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Repensando o Ensino de Ciências e Química nos Espaços Campesinos

Welson Barbosa Santos
Denise de Oliveira Alves
Juliano da Silva Martins de Almeida
Daniely Santos Barros

Considerações Iniciais

A prática aqui apresentada foi desenvolvida no projeto intitulado “O Pedagógico, o Lúdico e o Ensino de Ciências: recursos na Licenciatura do Campo e ensino escolar no Município de Goiás/GO, Brasil”. Parte-se do pressuposto de que o conhecimento sobre ácidos e bases é fundamental para o entendimento de várias situações que ocorrem no cotidiano e busca-se reconhecer, em momentos distintos (antes e depois de aula expositiva), o que um grupo de estudantes camponeses sabe sobre o assunto.

A discussão teórica, ao buscar repensar o ensino de ciências e química nos espaços campesinos, situa o tema no mote da problematização das práticas pedagógicas tradicionais que desconsideram os aspectos singulares do desenvolvimento humano e a especificidade da experiência social/cultural de cada estudante na construção de seu conhecimento. Como possibilidade teórica e metodológica de transposição do modelo tradicional de ensino sugere-se o trabalho com temas geradores no ensino de ciências, inspirado nos pressupostos freireanos.

Especificamente com relação a experiência vivida na escola do campo, onde se realizou o estudo, concluímos que o ensino de Ciências deveria estabelecer relações com os princípios da Educação do Campo e com a prática do campesinato, podendo contribuir, dessa forma, para uma melhor compreensão das questões comunitárias, por meio da construção de “ (...) um modelo de educação sintonizado com as particularidades culturais, os direitos sociais e as necessidades próprias à vida dos camponeses” (BRASIL, 2007, p. 11).

Discussão teórica

Como reforçam Bruning e Sá (2013), os ácidos e bases estão presentes de maneira geral em nosso cotidiano. Podemos pensar na acidez ou basicidade presente nos solos brasileiros, influenciando diretamente na disponibilidade de nutrientes para as plantas, na acidez envolvida nas reações de digestão dos alimentos, nas frutas cítricas que ingerimos, nas reações ácido-base que estão ligadas diretamente ao equilíbrio químico do sangue humano, etc. Os estudos que abordam o tema datam do século XVIII, onde as expressões “ácidos e bases” eram empregadas principalmente como forma de envolver os termos no cotidiano do aluno, facilitando a aprendizagem.

Contudo, quando nos referimos à ciência Química, avaliamos que o ensino desse conhecimento tem sido um desafio para professores de química no contexto educacional brasileiro, pois na maioria das vezes, em sala de aula, a química tem sido trabalhada de forma fragmentada e descontextualizada, gerando um aprendizado ineficaz e distante da vida e do cotidiano. Buscando confrontar essas práticas Souza (2010) chama a atenção para o uso de novas tendências pedagógicas, entre elas: a alfabetização científica, a interdisciplinaridade, a contextualização, o movimento Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA), que talvez possam contribuir para instaurar um novo modo de ver e pensar o trabalho pedagógico, os processos de ensinar e aprender, a intencionalidade e o alcance de trabalho pedagógico.

Entendemos que esses elementos (novas tendências) apontam caminhos para uma prática educacional que aproxime o ensino dos componentes curriculares do cotidiano dos alunos - em especial para a discussão que fazemos aqui - estudantes das escolas do campo, cujo contexto tem as suas especificidades e exige uma formação integral, apropriada à realidade, onde teoria e prática são indissociáveis e se articulam na construção de conhecimentos culturais, sociais, políticos, indutores de emancipação e cidadania. Nesse sentido, os saberes relacionados ao cotidiano dos alunos, ganham sentido e podem ser utilizados para contextualizar os conteúdos escolares.

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Ainda sobre ácidos e bases, é interessante considerar que muitas substâncias presentes no cotidiano do campesino ou do urbano apresentam características passíveis de compreensão, como os produtos de limpeza ou higiene, medicamentos e até mesmo alimentos consumidos in natura ou industrializados. E, nesse sentido, a adoção de práticas contextualizadas e da experimentação no ambiente escolar, pode, na visão de Silva et al. (2015), ser uma estratégia eficaz para a contextualização do ensino, propiciando melhor compreensão do conteúdo e favorecendo assim, uma aprendizagem significativa.

