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A perspectiva do “mundo negro”: notas para o ensino de Geografia da África no Brasil

Alex Ratts

Após a viagem de campo a ex-colônias africanas, o geógrafo Milton Santos relatou no artigo “Nossos irmãos africanos” para o jornal A Tarde, em 1962, uma apreensão da ideia de “mundo negro” vista a partir da África:

Há, na verdade, aqui, uma concepção universalista do mundo negro, que reúne, num mesmo abraço fraterno, os pretos da própria África, bem como os das Américas, do Sul, Central e do Norte. As expressões comuns dessas raízes dentre as quais a música, muitas vezes são inconscientes delas, no novo continente. Na África, porém, e entre os africanos, ela é bem viva e atuante. (2001, p. 404-405).

As ideias do autor nesse campo são pouco conhecidas, mas frequentes em sua obra (CIRQUEIRA, 2010) e são pouco vistas no escopo dos estudos geográficos acerca das sociedades africanas.

A demanda por inserir a “História da África” na formação educacional brasileira emerge de maneira enfática nos anos 1970, por atuação de militantes acadêmicxsdos movimentos negros, em face de uma notória lacuna no ensino básico e superior e também diante das independências de países africanos.

Somente em 2003 foi assinada a Lei 10639/03 que institui a obrigatoriedade dos conteúdos de História da África e Afro-brasileira. Em seguida, outros marcos legais foram tornados públicos (CNE, 2004; SECAD, 2004; MEC, 2009). Inúmeros esforços têm sido feitos para introduzir ou aprofundar estes conteúdos nos cursos de licenciatura em História, Letras, Pedagogia e diversos campos das Artes. Mas e a Geografia? Além do trabalho pioneiro de Anjos com os quilombos e a cartografia africana (2005a; 2005b), dos estudos de Santos, R. (2011; 2010), ambos à frente de núcleos de pesquisa e ensino, há abordagens clássicas abertas à revisitação e várias iniciativas, mas pouco refletidas em conjunto.

Este ensaio traz parte de uma proposta que venho ministrando no curso de Geografia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Primeiramente, propus a disciplina “Espacialidades e culturas africanas e afro-brasileiras”, ministrada em 2006 e 2008, baseada no espírito da Lei 10.639/03 e aberta a estudantes de vários cursos. Mais recentemente, desde 2012, a experiência se concentra na disciplina ainda denominada de “Tópicos Especiais em Geografia Humana” ou “Tópicos em Geografia Regional” voltada para as sociedades africanas. Na UFG está em curso uma ação no sentido de implementar os conteúdos ligados à África e à educação para as relações etnicorraciais (ERER).

Na ementa, temos 5 tópicos definidos que, notoriamente, são difíceis de abordar em um único semestre letivo, mas que são roteiros para as aulas expositivas e podem ser complementados com os seminários:

  • O ensino de Geografia da África;
  • As sociedades africanas da antiguidade e do período moderno/colonial;
  • Escravismo e colonização na perspectiva atlântica;
  • Movimentos culturais e políticos africanos, com foco nos processos de independência e descolonização;

Neste artigo, trago apenas os dois primeiros pontos. Inicio retomando os conteúdos e princípios da Lei 10.639 em face de demandas históricas de acadêmicxs e ativistxs negrxs, apresento três aspectos da abordagem feita na disciplina – a relação entre eurocentrismo, racismo e a Geografia; as sociedades africanas da antiguidade; as sociedades africanas do período moderno/colonial – e, por fim, abordo um princípio que tem relação com tema geral: o reconhecimento da autoria negra africana e da diáspora.

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A Lei 10639/03 e a longa demanda de intelectuais ativistas

Nos anos 1970, do Sul ao Norte do país, acadêmicxs e militantes, que estavam construindo o que se tornou o “movimento negro”, traziam em sua agenda de ações, além da denúncia do racismo, uma proposição de abordar a história negra, africana e brasileira, para além do patamar da escravidão. De fato, esse era um dos pontos relevantes na ação de coletivos que iam desde o Grupo Palmares, em Porto Alegre (1971), passando pelo Grupo de Trabalho André Rebouças, em Niterói (1974), os blocos afro Ilê Aiyê (1974) e Olodum (1979), em Salvador, o Centro de Cultura Negra do Maranhão (1979) e o Centro de Defesa do Negro no Pará (1979/1980), dentre outros. Tornou-se uma reivindicação e ação comum a realização de cursos de “História do Negro” e/ou “História da África”. Havia o reconhecimento de intelectuais, artistas e religiosxs sem ligação direta com a universidade. Havia uma tentativa de intervenção enquanto acadêmicxs para pautar estes temas ao menos na Humanidades (RATTS, 2011) e particularmente na área de História (RATTS, 2007). Uma gama de temas era levantada e discutida: quilombos, sobretudo a retomada da figura de Zumbi, último grande líder de Palmares; a crítica ao dia 13 de maio e à abolição formal da escravatura e a subsequente ausência de educação, trabalho e saúde para a população negra; dimensões do racismo; a situação das mulheres; variados aspectos das culturas negras e da relação Brasil – África.

