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Sobre relações raciais no campo da geografia urbana brasileira: algumas notas introdutórias a partir dos eventos nacionais da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB)

Renato Emerson dos Santos

Cresce o interesse de pesquisadores do campo disciplinar da Geografia sobre as espacialidades das relações raciais no Brasil. Mesmo que ainda pouco numerosos, tais trabalhos são desdobramentos, no espaço acadêmico, do estabelecimento das agendas do racismo e seu combate no debate público contemporâneo, fruto das lutas do Movimento Negro Brasileiro. Com efeito, raça e relações raciais são temas que estão presentes na Geografia desde a sua institucionalização enquanto disciplina acadêmica e escolar (MORAES, 1983), tendo inclusive centralidade na obra de alguns de seus autores clássicos - como Friederich Ratzel em sua antropogeografia. Nossa hipótese é de que a retomada recente é fruto de um regime de enunciação aberto pela luta social e que, por isso, sofre influências das agendas que constituem as preocupações do próprio movimento social na definição de temáticas e perspectivas epistêmicas.

Neste artigo pretendemos levantar algumas breves notas acerca deste movimento, de recente retomada crítica do tema das relações raciais na Geografia brasileira. Sem pretensão de esgotar o tema, nem as possibilidades de abordagem sobre o mesmo, levantaremos alguns questionamentos sobre o que vem sendo produzido.

Nosso olhar sobre o campo tomará como amostra os trabalhos enviados para os eventos nacionais da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), realizados a cada dois anos - Encontros Nacionais de Geógrafos (ENGs, nas suas edições de 2008, 2010 e 2012), e Congresso Brasileiro de Geógrafos (CBG, edição de 2014). Com números que chegam a mais de três mil trabalhos enviados (na edição de 2012, foram 3.090; em 2008, 2.147; em 2010, 2.977; em 2014, 2.249), os ENGs/CBGs são os maiores eventos científicos da Geografia Brasileira, e um dos maiores da ciência nacional. Oferecem, portanto, preciosa base para a compreensão de tendências teóricas e empíricas no desenvolvimento deste campo disciplinar.

Privilegiamos aqui os desdobramentos dos debates sobre as relações raciais no espaço urbano – e, por isto, nossa análise terá como foco o Eixo Cidade/Urbano dos eventos da AGB. Isto não significa que não haja discussões sobre as relações raciais na Geografia Brasileira em outros campos – sim, há discussões emergentes e bastante importantes, por exemplo, na Geografia Agrária, no campo do ensino de Geografia, entre outros. Mas, optamos por dar aqui continuidade a um trabalho de leitura “no” urbano, que já iniciamos no livro “Questões urbanas e racismo”, que organizamos e publicamos (SANTOS, 2012).

Trabalharemos em duas etapas. Numa primeira, faremos alguns apontamentos de caráter mais teórico, tentando uma breve sistematização de chaves teóricas para nos ajudar a compreender a unidade analítica do fenômeno em tela: o racismo e seu combate, nas múltiplas formas tanto de um quanto de outro, engendrando diferentes dimensões espaciais das relações raciais. Isto nos dá base para perceber como um conjunto de desdobramentos empíricos que vem constituindo tais agendas nos sinaliza a necessidade de um olhar mais acurado sobre concepções de espaço e espacialidade.

Num segundo momento, faremos nosso breve tour pelos trabalhos sobre esta temática que vem sendo apresentados nos últimos eventos nacionais promovidos a cada dois anos pela Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), com foco no eixo Cidade/Urbano.

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Raça e Relações raciais: breves considerações sobre agendas que perpassam a ciência geográfica

Como diversas outras, a Geografia é uma ciência de formação colonial. Moraes (1983) nos mostra tal posição, ao evidenciar as condições históricas que permitiram a sistematização e afirmação desta disciplina enquanto ramo do saber científico: desenvolvimentos técnicos (alcançados pela cartografia), produção e reunião de acervos de saberes sobre todo o planeta e, para sustentar tal produção, um conjunto de interesses capazes de mover tais condições (segundo o autor, o avanço e domínio do capitalismo). Com a tarefa de conhecer para organizar o espaço das relações dominadas pelo capital, a Geografia nasce então como fruto e instrumento do eurocentrismo.

A crítica a este papel na afirmação de relações de poder, dominação e exploração, no campo da Geografia, é que levou certo tempo para assumir força: ela ganha relevo apenas a partir do movimento de “Renovação crítica”, a partir das décadas de 1960 e 1970. Assim, como nos mostra Lacoste (1988), a Geografia permaneceu como uma ciência mobilizada e utilizada pelos Estados, grandes corporações e forças militares, quase incólume a críticas a seus papéis sociais (evidentemente, com exceções, como a crítica à mobilização de concepções de território pelo projeto nazista).

A Geografia foi, assim, um importante instrumento de conhecimento e disciplinarização de experiências de espaço de indivíduos e grupos que, no contexto de afirmação do capitalismo, passaram a se relacionar a partir de mecanismos de classificação social voltados para a hierarquização. A estabilização e controle de experiências de espaço de indivíduos e grupos teve papel crucial na territorialização do capital, instaurando a modernidade e criando um mundo no qual a Geografia contribuiu de forma decisiva, inclusive nas formas de classificação social fundamentais para tais processos. O papel da Geografia na afirmação de um mundo dividido em territórios de Estados Nacionais, duplamente produzindo isto como leitura a ser naturalizada e inculcando sentimentos de identidade nacional a partir de uma comunidade de laços com o território (ver ESCOLAR, 1996) mostra o quanto a nação se torna um princípio classificador (na verdade, controlador de experiências e relações) lastreado por esta ciência.

