve [...] querendo esta titularidade de volta, em negociação o sindicato conseguiu a titularidade de mestre e doutor de volta. Quanto aos 30%, ficou firmado até então que seria formada uma comissão com a Seduc, com Conselho Estadual de Educação e o Sintego para analisar como ficaria a questão dos 30%. Porque quem está aposentando agora perde, quem já se aposentou perdeu direito adquirido, o Sintego entrou na justiça, o governo está ferindo a lei. (José)

A nova política de salários e o bônus são motivos de muitas reclamações por parte das entrevistas tanto em Catalão como das/os alunas/os do Curso GDE. Os/as professores/as dizem que as perdas salariais foram consideráveis, uma vez que muitos recebiam gratificações por até mais de dois cursos de especialização. Algumas professoras alegam que esta política é um desestímulo à formação continuada e que fecha ainda mais as portas para a melhoria salarial, pois, de acordo com os depoimentos, há uma valorização apenas de mestrado e doutorado, no entanto, para fazer estes cursos é muito complicado, uma vez que o governo concede licenças para tais cursos somente após muita burocracia, sendo que nem todos conseguem, e os índices de professores/as com licença para tais cursos não chega a 10% em todo o Estado, de acordo com dados do SINTEGO.

As entrevistas com as professoras e os depoimentos no ambiente virtual de aprendizagem do GDE nos mostram as dificuldades enfrentadas pelos/as professores/as que querem ou precisam se qualificar. Além da licença – difícil de conseguir – o tempo para se dedicarem ao estudo antes ou durante o curso é raro, contribuindo ainda mais para a precarização da vida cotidiana.

O pacto pela educação também estabeleceu ações que passaram a exigir ainda mais trabalho por parte do/a docente que agora precisa entregar planos de aulas a cada quinze dias e assumir, sozinho/a, as salas com alunos/as com necessidades especiais, além dos trabalhos em laboratórios, bibliotecas e outros, uma vez que os professores de apoio e técnicos foram removidos da sala de aula e passaram a assumir outras funções.

Geralmente o tempo que a gente trabalha com planejamento é no período da noite. Trabalho no período da manhã e à tarde, à noite trabalho com planejamento, só que como é um volume muito grande, às vezes não é tão suficiente assim, porque se fosse para a gente optar, eu preferiria ter um tempo maior para poder planejar de uma forma mais completa, não que a gente não desenvolva um bom trabalho, mas com certeza poderia ser melhor. (Josefa)

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O professor principalmente agora no Estado de Goiás, com a atual gestão, a gente tem vivido uma exposição muito grande na mídia com uma visão estereotipada, por quê? O secretário de educação tem enchido o professor de relatórios para ele preencher, burocracia, com isso sobra cada vez menos tempo. Implantou-se a lógica da produtividade na escola, porque implantou o Programa Reconhecer. Aí entregou o plano em dia? Ganha bônus. Não adoeceu? Ganha bônus. Não faltou? Ganha bônus. Foi bem avaliado? Ganha bônus. E aí os professores acabaram entrando nessa lógica. Houve uma exposição por conta da greve e também por conta deste Programa Reconhecer muito grande do professor na mídia. No sentido de dizer que o professor ganha bem. O professor no Estado de Goiás pode chegar a ganhar 4 mil reais. E aí assim, a gente tem ouvido dos alunos, dos pais e da comunidade em geral que: professor é vagabundo, ganha muito pelo pouco que faz. Os próprios alunos se queixam quando a gente vai chamar atenção deles para necessidade da escola, de dizer assim: “você sabia que era assim escolheu esta profissão porque quis”. Dos próprios alunos a gente enfrenta essa dificuldade. Então tá muito marginalizado. Porque o interesse pelo saber, pelo conhecimento já não é o mesmo. E consequentemente isso reflete na consideração que se tem com o professor. (Josefa)

Estes relatos nos mostram que a precarização do trabalho docente atinge a vida cotidiana dessas professoras, que além de prepararem as aulas e cumprirem com outras atividades que a profissão exige, ainda têm que se sujeitar ao trabalho burocrático imposto pelo Governo do Estado, como mostra o relato da professora. Como a carga horária é sempre alta, não resta alternativa se não aquela de levar para o lar a maioria dessas tarefas, o que contribui para aumentar os problemas relacionados à saúde da professora que ainda necessita cumprir como dito anteriormente, com as tarefas domésticas. Para agravar ainda mais a condição dos/as profissionais da educação, merece destaque o fato de que, com essa solução encontrada para cumprir as exigências postas, não há mais tempo para o estudo e nem tampouco para praticar lazer, do ócio, do descanso.