Somente em 09 de janeiro de 2003, o então recém-eleito presidente da República Luís Inácio Lula da Silva assina a Lei 10639 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96) em alguns artigos. Diz o cabeçalho da lei: “Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.” (BRASIL, 2003). O primeiro artigo detalha a proposta da legislação:

Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. (BRASIL, 2003).

A Lei prevê ainda a inclusão da data de 20 de novembro no calendário escolar como “Dia da Consciência Negra”, reivindicação dos movimentos deste os anos 1970:

Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.

Depreendemos disto que levou mais de 30 anos para que o Estado brasileiro reconhecesse a necessidade de uma política educacional em que a população negra fosse vista não somente no patamar da escravidão ou de ações episódicas de algumas figuras de destaque.

Posteriormente foi promulgada a Lei 11645 que alterou o artigo 26-A e seus dois parágrafos acrescentando a obrigatoriedade do ensino da História e cultura indígena:

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Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” (BRASIL, 2003).

Mais de uma década depois são poucos os cursos de licenciatura em Geografia que inseriram estes conteúdos nos planos de disciplinas, obrigatórias ou optativas (SILVA, 2012). O plano nacional de implementação da Lei 10639, no tópico “Principais ações para os Conselhos de Educação”, menciona a área:

e) Recomendar às instituições de ensino públicas e privadas a observância da Interdisciplinaridade tendo presente que:

I. os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura, História Brasileiras e de Geografia. (MEC, 2009, p. 40)

No entanto, considero que ainda estamos muito longe de inserir os temas afeitos à lei na formação inicial e continuada dxs docentes de Geografia.

Uma proposta de abordagem das sociedades africanas no ensino de Geografia

Na experiência que tenho desde 2012 com a disciplina “Tópicos em Geografia Humana: África” desenvolvi uma proposta de ementa, notoriamente superdimensionada para um período letivo de 4 meses: “O ensino de Geografia da África; as sociedades africanas da antiguidade e do período moderno/colonial; escravismo e colonização na perspectiva atlântica; movimentos culturais e políticos africanos, com foco nos processos de independência e descolonização”. Passo a delinear o primeiro tópico dessa proposta. O segundo - as sociedades africanas da antiguidade e do período moderno/colonial – será desdobrado em dois itens como ocorre no plano de ensino.

O ensino de Geografia: eurocentrismo e racismo

A Geografia Escolar, repensada e refeita desde os anos 1970 no Brasil, segundo uma perspectiva crítica, se deteve em algumas áreas do “continente africano”, particularmente no tocante aos conteúdos e livros didáticos, a exemplo da África do Sul, com o sistema do apartheid e, mais recentemente, com sua participação nos BRICS; do Egito e suas notórias relações com o mundo árabe. Durante a chamada “Guerra Fria”, parte significativa da África aparecia como periférica ao “mundo capitalista” e pouco eram evidenciados ou abordados os países africanos socialistas.

A ideia de uma África “desconhecida” ou representada em imagens restritivas e negativas de “vida selvagem”, “conflitos étnicos”, “pobreza”, “doenças” se situa num quadro mais amplo de eurocentrismo e racismo formado ao longo de séculos, com dois grandes momentos de inflexão: a passagem do século XV para o XVI, o encontro/confronto do reino de Portugal com o reino do Congo (e “vizinhos”), em plena fase comercial do capitalismo e a segunda metade do século XIX repleta de viagens, relatos, exposições internacional (de gente africana, ameríndia e asiática), de conformação e divulgação de teorias racialistas, de divisão da África em plena fase industrial do capitalismo.