Classificação e hierarquização de seres humanos aparecem então como mecanismos construídos a partir de critérios identitários – e, identidades lastreadas por referenciais espaciais criados e difundidos (também) pela Geografia. Daí a Geografia Tradicional ter problematizado a distribuição dos povos pelo planeta, tema que tem centralidade, por exemplo, na obra de Friedrich Ratzel, alemão considerado um dos fundadores da Geografia (MORAES, 1983), que traz a dimensão racial articulada à de nação. Assim, raça e nação também aparecem articuladas em trabalhos de geógrafos importantes na história desta ciência no Brasil, como Milton Santos (CIRQUEIRA, 2010).

A classificação social se torna então para nós um desafio analítico central, visto que tem na espacialidade um elemento central. Adentrando as matrizes de pensamento crítico, alguns autores, como Balibar e Wallerstein (1991) apontam que, além da nação, a classe e a raça são igualmente princípios de classificação social de seres humanos fundamentais para a difusão do capitalismo e afirmação da modernidade. Outros autores, ligados à Teoria do Giro Decolonial, corrente de pensadores latino-americanos, com forte liderança do sociólogo peruano Aníbal Quijano, vão tensionar ainda mais a leitura crítica dos processos de classificação e hierarquização concernentes à experiência do capitalismo e da modernidade. Mostrando que a modernidade se mundializa afirmando o seu contrário, a colonialidade, Grosfoguel (2010) nos indica que a modernidade-colonialidade difunde o capitalismo através da mundialização de um “pacote enredado de relações de poder”, um conjunto de nove hierarquias que se combinam condicionando experiências diferenciadas do capitalismo por indivíduos e grupos.

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A afirmação de tais leituras da sociedade se coloca como um primeiro desafio. As retóricas e ideologias dominantes historicamente buscam invisibilizar os mecanismos de dominação, e a negação dos princípios classificatórios é um dos instrumentos mais mobilizados. No caso brasileiro, é forte a influência, por exemplo, da Ideologia (ou, Mito) da Democracia Racial, leitura que apresenta o país como um paraíso das relações raciais, onde o racismo não prosperou, ao contrário de outras sociedades (Estados Unidos e África do Sul são os mais mobilizados como exemplos diametralmente opostos à nossa experiência). A denúncia que vem sendo feita indica que nossa sociedade sempre foi e continua sendo racista, e que este “mito” serve mais para invisibilizar tal fenômeno social – assim, o “mito” não é apenas uma “mentira”, mas uma construção social com papel de acomodação de conflitos pela desqualificação das resistências. As leituras críticas que vem emergindo colocam tais ideologias dominantes em xeque, e vem provocando desdobramentos em diversos campos do conhecimento.

As formas como tais relações se enredam também coloca desafios analíticos. Em Santos (2012) tensionamos tais relações apontando que

(...) nossos esforços devem orientar-se para a compreensão das combinações e superposições de hierarquias definindo múltiplos eixos de subalternização e discriminação de indivíduos e grupos. (p. 42)

Isso desloca nosso desafio para o entendimento do

(...) entrelaçamento de princípios de hierarquização social nos diferentes contextos – um princípio pode se somar a outro enfatizando uma posição subalternizada ou valorizada, pode anular ou relativizar outro, ou ainda pode “substituir” discursivamente outro. (p. 48)

Como compreender as espacialidades de cada princípio de classificação/hierarquização? Como compreender as espacialidades dos imbricamentos destes princípios? De que maneira os frutos do racismo, enquanto sistema de dominação (as assimetrias, as discriminações, as subjetividades, etc.), incidem no espaço criando formas, significados, influenciando comportamentos? Quais as geografias do racismo? De que maneira o racismo se imbrica, por exemplo, com as relações classistas de exploração, com as discriminações e intolerâncias religiosas, ou com o padrão patriarcal de relações de gênero, e quais as geografias decorrentes disso?

Estamos diante, portanto, de releituras das relações sociais que nos indicam e provocam a compreender as espacialidades destas relações que envolvem classificação, hierarquização, dominação e exploração. Estas se dão enredando princípios, o que condiciona complexidade nas espacializações que assumem tais relações. Aqui, acompanhando Milton Santos (1978), quando este aponta que o espaço enquanto fato social é a um só tempo reflexo, condicionante e instância do social, vemos a emergência de múltiplas possíveis leituras das espacialidades das relações raciais.

Em trabalhos anteriores temos proposto duas chaves de compreensão das espacialidades das relações raciais. De um lado, apontamos que há uma organização espacializada das relações raciais – o que significa dizer que há um habitus das relações raciais, padrões de comportamento e performatização organizados através de contextos de interação, que são na verdade configurações relacionais do espaço. Assim, o dado racial informa alguns contextos (lugares e momentos “certos”, na verdade articulações de espaço e tempo no fluxo das relações sociais), o que constitui espaços onde se pratica discriminação (ou, ao contrário, convivência), engendra “fronteiras invisíveis” (mecanismos de controle das trajetórias de indivíduos discriminados, que podem ser vedados ou constrangidos), e assim regulam as experiências de espaço de indivíduos e grupos. Tal padrão é crucial para a reprodução social do racismo enquanto sistema de dominação e poder em nossa sociedade, estruturando o que Sansone (1996) chama de “áreas duras” e “áreas moles” das relações raciais.