Outra medida que afetou diretamente a vida de professores e professoras foi o remanejamento de cargos e funções, o que fez com que alguns profissionais fossem deslocados das escolas onde trabalhavam para outras, mais distantes do lugar de moradia. Em Catalão, mesmo não sendo uma cidade grande, as professoras reclamam da situação, pois o tempo de deslocamento da escola para a casa aumentou e a situação piorou muito para quem necessita trabalhar em mais de uma escola. Aliás, o trabalho em mais de uma escola é citado por 80% das entrevistadas de Catalão e por 70% dos/as professores/as do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola, sendo que a carga horária chega a 60 horas por semana. O trabalho, em alguns casos, acontece nos três turnos, em três escolas diferentes.

Outro problema é o grande número de professores/as que precisam complementar a carga horária com disciplinas que não são de sua formação, o que entendemos como um indicativo do sucateamento do sistema. É bastante comum encontrarmos professores/as com formação em Geografia, por exemplo, ministrando aulas de Física, Química, ou outras disciplinas para complementar a carga horária. Ao conversarmos com algumas professoras sobre tal situação e com representantes do sindicato, os mesmos afirmam que esta prática é antiga e que os/as docentes acabam por aceitar tal situação para não perderem as aulas em escolas próximas a sua casa ou onde já trabalham há algum tempo, ou ainda para não perderem carga horária e, consequentemente, salário. Por outro lado, temos a clareza de que tal situação precariza ainda mais não apenas o trabalho docente com também a vida cotidiana, uma vez que o tempo de preparação para tais disciplinas é ainda maior.

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Os baixos salários também são outro problema enfrentado na carreira docente e desestimulam e obrigam os/as docentes a assumirem uma carga maior de trabalho em mais de uma escola, o que compromete a vida das trabalhadoras em educação, a sua saúde, o lazer, o convívio com a família e a qualificação. Isso pode ser observado pelo grande número de trabalhadores/as afastados/as por motivos de saúde, como depressão, stress e problemas ligados à prática docente, como desgaste das cordas vogais, alergias, etc. Dados do SINTEGO mostram que a maioria dos afastamentos é por motivo de saúde e, em escolas de Catalão, a maior parte dos pedidos é de professoras (55%) e tal situação explica-se não apenas pelo fato de elas estarem em maior número na docência, mas, também, pelas jornadas de trabalho na escola e no lar, conciliando carreira, lar, casamento, maternidade.

Os problemas de saúde colocaram muitos/as docentes, também, em outras atividades fora das salas de aula, como em bibliotecas, laboratórios, apoio administrativo, entre outros. Esta foi uma estratégia para evitar as perdas salariais com a aposentadoria antes do tempo mínimo. O deslocamento muitas vezes só era conseguido como “favor político”, ou em troca de votos e apoio em eleições, prática bastante comum em escolas estaduais em épocas eleitorais. A saída da sala de aula é comumente o único caminho para alguns graves problemas de saúde enfrentados pelos/as docentes, que, em alguns casos, precisam de longos tratamentos. No entanto, nem sempre a licença por conta de doenças como depressão e stress é conseguida, obrigando o/a docente a continuar trabalhando, mesmo doente, como nos relata Imaculada:

Eu tentei! Eu tentei licença por cansaço mesmo, tanto que tomo ansiolítico todos os dias, senão eu não consigo, o meu ritmo não consigo trabalhar. Nossa, se eu não tomar eu chego a jogar pedra (risos). Mas, assim, eu tomo porque eu já tentei a licença para descansar, porque é direito. Eu tenho 18 anos de Estado, tenho que considerar que eu tenho no mínimo um ano, nove meses de licença. E nem para o mestrado eles quiseram me conceder a licença, que é direito. Então se isso não é precarização, a gente não tem outro nome pra dar. (Imaculada)

As entrevistas revelam como a precarização alcança a vida destas trabalhadoras reproduzindo condições de vida também precárias, em que se manifestam, além das doenças, o cansaço, a falta de tempo para atividades físicas e de lazer.

Vejo que minha vida social acabou, não tenho uma vida social, você pensa em fazer uma coisa, você pensa em ir à fazenda e não dá tempo. Não consigo trabalhar a noite, eu vivo dormindo no sofá. (Celma)

Ele (o tempo de descanso) não existe, é muito, muito, muito curto. Porque quando eu não tenho provas pra corrigir, porque não dá tempo de corrigir tudo durante a semana, tem que ficar planejando, preparando, elaborando provas, estas coisas... você acaba corrigindo provas no fim de semana. (...) Então hora para descanso, lazer, exercício físico fica de lado. (Vanessa)

Sinto um cansaço mesmo, cansaço mental, eu tenho assim...e vai aparecendo essas doenças, depressão, crise de labirintite, um monte de coisa que vai aparecendo aí de repente te ataca e você não consegue, né? Mas eu acho que isso é normal... qualquer professor... não tem esse que não tem faltas por motivo de saúde. (Marli)

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Estes fatos sobrecarregam as profissionais que se sentem perdidas em meio a um conflito permanente entre realizar um trabalho responsável e não contar com condições adequadas para isso. A soma de tudo isso, aliada à responsabilidade pelo lar, cuidados com a família, a realização dos trabalhos domésticos, precariza também a vida destas mulheres, pois o mundo do trabalho, a despeito da inserção da mulher, continua masculino e pouco adaptado às necessidades femininas.