Segundo Lima et al. (2009), os indicadores ácido-base caracterizam-se como substâncias orgânicas de caráter ácido ou básico, que mudam a coloração em função do pH do meio. Sobre a experimentação no ensino de ácidos e bases, vários recursos alternativos podem ser utilizados em sala de aula, buscando a promoção da aprendizagem, como por exemplo, o uso de indicadores naturais como o repolho roxo, práticas que podem, tranquilamente, serem repetidas no cotidiano do campo devido ao uso de recursos presentes em tais espaços.

O uso de temas geradores no ensino de ciências

Para além da reflexão sobre as novas tendências pedagógicas a que fizemos menção anteriormente, gostaríamos de chamar a atenção para o uso de temas geradores no contexto escolar, proposta pedagógica desenvolvida por Freire (2011), tomando-o como estruturante para o ensino contextualizado de Ciências e Química nas escolas do campo. A ideia de “tema gerador” é que ele “(...) contém, em si, a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por sua vez, provocam novas tarefas que devem ser cumpridas” (FREIRE, 2011, p.93).

Disso apreende-se que a inserção de temas geradores no ensino campesino pode propiciar melhor compreensão da realidade de quem aprende e ensina, além de um ensino contextualizado e interdisciplinar com outras áreas do saber, haja vista a infinidade de relações que podem existir nos diferentes saberes existentes. Além disso, o uso de temas geradores permite ao professor trabalhar o contexto em que o aluno está inserido que, por sua vez, pode promover uma aprendizagem significativa do que se aprende.

Segundo Ramos (2004), a abordagem temática se dá de maneira simples e eficiente, pois a partir de uma situação problema, por exemplo, é possível inserir conteúdos a serem trabalhados no cotidiano escolar campesino, valorizando o conhecimento que os alunos possuem. Além disso, compreende-se que tal abordagem pedagógica pode permitir a ampliação de conhecimentos existentes, bem como no desenvolvimento de habilidades e formação para a cidadania.

Metodologia

A pesquisa de campo que nos serviu de esteio analítico e ancorou as reflexões aqui socializadas foi desenvolvida com 20 alunos de ensino médio de uma escola do campo, da cidade de Goiás/GO, Brasil. Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo e o contato direto dos pesquisadores com o ambiente favoreceu o processo e a obtenção de dados para análise. Minayo e Sanches (1993, p.244) defendem que a abordagem qualitativa realiza uma aproximação fundamental e de intimidade entre sujeito e objeto, uma vez que ambos são da mesma natureza. O trabalho foi desenvolvido na forma de minicurso assim organizado: Aplicação de questionário diagnóstico, para avaliação das concepções iniciais dos participantes sobre a temática estudada; aula expositiva dialogada sobre os conteúdos; nova aplicação de questionário para avaliação de aprendizagem.

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Adotou-se a análise do discurso na perspectiva de Fischer (2001) como possibilidade interpretativa do material empírico levantado. Para a autora, o alcançar de tal empreito exige o desprender-se de longo e eficaz aprendizado que gera olhar sobre o discurso apenas como um conjunto de signos e/ou significantes que se referem aos determinados conteúdos, carregando tal ou qual significado, quase sempre oculto, dissimulado, distorcido, intencionalmente deturpado, cheio de reais intenções. Mediante tais esclarecimentos, é assim que precisamos proceder ao pensar discursos a partir de falas de sujeitos.

Resultados e Discussão

Tomamos como pressuposto aqui a existência de uma forte relação dos termos ácidos e bases com o cotidiano dos grupos sociais que vivem no Campo, como por exemplo, o entendimento do processo químico envolvido na produção artesanal de sabão a partir de cinzas de madeira, prática comum no meio campesino, visto ainda, a necessidade de compreensão dos fenômenos de natureza química que ocorrem a todo instante e que de certa forma, envolvem esses conceitos (GOUVÊA et al 2012).