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De outro lado, temos defendido que as relações raciais grafam o espaço, produzem “grafias”, referências materiais e simbólicas racializadas no espaço, heranças do passado ou fruto de ações e construções do presente. Tais expressões do padrão de relações raciais podem ser tanto grafias espaciais do racismo quanto do antirracismo.

Estas duas propostas vem nos servindo como estímulos a uma imaginação geográfica capaz de detectar as espacialidades do racismo. Uma tarefa fundamental neste sentido vem sendo a identificação e proposição de agendas empíricas de investigação. Em Santos (2009) propusemos, visando a implementação da Lei 10.639 no ensino de Geografia, um temário que indicava: o debate raça & modernidade; o ensino de África; o branqueamento do território; as comunidades de remanescentes de quilombos; a segregação socioespacial de base racial no meio urbano; as experiências de espaço de indivíduos e grupos; toponímia/marcas históricas da presença negra. Em Santos (2012), o volume organizado sobre “Questões urbanas e racismo” se estruturava nos seguintes eixos: segregação socioespacial, mulher negra e ativismo, territorialidades culturais negras (compreendendo hip hop e saberes etnobotânicos de quilombos, terreiros e casas de candomblé), religiões afro-brasileiras e intolerância, e a luta antirracismo do Movimento Negro. Na apresentação da mesma obra, anunciamos outros temas que considerávamos importantes na leitura das espacialidades urbanas das relações raciais, mas que não conseguimos contemplar: violência urbana (com destaque para o genocídio da juventude negra), quilombos urbanos, mercado de trabalho, impactos racialmente desproporcionais do planejamento e gestão urbanos, patrimônios culturais e simbólicos, políticas ambientais e o racismo ambiental, entre outros. Enfim, um conjunto de geo-grafias das relações raciais que consideramos pertinentes.

De tais propostas, entretanto, o que vem sendo produzido enquanto leitura espacial das relações raciais no urbano? E disto, o que é produção de geógrafos/as – ou melhor, da geografia, sob o compromisso com as normas e conceitos deste campo epistêmico disciplinar? Excluindo de nosso foco produções que dialogam com o urbano, feitas por autores e autoras de outras disciplinas, a literatura produzida por geógrafos/as nos indica a proeminência de importantes trabalhos sobre segregação (CAMPOS, 2005; CARRIL, 2006), quilombos (SÂNZIO, 2004), e ativismos negros (RATTS, 2007; SANTOS, 2011). O que mais vem sendo produzido, mas com menos visibilidade no campo? Que temas vêm sendo recortados como objetos empíricos de tratamento pelos geógrafos e geógrafas? Buscaremos, aqui, algumas indicações preliminares a partir das produções enviadas para os eventos nacionais da AGB dos últimos anos.

Notas metodológicas: compreendendo a organização dos trabalhos nos eventos da AGB

Os Encontros Nacionais de Geógrafos são objeto privilegiado para a observação de tendências da produção científica no campo disciplinar da Geografia. Isso se deve não apenas ao volume de trabalhos enviados, mas, sobretudo, ao fato de que as apresentações de trabalhos enviados pelos participantes têm um formato de organização (aqui, compreendido como processo e como dinâmica de apresentações) que possibilita uma ampla e democrática participação dos membros da comunidade acadêmica geográfica. Com efeito, por decisão da entidade que organiza o evento, a Associação dos Geógrafos Brasileiros, não há recusa de trabalhos enviados, o que potencializa a participação ampla. Neste sentido, a numerosa participação tanto de professores quanto de estudantes de diferentes níveis (graduandos, mestrandos, doutorandos) torna o universo dos trabalhos apresentados nos ENGs um profícuo retrato, sem filtros, do “chão” da produção científica do campo. A quantidade crescente de trabalhos submetidos não deixa margem de dúvida em relação a esta abrangência: 2.147 trabalhos em 2008; 2.997 trabalhos em 2010; 3.090 trabalhos em 2012; 2.249 em 2014.

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O formato de organização das apresentações também potencializa tal abrangência e seus desdobramentos: os trabalhos são agrupados, por afinidade temática, em sessões intituladas Espaços de Diálogos e Práticas (EDPs), com horários fixos na grade de programação do evento, mas sem marcação de dia em que cada participante apresenta o seu trabalho. Na verdade, o que se busca privilegiar nesta atividade é o diálogo, ao invés da apresentação individual. Neste sentido, os participantes devem permanecer por quatro dias no EDP definido, dentro do qual todos os trabalhos guardam afinidade temática e, portanto, pressupõe-se que sejam de interesse de todos aqueles que foram agrupados em cada sala.

O agrupamento por afinidade temática dos trabalhos nos permite qualificar esta atividade como sendo uma parte do evento cuja pauta não é construída pela entidade, mas sim, pelo que é enviado pelos próprios participantes. Com efeito, a entidade sinaliza cinco “áreas gerais”, que são grandes eixos, mas dentro destes eixos os trabalhos são agrupados em subeixos, cujas chaves vão denominar cada sessão, cada sala. As cinco áreas gerais são: Cidade/Urbano, Campo/Rural, Pensamento Geográfico, Natureza/Meio Ambiente e Educação. Por dentro de cada um destes eixos os subeixos são constituídos quando há uma quantidade mínima de trabalhos com alguma afinidade – de tema, de objeto, de vertente teórica, de campo de conhecimento, etc. Enfim, dentro de um conjunto de possibilidades de interlocução que um trabalho tem, busca-se oportunizar o diálogo com aqueles que mantenham maior afinidade entre si. Com isso, surgem subeixos a partir de campos temáticos, matrizes teóricas, temas de conjuntura, objetos de investigação – um conjunto de agendas tradicionais do campo disciplinar da Geografia, ou novas agendas de pesquisa criadas e/ou impostas pelo/no regime de enunciação contemporâneo.