Santos, R. (2010) resume e traz esse quadro para a ciência geográfica e problematiza um dos principais aspectos da narrativa eurocentrada acerca da África:

Omissões, distorções, ausências, fabricações e estereótipos constroem uma narrativa sobre a África onde ela aparece como um continente desistoricizado e desgeografizado – as referências tanto de periodização quanto de organização espacial são todas exógenas (p. 152)

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As interpretações e exemplos são inúmeros nesse campo. Vão de ausências flagrantes a representações lacunares ou negativas da África, dos africanos e da população negra no livro didático de Geografia (RATTS, ROGRIGUES, VILELA e CIRQUEIRA, 2007; FERRACINI, 2012). A contra-hegemonia ao eurocentrismo não é abordar a África “em si” e, sim, entender que cada área do continente pode ser vista em longos sistemas de trocas econômicas, políticas e culturais, e que é importante procurar as referências de cada sociedade em pauta.

Quando questionamos os estereótipos, há quem afirme a falta de fontes para abordar as sociedades africanas. Nas áreas de Educação e História, em face de iniciativas anteriores a Lei 10639, mas também pelas demandas que ela suscita, é possível observar um crescimento da produção bibliográfica. Tendo em mente a inter e transdisciplinaridade, vários caminhos são possíveis.

Se a “invenção” ou construção da África foi e é um processo longo, intrincado e vasto, repleto de planos e camadas – viagens, relatos, jornais, mapas, desenhos, fotografias, literatura, cinema, - à semelhança do que Edward Said e outrxs têm estudado para o Orientalismo e para as Américas, as reelaborações, quiçá reconstruções, também são e serão longas, intrincadas e vastas.

Se há desconexões e um centramento na Europa, o ensino de Geografia da África pode ser centrado nas sociedades africanas considerando suas formações socioespaciais, etnicorraciais e culturais sempre em conexão com o sistema-mundo. A multiplicidade de atores – coloniais e “pós-coloniais” – deve sempre ser considerada como conexão mundial – quer tratemos de intelectuais ou de conflitos territoriais.

É possível indagar: o que sabemos sobre os contextos locais de países, cidades, províncias e estados africanos? Neste sentido, seja com o olhar remoto ou contemporâneo, a proposta tem sido se voltar para determinadas áreas da África e observá-las em conexão com o mundo (de seu tempo) e considerar o quadro local. O primeiro campo de observações são as sociedades africanas da chamada antiguidade.

As sociedades africanas da antiguidade: a (des)racialização do Egito e sua relação com sociedades vizinhas

Pela memória religiosa judaico-cristã, pelo cinema, pela televisão, por uma literatura do fantástico, o Egito antigo aparece desconectado da África e representado de forma esquemática. O historiador Elikia M’Bokolo (2009a) chama a atenção para um processo que ele denomina de a “racialização da questão egípcia”. O autor menciona duas vertentes historiográficas que tinham “dominado o conhecimento do Egito antigo que, tinham cortado o Egito do continente africano para o integrar na Ásia ocidental e no mundo mediterrâneo e que tinham, além disso, se apropriado deste período, considerado glorioso, da história da humanidade” (p. 58). M’Bokolo se refere à historiografia europeia e a árabo-muçulmana. Da primeira, ele destaca os “supostos laços de continuidade entre o Egito antigo, a ‘Antiguidade clássica’ e à Europa (...)” (p. 58). Da segunda, pouco conhecida, ele destaca a hesitação entre desconsiderar um longo período de “paganismo” e o reconhecimento da grandeza dos monumentos.

O autor indica estudiosos que incidiram na (des)racialização do Egito antigo desde o século XVIII e ressalta um momento dos anos 1950 em que, a partir do trabalho do físico e etnólogo, Cheik Anta Diop se recoloca de maneira enfática a ideia de um Egito Negro. A existência de poucas traduções deste cientista prejudica sua recepção no Brasil, mas parte seu pensamento pode ser retomada com vistas ao ensino de Geografia da África, por meio de outras abordagens (MOORE, 2005).

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Na proposta que venho trabalhando considero importante retomar este debate e reconectar o Egito antigo com a África, com a chamada África Negra, por meio da relação entre as formações de Kush, Axum e Napata e, ainda que correndo risco de saltos históricos, insistir na reação entre Egito, Etiópia, Eritreia, Sudão e Sudão do Sul, dentre outros países, pelas interrelações de longa duração em diversos processos e momentos históricos, a exemplo do cristianismo etíope. No caso de Kush, império que existiu entre os séculos VII (a. C.) e IV (d. C.) , destaco as pirâmides de sua “capital” Meroé.

Ainda no tocante à antiguidade, abordo a presença de mulheres na realeza, a exemplo de Hatshepsut (c. – 1542 a. C. – c. 1458 a.C.), no Egito, e as rainhas candaces no reino de Meroé. No portal da UNESCO há imagens dos locais que foram selecionados como Patrimônio da Humanidade, o que notoriamente abrange o vale dos Reis e a Planície de Gizé no Egito. O sítio arqueológico da Ilha de Meroé foi incluído nesta categoria.