Desse modo, buscou-se, em um primeiro momento, verificar as concepções iniciais dos participantes sobre os termos ácidos e bases (temas geradores) e sua relação com o cotidiano. Tais concepções foram fundamentais para dar continuidade à proposta apresentada. Nesse sentido, após a análise inicial dos fragmentos de falas dos participantes, foi possível agrupar as concepções iniciais sobre o termo ‘ácidos’ em cinco grupos. No levantamento, 37% dos participantes reconhecem o termo “ácidos” como substâncias corrosivas; 27% relacionam o mesmo como substâncias presentes no solo; 18% compreendem como algo tóxico; e, 9% relacionam o termo “ácidos” com reações químicas e transferências de íons, respectivamente. Após a explanação do conteúdo sobre ácidos e bases, percebeu-se pela análise dos fragmentos de falas dos participantes, mudança conceitual sobre o termo ácido. Tais concepções podem ser melhor compreendidas, ao se analisar os fragmentos de falas dos participantes no Quadro 1. Vejamos:

Concepções iniciais Concepções após a explanação do conteúdo
P1: Entendo que são elementos mais corrosivos. P1: “Ácidos – na teria de Arrhenius, são substâncias que produzem íons H+ em solução”
P4: Ácido é algo que faz mal à saúde tanto das plantas como dos animais que está presente no solo. P4: “ácidos é uma substancia que possui íons H+ em solução aquosa”;
P7: Ácido é um elemento químico da tabela periódica, onde ele corrói as coisas e faz mal. P7: ácidos pela teoria de Arrhenius são substâncias que produzem íons H+ em solução. E pela teoria de Lewis são receptores de pares de elétrons.
P8: Compostos que estão presentes no solo, sendo prejudiciais ao mesmo. P8: “ácidos – na teria de Arrhenius, são substancias que produzem íons H+ em solução.”
Quadro 1: Concepções iniciais sobre ácidos X concepções após a explanação do conteúdo.
Fonte: Elaborado pelos pesquisadores

Da mesma forma foi possível observar o deslocamento conceitual quando, ainda no primeiro encontro, verificou-se os conhecimentos dos participantes sobre o tema gerador “bases”, antes e depois da aula expositiva (Quadro 2):

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Concepções iniciais Concepções após a explanação do conteúdo
P5: Base é uma substancia que em solução aquosa, sofre dissociação iônica, liberando íon; P5: Bases é toda solução aquosa, sofrendo dissociação iônica, liberando o ânion OH-.
P7: Base é uma coisa que fica embaixo que dá suporte a outras coisas. P7: Bases pela teoria de Arrhenius são substâncias que produzem íons OH- em solução e pela teoria de Lewis são espécies de receptoras de prótons. As bases são utilizadas em sabonetes, soda caustica.
P8: Base são os ácidos mais simples. P8: Bases na teoria de Arrhenius, são substâncias que produzem íons OH- em solução.
Quadro 2: Concepções iniciais sobre Bases X concepções após a explanação do conteúdo.
Fonte: Elaborado pelos pesquisadores

Como se pode observar, os registros mostram que 34% dos participantes reconhecem, inicialmente, que o termo “bases” está relacionado a solução aquosa, um conceito possivelmente elaborado a partir de informações vinculadas no contexto escolar, levando em consideração que os mesmos utilizam o laboratório de química na instituição formadora; 22% relacionam a estruturas/edifícios; 11% reconhecem que bases são ácidos mais simples; 22% não demonstram conhecimento algum; e, 11% relacionam a altura de prédios ou casas. Os fragmentos de falas a seguir, trazem algumas concepções iniciais dos participantes:

De maneira geral, podemos observar que as concepções iniciais dos participantes podem estar relacionadas ao cotidiano vivenciado por cada um, pois ao fazerem referência ao termo “bases” como estruturas de edifícios, casas e prédios, acreditamos que há uma relação com o meio onde vivem e as atividades que são desenvolvidas nesses espaços, ou seja, se algum dos participantes possui algum familiar que trabalha na construção civil, é comum relacionar o termo “bases” com a estrutura que sustenta uma casa, por exemplo. Contudo, o duplo significado da palavra “bases”, pode ter ainda, influenciado nos resultados verificados.