Como parte de nossa militância na entidade, temos participado deste processo de classificação/agrupamento de trabalhos nos referidos ENGs (2008, 2010 e 2012), no eixo Cidade/Urbano. Tal posição nos coloca em condição privilegiada para realizar esta análise, e deve ser aqui evidenciada e valorizada na relação entre pesquisador e o objeto de análise deste presente texto. Afinal, tivemos responsabilidade direta na própria constituição dos subeixos que aqui estamos avaliando. Esta responsabilidade é, evidentemente, possibilidade de intervenção sobre o próprio processo, influenciando a criação de subeixos, de acordo com o seu olhar específico sobre determinados princípios de agregação e conformação de diálogos. É evidente que esta possibilidade só existe na medida em que sejam enviados trabalhos sobre algum tema em uma quantidade mínima para a constituição de um subeixo. Trabalha-se quase sempre com um mínimo de 16 trabalhos, portanto, a vontade de criação de um subeixo por quem opera a aglutinação é cerceada pelo que é enviado pelos participantes. Isso – a quantidade de textos enviados sobre um determinado tema – regula, portanto, a possibilidade de criar ou não criar subeixos.

No processo de organização dos Espaços de Diálogos e Práticas há, portanto, um “entre-lugar”, conformado na interseção entre o que se anuncia como campo dialógico a partir dos próprios trabalhos (que não enunciam tais campos!) e o olhar de quem procede à agregação. Este “entre-lugar” é, neste sentido, potência, possibilidade, de instauração de diálogos e a partir deles novas dinâmicas de articulação de pesquisadores.

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Assumindo posição (social, mas, acima de tudo política, e epistêmica) de pesquisador negro, e assim, comprometido com a agenda da luta antirracismo, temos buscado neste “entre-lugar” constituir dinâmicas dialógicas entre os proponentes de trabalhos que problematizem as temáticas raciais. A forma como o trabalho é realizado nos permite, inclusive, compartilhar trabalhos de outros eixos (Campo/Rural, Educação, etc.) para o eixo Cidade/Urbano, e vice-versa. Por outro lado, o fato de este trabalho ser realizado coletivamente nos coloca numa negociação classificatória, onde dialogam pessoas que concordam e outras que discordam de tal diretriz. Neste sentido, as classificações de EDPs expressam as diferentes percepções sobre o “campo”, ou dos campos de diálogo em que a temática racial vem aparecendo.

O que se apresenta adiante é, então, resultado de tendências do campo disciplinar e também de nossa intenção político-epistêmica de construir agregações, diálogos e articulações entre os poucos e as poucas pesquisadores e pesquisadoras que vem enfrentando temáticas raciais na Geografia brasileira, e que enviam propostas de trabalho para apresentar nos ENGs.

Primeira aproximação: A criação de Subeixos voltados para a temática das relações raciais como uma leitura do crescimento do campo

Numa observação das propostas de trabalhos enviadas para os quatro encontros percebemos, no eixo Cidade/Urbano, uma tendência de incremento dos trabalhos problematizando conteúdos ligados à temática racial. Encontramos 10 trabalhos no ENG 2008, 16 no ENG 2010, 15 no ENG 2012 e 22 no CBG 2014, num total de 63 trabalhos. A atenção que a entidade confere à temática aparece na emergência de subeixos especificamente dedicados a ela a partir de 2010 (tal tendência também se verifica no eixo Campo/Rural).

Com efeito, ao olhar a listagem de subeixos do ENG de 2008, não vemos nenhuma menção explícita a tais temáticas. Entretanto, aparecem alguns subeixos que sinalizam o conjunto de conceitos e ferramentas de análise que vem sendo mobilizados nestas temáticas, e abrigam os trabalhos que o fazem: “Territorialidades Urbanas” e “Movimentos Sociais e Novas Territorialidades”, que abrigam trabalhos relacionados, assim como os subeixos “Espaço e Lugar” e “Geografia Cultural”.

No ENG de 2010, apesar de haver trabalhos dialogando com a temática racial em diversos subeixos (como “Cultura e Apropriação do Espaço” e “O espaço urbano e suas múltiplas territorialidades”), o aumento do número de trabalhos permitiu a criação de um específico, intitulado “Raça, etnia, cultura e espaço”, que também foi editado no ENG de 2012..

No CBG-2014, treze trabalhos compuseram um subeixo intitulado “As Questões Étnicos-Raciais”, que teve que ser colocado numa sala juntamente com trabalhos de “Geografia e Religião”. Mas, apareceram trabalhos sobre esta temática em outros subeixos também, como “Cidade e Arte: Representação e Produção da/na Cidade” e “A Cidade à Luz de Territorialidades e Identidades”. Tal configuração mostra, mais do que uma variação nos critérios de agregação, as diferentes compreensões sobre os diálogos privilegiados por cada trabalho que traz (também) a temática racial, evidenciando ainda ser um campo em formação e nem sempre nitidamente visto como tal pelos pares da disciplina.

Sobre o que são estes trabalhos?