As sociedades africanas do período moderno-colonial

A ideia de que modernidade e colonização são dois lados de um mesmo processo advém das leituras de autorxs da vertente autodenominada de “giro decolonial”, particularmente de Aníbal Quijano (2005):

Colonialidad es un concepto diferente de, aunque vinculado a, Colonialismo. Este último se refere estrictamente a una estructura de dominación/explotación donde el control de la autoridad política, de los recursos de producción y del trabajo de una población determinada lo detenta otra de diferente identidad y cuyas sedes centrales están además en otra jurisdicción terriorial. Pero no siempre, ni necesariamente, implica relaciones racistas de poder. El Colonialismo es obviamente más antiguo, en tanto que la Colonialidad ha probado ser, en los últimos 500 años, más profunda y duradera que el Colonialismo. Pero sin duda fue engendrada dentro de éste y, más aún, sin él no habría podido ser impuesta en la intersubjetividad del mundo de modo tan enraizado y prolongado (p. 93).

Ainda que o autor se volte bastante para a América Latina, é possível fazer observações correlatas para as sociedades africanas, como faz R. Santos (2011; 2010), geógrafo, que se aproxima desse quadro epistemológico.

Entendo que essa vertente tem um cunho profundamente geográfico. Cabe também considerar que a noção de colonialidade não é necessariamente utilizada por autorxs africanxs. Vale ressaltar que a grande movimentação capitalista comercial e industrial que se desdobra na chamada modernidade é também uma ação colonial que retoma formas não capitalistas de exploração do trabalho humano como a escravidão em larga escala.

A ideia de descoberta, utilizada na passagem do século XV para o XVI – para a América e para o Brasil – é profundamente colonial ou colonialista. Ela envolve navegações, relatos, cartas náuticas e outros mapas, desenhos, concepções religiosas e científicas do mundo. Como a África não foi “descoberta”, alguns navegadores portugueses são reconhecidos por “descobrir” trechos da costa dos oceanos Atlântico ou Índico, como é o caso de Diogo Gomes e a viagem de 1456, no Rio Gâmbia, na área que se torna conhecida como Guiné, e a viagem de Diego Cão ao rio e reino do Congo, em 1482. Cabe nesse quadro a viagem de Vasco da Gama para a Índia, em 1498.

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Os interesses econômicos e políticos nestas áreas persistem e se refazem na longa duração. Os relatos dos viajantes se constituem em fontes para entender as imagens acerca dos povos, dos corpos, dos ambientes naturais africanos (SILVA, 2012). A cartografia moderna/colonial da África traz elementos “fantásticos”, mas também inúmeras anotações da existência de cidades, reinos e impérios que as representações contemporâneas abstraem. O reino do Congo, formado na segunda metade ou no final do século XIV, é um dos que mais teve registros que se tornaram fontes historiográficas (M’BOKOLO, 2009, p. 190-195).

Este tópico compreende também o período que se estende por quase cem anos desde a segunda metade do século XIX até a primeira metade do século XX: fim do tráfico negreiro internacional, estímulo à migração europeia ocidental, abolição da escravatura, a chamada “segunda revolução industrial”, a divisão colonial da África, a consolidação de teorias racialistas, as revoltas socialistas ou comunistas, as duas guerras mundiais, o começo da descolonização africana.

A Conferência de Berlim, realizada entre 15 de novembro de 1884 e fevereiro de 1885, tratou dos direitos de navegação nos rios Níger e Congo, da ação de missionários e do trabalho escravo, mas não exatamente, como se imagina, a definição de fronteiras: “O tema mais debatido, isto é, o assunto verdadeiramente político e polêmico, foi a formulação de critérios para justificar reivindicações coloniais.” (DÖPCKE, 1999, p. 81).

Cabe lembrar que este é o tempo de maior divulgação das teorias racialistas, do racismo científico e de formação da Geografia e da Antropologia enquanto áreas do conhecimento numa perspectiva moderna.

Os processos de descolonização, independência e formação dos estados-nações africanos no século XX são abordados tendo em mente países específicos, ou conjuntos de países, como os de colonização portuguesa. Neste caso, incluo também uma reflexão acerca das distinções e separações coloniais, incluindo a racial, feitas por Portugal.