A partir desse contexto, torna-se mais fácil a compreensão da lógica entre flexibilidade, eficácia, competências e produtividade, que contribui demasiadamente para a precarização do trabalho docente, sobretudo, pelas condições de trabalho destas professoras, que, além do trabalho no espaço produtivo, ainda são responsáveis pelos afazeres domésticos e cuidados com a família, visto que boa parte das entrevistadas possuem tarefas domésticas e com o lar, filhos, marido.

A miséria do cotidiano apresenta-se como uma barreira na construção da emancipação destas mulheres professoras. Por outro lado, a riqueza da vida se coloca como etapa da emancipação, a reprodução da vida, do desejo, do que escapa à programação.

Considerações finais

Neste momento da nossa reflexão retomamos a grandeza do cotidiano, a sua riqueza e procuramos onde se realiza na vida destas professoras. Diante de tantas misérias, precarização, exploração, dominação o que escapa à lógica perversa? Educar coloca-se no campo da grandeza, da riqueza, da construção da emancipação por meio da produção de um conhecimento transformador. As condições para a produção deste conhecimento, como vimos, são as piores, no entanto, a luta não foi totalmente cooptada e as professoras seguem na luta como trabalhadoras, mães, esposas, contra o patriarcado, a exploração e dominação.

A situação da mulher educadora requer ser entendida em sua especificidade. Não é possível pensar a situação da mulher trabalhadora tendo como referência as regras masculinas que regem o mundo do trabalho, as políticas públicas que não pensam nas necessidades específicas das mesmas, como creches, transporte público, saúde pública, entre outras necessidades das trabalhadoras da educação ou de outros setores da economia. Analisar a relação entre precarização e feminização abriu-nos a possibilidade de compreender que a força de trabalho das mulheres é mais explorada, mais barata, com acúmulo de atividades no espaço produtivo e reprodutivo e é essencial para a reprodução do capital, principalmente em épocas de crise, quando estas são chamadas a ocuparem postos de trabalho tidos como lugares masculinos.

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A precarização ultrapassa o ambiente de trabalho e alcança a vida cotidiana das trabalhadoras da educação, seja através dos péssimos salários, da carga horária de trabalho cumprida em casa em preparação de aulas, correção de provas e trabalhos ou em estudos, privando, muitas vezes, a mulher trabalhadora do convívio com os familiares e de momentos de lazer e descanso. Aliado a este quadro, a responsabilidade do trabalho doméstico e o cuidado com os filhos faz com que esta profissional nem sempre tenha as mesmas chances de crescimento dentro da carreira profissional, que, como no caso da educação, é, às vezes, entendida como um “quebra galho” uma “distração” ou ainda como uma fonte secundária de renda.

Diante de tal quadro de sobrecarga de trabalho, as doenças ocupacionais são cada vez mais frequentes. Ao conciliarem a vida profissional com os afazeres domésticos e a maternidade elas têm a qualidade de vida e o desempenho profissional comprometidos, ficando sempre em segundo plano a carreira e a qualificação. O número cada vez maior de trabalhadoras afastadas por motivos de saúde da docência em Catalão nos revela um pouco deste universo e, ainda, mostra que muitas vezes é necessário continuar trabalhando, mesmo quando não há condições para tal. Assim, é grande também, de acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho, o número de mulheres jovens que morrem por doenças do coração ou acidentes vasculares cerebrais, demonstrando o stress que marca suas vidas.

Acreditamos ser de extrema importância o desvelamento da situação em que se encontram as mulheres trabalhadoras na educação. A partir da compreensão mais profunda desta realidade, poderemos tentar contribuir para a elaboração de políticas públicas que considerem as relações de gênero e que venham auxiliar na melhoria das relações de trabalho na educação, como, por exemplo, políticas de saúde pública para combater os altos índices de stress desta categoria.

Nas escolas pesquisadas encontramos mulheres (predominantemente) e homens que se percebem sujeitos ativos da sociedade. Dessa forma, mesmo com todas as dificuldades e limitações, eles procuram ser profissionais responsáveis e pessoas solidárias. Segundo Paulo Freire, esta consciência de seu papel e de sua meta na sociedade é que permite à pessoa uma práxis transformadora. Diante disso, cremos que, se existe precarização do trabalho docente, também é verdade que existe resistência. E justamente desta resistência nascerá uma realidade nova em que diferença não seja sinônimo de desigualdade.


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Esta pesquisa foi realizada entre 2011 e 2013 com financiamento do CNPQ e bolsa de Iniciação Científica da UFG. São membros da equipe que produziram esta pesquisa: Heliany P. dos Santos, Suzana Alves do Vale, Ana Paula Oliveira, Gottardo D. Mikanni.

Os nomes utilizados são fictícios.