Um olhar sobre os trabalhos nos revela uma diversidade temática importante para pensar como a comunidade epistêmica da geografia vem construindo agendas espaciais das relações raciais. Então, optamos por trazer aqui uma apresentação dos subeixos e de todos os títulos dos trabalhos, por considerarmos que, mesmo isso tornando a leitura em certa proporção exaustiva, permite evidenciar a pluralidade que vem sendo desenhada. Ao operarmos a partir dos títulos, buscamos estar de acordo com a percepção que cada autor/a tem de seu trabalho, visto que o título apresenta o que ele/a considera central em seu trabalho. Assim, sabemos que outros trabalhos podem também dialogar com a temática racial, porém, se ela não é trazida para o título, consideramos que o/a autor/a não a enxerga como central.

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1. O ENG 2008

No ENG 2008 não houve quantidade de trabalhos suficientes para a constituição de um subeixo específico, e então os trabalhos acabaram dispersados, pulverizados por diversos subeixos – afinal, são agregados de acordo com outros diálogos possíveis. Os subeixos em que verificamos trabalhos dialogando com a temática racial foram Movimentos Sociais e Novas Territorialidades (com os trabalhos “A geografia histórica da quilombagem na Cidade do Rio de Janeiro”, “Em busca de um território – a territorialidade negra na Zona Norte da Cidade de São Paulo: a formação do bairro Parque Peruche”), Territorialidades Urbanas (“Modéstia à parte, meus senhores. O papel relevante do samba na construção da identidade do bairro de Vila Isabel”, “Geografia do carnaval carioca: uma análise das disparidades estruturais e simbólicas em torno da produção do desfile das Escolas de Samba”), Espaço e Lugar (com trabalhos intitulados “Favela da Mangueira: o samba como meio de identificação e sentido de lugar” e “Educar é uma festa! Pedagogia de sujeitos e educação espacial a partir do lugar festivo do Congado”), Geografia Cultural (com trabalhos como “Terreiro de Candomblé: Como uma Comunidade Religiosa se Afirma no Território do Ponto de Vista das Estratégias Identitárias Pautadas no Espaço Vivido de seus Sujeitos?”, “As redes horizontais e o uso do território: o Movimento Hip Hop no Brasil”, “(Re)Conhecendo Ritos e Símbolos Geográficos do Candomblé” e “Áreas verdes na região noroeste de Goiânia e sua importância para o candomblé”), e Migrações e Dinâmica Populacional (“A reterritorialização dos angolanos no Rio de Janeiro”).

2. O ENG 2010

No ENG 2010, cresceu o volume de trabalhos abordando dinâmicas espaciais vinculadas a racialidades e etnicidades diversas. Subeixos como Cultura e Apropriação do Espaço (“A emergência dos movimentos de samba nas periferias paulistanas: resistência cultural na metrópole”, “Espaço de resistência da juventude pobre: os bailes funk na cidade do Rio de Janeiro”, “Funk - a metrópole carioca grita o seu espaço”, “O reggae como fonte de identificação cultural, lazer e atratividade turística em São Luís do Maranhão”), Espaço e Lugar (“Identidade negra e a representação de lugar dos moradores de lavras novas, Ouro Preto-MG”), Geografia e Manifestações Culturais (“O hip hop no Brasil: horizontalidades e verticalidades”), Geografia e Religião (“Terreiros de Candomblés no Rio de Janeiro: Territórios e Estratégias Identitárias nas Práticas Simbólicas e Sociais”), Migrações Internacionais (“Mobilidade, educação e trabalho na contemporaneidade: migrações de estudantes africanos para o Brasil”), Percepção e Paisagem Urbana (“Recuperação da zona portuária: do mercado escravagista ao turismo de mercado”).

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O que mais destacamos no ENG 2010 dentro do eixo Urbano, no entanto, é a criação de um subeixo intitulado Raça, Etnia, Cultura e Espaço. Este subeixo, pequeno no número de trabalhos (um total de apenas 11) foi constituído com o objetivo de dar mais visibilidade a tais temáticas, e também criar um espaço de agregação que constituísse articulações e redes de pesquisa que fortalecesse tais temáticas. Neste sentido, três trabalhos sobre grupos indígenas em espaços urbanos e mais um sobre um grupo caiçara foram reunidos a sete trabalhos que tratavam de diferentes dinâmicas espaciais de comunidades negras. Os sete trabalhos eram: “Segregação espacial e racial na cidade: introdução para o estudo em Goiânia”; “Quilombos urbanos, segregação espacial e resistência em Porto Alegre (RS): uma análise a partir dos Quilombos do Areal e da Família Silva”; “Quilombolas Urbanos Pedra do Sal e Sacopã-RJ: Território como Construtor de Identidades”; “Propostas Teóricas e Metodológicas para uma Geografia das Relações Raciais: o caso da Cidade do Rio de Janeiro”; “Identidade negra e a representação de lugar dos moradores de Lavras Novas, Ouro Preto-MG”; “A espacialidade e as territorialidades do grupo de congos na cidade de monte do Carmo”; e “A construção do espaço brasileiro frente à negação de uma territorialidade negra”. Segregação, quilombos, identidade e lugar, grupos culturais, uma série de temáticas foram trabalhadas nesta sessão mostrando a diversidade de espacialidades negras no urbano. Mais uma vez, aparece reforçada a ideia de que estamos tratando de uma agenda ampla e plural.