À guisa de conclusão: o epistemicído e a autoria negro-africana

A Geografia anglo-saxã e também a brasileira produziu obras relativas à África em perspectivas que não são consideradas críticas. Autorxs que não são conhecidos nesse campo podem ser retomados, a exemplo dos estudos de Milton Santos sobre as cidades do chamado Terceiro Mundo. Além dos geógrafos citados, a produção utilizada é de autoria basicamente de historiadorxs (KI-ZERBO, 1979; HERNANDEZ, 2005; OLIVA, 2005 e 2008; M’BOKOLO, 2009a e b), mas também das áreas de Antropologia (SERRANO e MUNANGA, 1995) e Sociologia. Notoriamente artigos dos volumes da coleção História Geral da África (UNESCO, 2010) são consultados e indicados, assim como as sínteses produzidas acerca deste material (SILVÉRIO, 2013).

Há um caminho aberto para se tratar de África, diáspora africana, população negra, relações etnicorraciais, racismo e temas correlatos no campo da Geografia Escolar. A produção e a experiência que têm sido feitas em algumas universidades (UnB, FFP/UERJ, UFRGS, USP e UFG, dentre outras) indica a fertilidade desse terreno. Cabe, por fim, uma reflexão que muitas vezes passa ao largo da produção científica que é a invisibilização ou negação destes temas e da autoria, ou seja, do sujeito negro como produtor de conhecimento como contra-hegemonia no quadro do pensamento ocidental.

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Se a Lei 10639/03 é uma reivindicação e proposição dos movimentos negros, particularmente de intelectuais ativistas, cabe em todo processo o reconhecimento e a inserção da autoria negro-africana. Este foi um dos princípios da coleção História Geral da África da UNESCO com base na formação de historiadores africanos principalmente em universidades europeias. A não inclusão de autorxs africanxs e negrxs da diáspora colabora para o epistemicídio, noção desenvolvida por Boaventura Sousa Santos e ressignificada por Sueli Carneiro (2005).

Esta autoria – de africanxs negrxs ou não, de negrxs das várias diásporas africanas – tem um foco na produção acadêmica em expansão nas Américas e pode incluir a produção artística, em particular a literária, mas, também, a cultural-religiosa que traz mitos e cosmologias negadas ou tratadas em segundo plano na produção didática voltada para a formação inicial.

De Milton Santos (2001) a geógrafxs contemporâneos, historiadorxs, antropólogxs, sociólogos, cineastas, músicxs, cantorxs, escritorxs e poetas, há uma vasta produção criativa que pode compor os textos básicos, complementares e os recursos de apoio para introduzir, reorientar e/ou aprofundar o ensino de Geografia da África.


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O uso do “x” indica a possibilidade de, além de pessoas com identificação de gênero masculina ou feminina, de outras que não se encaixam nessa representação.

Nestes anos, na UFG, na montagem e realização da disciplina, tive a colaboração de estudantes de graduação em pós-graduação em Geografia (Gabriel Elias Rodrigues de Sousa, Mariza Fernandes dos Santos, Talita Cabral Machado, Ana Lúcia Lourenço dos Santos, Ana Maria Martins Queiroz e Wanderson Vinicius Carvalho Corado), e em História (Igor Fernandes Alencar, Mário Eugênio Evangelista de Brito), além de diálogos com docentes da Universidade Estadual de Goiás (historiador Allysson Fernandes Garcia, também vinculado à UFG, e geógrafa Lorena Francisco de Souza).

No ano de 2015, a Pró-Reitoria de Graduação convocou algumas coordenações de curso para discutir a implementação de conteúdos ligados à Educação para as Relações Etnicorraciais (ERER). No mesmo ano, aprovamos que xs estudantes de licenciatura em Geografia devem cursar uma disciplina de ERER, dentre as seguintes: “Formação do Território Brasileiro”, “Geografia da África” e “Geopolítica da África”.

O processo de proposição e reivindicação dos movimentos negros sobre o reconhecimento do dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi, último grande líder do quilombo dos Palmares como “Dia da Consciência Negra”, em contraponto ao dia 13 de Maio, data da abolição da escravidão, se inicia com grupos de movimento negro que estavam se reorganizando em todo país e particularmente com a ação pioneira do Grupo Palmares de Porto Alegre (SILVEIRA, 2003).

Há os seguintes marcos legais referentes à implementação da referida lei: Resolução N° 1, de 17 de junho 2004 (CNE, 2004a); Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (CNE, 2004b) e Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (MEC, 2009).

A Lei 11645/08 não foi fruto de deliberações do Conselho Nacional de Educação. Portanto, continuamos trabalhando com os marcos legais definidos para a Lei 10639/03.