3. O ENG 2012

No ENG 2012, o número de trabalhos voltados para (ou, que dialogam com) as temáticas raciais no Eixo Cidade/Urbano diminuiu em relação ao encontro anterior, de 16 para 15 – outros eixos precisariam ser verificados para avaliar se tal redução é geral ou porque temas (como quilombos e quilombolas) foram sendo direcionados para outras seções do evento. Paradoxalmente, um fato curioso: neste encontro, o conferencista de abertura, o intelectual uruguaio Raul Zibechi, permaneceu durante os dias do evento participando exatamente do EDP intitulado “Raça, Etnia, Cultura e Espaço” e, após sua estada no ENG, lançou uma carta pública sobre o encontro intitulada “El movimiento de los geógrafos brasileños”, na qual um dos pontos ressaltava a elevada presença negra.

O subeixo Raça, Etnia, Cultura e Espaço, então, teve os seguintes 14 trabalhos: “As geo-grafias da cidade: religião e negritude em Manzo Ngunzo Kaiango – Belo Horizonte/Minas Gerais”, “Manifestações Culturais Negras em Viçosa Algumas Grafias Negras em Viçosa-MG: compreendendo as relações raciais no espaço”, “Caiu na rede... é grafite: as redes enquanto um elemento articulador da sociabilidade espacial e resistência dos grafiteiros em Belém-PA”, “Inscrição espacial da questão racial no Rio de Janeiro: alguns apontamentos acerca de eventos de discriminação racial”, “Hip Hop, Resistência e Território Urbano em Uberlândia”, “A geopolítica da capoeira: A espacialização das rodas de capoeira nos espaços públicos de Brasília: Território, Política e Cidadania”, “Por uma geografia dos Movimentos Sociais: Processos, Construções identitárias e Estratégias de Visibilidade – A perspectiva da Comunidade Negra do Grotão”, “O Hip hop e seus instrumentos de apropriação do espaço urbano”, “Território e Identidade no Quilombo do Grotão – Niterói”, “Corpo negro e cidade na Fortaleza do século XIX”, “Relações Étnico-Raciais no espaço carioca nos primeiros anos do século XX”, “A Comunidade Quilombola de Machadinha em Quissamã/RJ: marca e matriz de uma identidade negra?”, “Religiões afro-brasileiras na cidade de Viçosa-MG: uma análise sobre sua dinâmica de (re)existência”, e “Representação iconográfica e cartográfica do negro no Brasil, invisibilidade e política”.

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Com esta concentração, encontramos em apenas mais um subeixo, Ativismos e Movimentos Sociais, outro trabalho dialogando com a temática racial: “Cartografias do Hip Hop e da “capital europeia” - Representações discursivas do espaço urbano de Curitiba/PR”.

4. O CBG 2014

No CBG 2014, o número de trabalhos que identificamos como correlatos às temáticas das relações raciais no Eixo Cidade/Urbano voltou a aumentar, chegando a 22. Mesmo havendo novamente um subeixo dedicado a tais temas, agora intitulado “As Questões Étnico-Raciais”, ele foi juntado a trabalhos de outro campo: “Geografia e Religião”. Tal artifício é utilizado quando uma temática que tem expressiva quantidade de trabalhos não atinge um número suficiente para completar uma sala. Contraditoriamente, identificamos trabalhos em outros subeixos que poderiam ter sido classificados nele, dispensando tal artifício.

Os subeixos que dialogaram com trabalhos das temáticas raciais foram: Segregação e periferização nas cidades (“A segregação espacial/racial e o Projeto Porto Maravilha: Questões raciais e a reestruturação da zona portuária da cidade do Rio de Janeiro”; Cidade e Arte: Representação e Produção da/na Cidade (“Estudo sobre os frequentadores da Roda de Samba que acontece toda sexta feira à noite na Pedra do Sal, Zona Portuária do centro da Cidade do Rio de Janeiro”, “Samba - expressão e manifestação de uma formação social”); A Cidade à Luz de Territorialidades e Identidades (“Escolas de samba: manifestação cultural territorializada resultante e resultado da relação dialética de negação e consentimento das classes trabalhadoras à ordem hegemônica”, “Sapucaí 30 anos, muito além dos enredos das escolas de samba”, “Territórios do samba na terra do sertanejo”); Paisagem Urbana, Olhares Sobre (“As ressignificações da paisagem e da memória no Cais do Valongo – Rio de Janeiro”); e Geografia da Saúde + Questão de Gênero (“Notas de uma guerra entre o Estado e as mulheres negras”).

No subeixo Geografia e Religião + As Questões Étnico-Raciais os trabalhos são: “Percursos negros em Porto Alegre: Ressignificando espaços, reconstruindo geografias”, “Diferenciação e segregação em Goiânia: A Geografia das relações étnico-raciais”, “Espaços Negros Urbanos: Segregação e Preconceito nas cidades brasileiras”, “A Territorialidade dos servidores negros: uma análise socioespacial da Universidade Federal de Viçosa”, “Venda dos Pretos: possível território de resistência e permanência da população negra na cidade de Londrina, PR”, “Embates, dilemas e R-existência: O caso do quilombo Maria Conga - Magé/RJ”, “A inscrição espacial do racismo: analisando as políticas de city-marketing na cidade do Rio de Janeiro”, “Uma busca pela identidade cultural de origem quilombola na Região do Cabula, Salvador-Bahia”, “Da cor do corpo à formação socioespacial brasileira: o território e as solidariedades dos lugares engendrando o racismo”, “Processo de branqueamento do território e intervenções urbanas na zona portuária do Rio de Janeiro: A Pequena África como fruto de produções espaciais no passado e no presente”, “O negro no espaço urbano de Presidente Prudente: uma análise crítica sobre segregação socioespacial urbana negra”, “Segregação sociorracial na periferia na metrópole gaúcha: análise do bairro Restinga, Porto Alegre/RS”, e “Os Movimentos de Resistência ao projeto Porto Maravilha: uma luta contra o processo de branqueamento do território na (da) Pequena África”, e “Nos Xangôs do Rio Beberibe: os Negros e a Apropriação Espacial do Nexo Urbano Recife-Olinda – a Catimbolândia (1856-1945)”.

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Agendas

O conjunto de trabalhos nos sinaliza, com certeza, a pluralidade temática de um campo que parece estar em formação. Entretanto, há alguns temas e abordagens que se sobressaem no conjunto dos 63 trabalhos que compõe nossa amostra de análise. Quais são esses temas?

O tema mais abordado, de diferentes formas e recortado por diferentes ângulos, é o samba, que aparece como marcador de identidades espaciais de bairro, como circuito econômico no caso dos desfiles de escolas, como instrumento de resistência cultural que constitui territórios, enfim, diversas abordagens. Entretanto, um olhar sobre o restante das temáticas permite aproximar os trabalhos sobre o samba de outros que tem como objetos manifestações culturais negras: capoeira, congado, funk, grafite, hip hop e reggae compõem um conjunto de 12 trabalhos que, somados aos 9 sobre samba, mostram a importância que a dimensão cultural tem nas leituras espaciais de traços das relações raciais no Brasil, perfazendo um terço da totalidade dos trabalhos coletados. Sobressai-se assim a dimensão da cultura como prática de identidade fundamental a uma política e performatização da negritude – um primeiro elemento de constatação de nossa hipótese da influência do Movimento Negro nas agendas espaciais de leitura das relações raciais.

Estamos aqui, propositalmente, separando o que poderíamos juntar. Falamos que em nossa leitura estamos fazendo este agrupamento classificatório de trabalhos vinculados a manifestações de cultura negra, mas deixamos de fora dele os trabalhos sobre as religiões de matriz africana, que também poderiam ser nele aglutinados. Preferimos falar em separado deste conjunto de 5 trabalhos por considerarmos que, sendo a Geografia da Religião uma das mais fortes vertentes da Geografia Cultural praticada atualmente no Brasil, estes trabalhos sobre religiões de matriz africana enfrentam ainda a hegemonia do foco em religiões cristãs neste campo. Trata-se de um tema cujo crescimento reputamos como crucial no desvendamento tanto das formas espaciais do racismo (imputado a tais grupos) quanto da dimensão de invisibilização epistêmica que se impõe a tais questões.

Outro tema que vem se destacando no cenário da emergência da temática das relações raciais na geografia brasileira é o tema dos quilombos (e dos quilombolas). Se podemos afirmar que é um tema mais presente nos eventos nacionais da AGB no eixo Campo/Rural, temos em nosso quadro no período um quantitativo de 8 trabalhos sobre as lutas e territorialidades de quilombos localizados em áreas urbanas. A temática dos quilombos urbanos é algo emergente no próprio campo da luta quilombola, constituindo para a comunidade geográfica um difícil enfrentamento de leituras do território - se os quilombos eram invisibilizados nas leituras da história do Brasil, o que os apagava também da memória do território, as “geografias imaginadas” que brotam das concepções hegemônicas dos processos de urbanização tornam sua existência (no presente e no passado) nas cidades algo de ainda mais difícil aceitação.

O quarto tema que destacamos aqui a partir do conjunto de trabalhos do eixo Cidade-Urbano situa-se no campo da “Geografia Histórica”, releituras do passado espacial (e processos formativos) de cidades. Com efeito, um número de 4 trabalhos se voltam para pesquisar exatamente a presença negra e as relações raciais no passado de núcleos urbanos, constituindo assim uma linha de enfrentamento à invisibilização a que aludimos no parágrafo anterior quando abordávamos a problemática dos quilombos urbanos.

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Por fim, sobressalta-se um conjunto de debates que consideramos ter unidade no reexame de temas consagrados nas leituras do espaço urbano. Identificamos três linhas temáticas, a saber: (i) segregação, (ii) os sentidos e significados de lugar e paisagem e (iii) impactos e resistências a projetos de intervenção urbana. Os três são tensionados a partir de dimensões raciais, enfrentando a hegemonia da invisibilidade destas dimensões nas leituras do urbano no Brasil. Conforme apontamos anteriormente, a segregação socioespacial de base racial é um tema que vem frutificando trabalhos importantes no campo das leituras espaciais das relações raciais. Sendo um dos temas com maior lastro na literatura, ela desponta em 8 trabalhos, sendo o mais abordado tema urbano no campo das relações raciais. Em segundo, aparecem 5 trabalhos que tratam as disputas de sentido e significado imputados a lugar e paisagem, enquanto aspectos mobilizados como significantes definidores de valores sobre e, dialeticamente, a partir das relações raciais. Aparecem aí menções à relação entre corpo, memória, manifestações culturais e identidades como traços que atribuem valores à paisagem e aos lugares, interferindo e sofrendo interferências das classificações e relações raciais. Por fim, um conjunto de 4 trabalhos problematizam impactos e resistências ao emergente projeto hegemônico de cidade baseado na promoção de mega-eventos, que provoca grandes intervenções urbanas causando processos como gentrificação, remoções e, como dimensão inerente, o branqueamento das áreas transformadas.

Completam nosso quadro dois trabalhos sobre temas os quais esperávamos ter mais representatividade, pela força política e epistêmica que ambos vêm alcançando: a questão de gênero em sua transversalização com a questão racial e a cartografia. A emergência e importância do Movimento de Mulheres Negras dentro do campo do antirracismo no Brasil, bem como o crescente engajamento e problematização das chamadas “cartografias sociais” por geógrafos nos provocaria a esperar mais que um trabalho apenas debatendo tais temáticas - pelo visto, ainda lacunas no emergente campo das leituras espaciais das relações raciais.

Para não concluir

O quadro que observamos a partir dos trabalhos submetidos aos eventos nacionais da AGB desde 2008 no eixo Cidade/Urbano nos indica uma pluralidade de desdobramentos, recortes empíricos e imaginações espaciais sobre as relações raciais emergindo na Geografia Brasileira.

Os temas que aparecem neste levantamento remetem a diálogos e tradições bastante distintas em termos de abordagem do urbano na Geografia Brasileira. O tema da segregação tem sido privilegiado no âmbito de uma economia política da cidade (com forte incidência de leituras marxistas desde o final da década de 1960, sob influência de obras como “A questão urbana” de Manuel Castells e “Justiça social e a Cidade” de David Harvey, por exemplo), que valoriza a perspectiva da produção social do espaço. Noutra direção, temas ligados às práticas culturais têm sido na Geografia Brasileira mais trabalhados pela Geografia Cultural, que dialoga mais fortemente com a fenomenologia do que com a economia política marxista. Os trabalhos vinculados à temática racial parecem promover algum tipo de diálogo entre o pensamento crítico e abordagens culturais, se aproximando mais dos chamados Estudos Culturais, e dialogando com novas vertentes pós-coloniais, decoloniais, do pensamento fronteiriço, feministas, entre outras.

Um olhar sobre metodologias e focos teóricos, que pretendemos ainda realizar, nos indicará se teremos um “campo” ou não – a circularidade de referenciais constituindo normas de validação é um aspecto fundamental. Mas, o que podemos aqui assegurar é que olhar o conjunto fortalece a percepção de que as frentes que vêm se abrindo são tão plurais quanto os desafios: estes, teóricos, metodológicos e epistemológicos ainda. Mas percebem-se avanços e um Crescente número de pesquisadores realizando a disputa.

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Referências

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Como diz o autor: “A constituição de um espaço mundial, que tem por centro difusor a Europa, é elemento destacado do processo de transição do feudalismo para o capitalismo. A formação deste modo de produção exige a articulação de suas relações a uma escala planetária, o que faz expandir a área de ação das sociedades europeias a todo o globo terrestre.” (MORAES, 1983, p. 34-35).

Claval (1999) nos mostra que princípios identitários sempre são lastreados em referenciais espaciais.

Segundo Grosfoguel (2010), o capitalismo se constitui e afirma no mundo através de um conjunto de relações de dominação e exploração, hierarquias sociais que pluralizam as experiências ordenando o primado de suas relações: (i) Uma hierarquia de classe; (ii) uma divisão internacional do trabalho entre centro e periferia; (iii) um sistema interestatal de organizações político-militares; (iv) uma hierarquia étnico-racial global que privilegia os europeus frente aos não europeus; (v) uma hierarquia sexual que coloca os homens acima das mulheres e o patriarcado europeu sobre outras formas de relação homem-mulher; (vi) uma hierarquia sexual que desqualifica homossexuais frente a heterossexuais; (vii) uma hierarquia espiritual que coloca cristãos acima de não cristãos; (viii) uma hierarquia epistêmica que coloca a cosmologia e o conhecimento ocidentais sobre os não ocidentais; e (ix) uma hierarquia linguística que privilegia as línguas europeias – e, também, a comunicação e a produção de conhecimento e teorias a partir delas, enquanto as outras produzem folclore ou cultura.

A expressão “geo-grafias” é de Carlos Walter Porto-Gonçalves, que separa as duas componentes da palavra para ressaltar a “grafagem da terra”, transformando a geografia em verbo e assim privilegiando o ato de grafar produzindo e praticando o espaço.

Seguindo esta tendência de crescimento, juntamente com o subeixo “Quilombos e Quilombolas” no eixo Campo, constituíram-se portanto dois espaços dedicados a tais temáticas. Seria interessante uma análise mais detalhada sobre o que vem ocorrendo no subeixo Campo, no qual, a despeito da incontestável hegemonia teórico-epistemológica da vertente marxista, neste encontro as lutas identitárias que não se baseiam no princípio da classe “explodiram” como tema de trabalhos: “Questão Agrária e Relações de Gênero”, “Povos e Comunidades Tradicionais”, “Povos e Comunidade Tradicionais: Pescadores, Ribeirinhos e Caiçaras”, “Território e Territorialidades Rurais”, “Experiências de Educação Indígena e do Campo”, juntamente com o já mencionado “Quilombos e Quilombolas”, se impuseram como subeixos, evidenciando que a emergência destas lutas e de seus sujeitos coletivos faz brotar do chão da produção acadêmica da Geografia um conjunto de temas que até pouco tempo eram epistemicamente silenciados. Aqui, por questões de delimitação de objeto, nos ateremos ao eixo Urbano.

Um trecho da carta diz: “Me pareció notable la elevada presencia de afrobrasileños en el encuentro, con trabajos brillantes y reflexiones que muestran que la favela, y los movimientos que produce, como el hip-hop, forma parte del espeso entramado de resistencias al modelo hegemónico, en sintonía con la producción de Milton Santos, el más emblemático geógrafo brasileño.” (disponível em http://blogueblue.blogspot.com.br)