No contexto geral, a primeira abordagem sobre o conteúdo de ácidos e bases e teorias, permitiu considerada mudança conceitual nas concepções dos participantes, o que pode estar relacionado à maneira como o conteúdo foi exposto, ou seja, valorizando o diálogo e a opinião dos participantes sobre o conteúdo apresentado.

Os participantes foram ainda questionados quanto a presença dos ácidos e bases no cotidiano campesino, verificando-se nos fragmentos de falas dos mesmos, uma maior associação no dia-a-dia com o termo “ácido” quando comparado à “base”:

P1: Sim, pois em tudo que vamos fazer podemos observar, como por exemplo o vinagre;
P2: Sim, ácidos são ex: limão, soda, abacaxi, frutas cítricas;
P4: Sim, os ácidos estão presentes no solo e as bases está em tudo dando suporte a coisas; P5: Sim, existe ácidos no refrigerante e também existe ácido no sabonete que usamos para tomar banho;
P6: Sim, em nosso estomago que estão presentes ácidos, para ocorrer o processo de digestão.

Os dados nos fazem pressupor que os participantes, ao reconhecerem os termos “ácidos” e “bases” no seu cotidiano, podem estar relacionando os mesmos, com informações adquiridas em meios sociais e familiares do cotidiano campesino.

No trabalho desenvolvido, observou-se que a atividade possibilitou a interação entre os participantes, além de propiciar uma aprendizagem mais prazerosa do conteúdo. Com isso, o estudante se aproxima de novos campos, como por exemplo, afetivo e social, não havendo conceitos de memorizações e fórmulas da forma como o ensino costuma ser realizado (CUNHA, 2004).

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Como última atividade do 1° encontro, foi proposto aos participantes a realização do teste de condução de corrente elétrica em materiais na fase sólida e aquosa. Nessa atividade experimental, buscou-se contextualizar os processos de ionização e dissociação que sofrem os ácidos e bases, respectivamente, no meio aquoso e que foram explanados no decorrer da exposição das teorias ácido-base. Foram utilizados os seguintes materiais no estado sólido: cloreto de sódio, hidróxido de sódio, açúcar, madeira, plástico e ferro. No estado aquoso utilizou-se: etanol, cloreto de sódio, água destilada, vinagre (ácido acético), água de torneira, hidróxido de sódio e limão. Para medir a condução de corrente elétrica nos materiais destacados, utilizou-se o dispositivo artesanal feito especifico para tal fim.

Inicialmente, os participantes realizaram os testes de condutividade elétrica com materiais sólidos e, posteriormente, nas soluções aquosas. Mediante a prática executada, observou-se certa empolgação dos participantes durante sua realização, principalmente por estarem sendo utilizadas substâncias comuns ao seu cotidiano. Para Zimmermann (1993), a experimentação, ao possibilitar aos estudantes presenciar as reações, favorece a construção de conhecimento e compreensão maior acerca do assunto. Há de se considerar ainda, os caráteres indutivo e dedutivo presentes na experimentação, ou seja, no indutivo o aluno vai poder controlar variáveis descobrindo e redescobrindo se há funcionalidade entre essas relações descobertas. No dedutivo se tem a oportunidade de comprovar e esclarecer o que é explanado na teoria.

A Química, o solo e os temas geradores

Em outro encontro, buscou-se fazer a associação e contextualização dos conteúdos trabalhados no 1° encontro, como “solo” e “recurso”, esse intimamente ligado a área de formação dos participantes. Desse modo, os estudantes foram questionados quanto à relação da Química com os termos “ácidos” e “bases” e o solo. As relações mais citadas pelos participantes foram: “presença de nutrientes, ácidos no solo e elementos químicos”. Nos fragmentos de falas a seguir, pode-se verificar melhor as concepções iniciais dos participantes quanto ao questionado:

P3: Sim, pois no solo contem química, além de conter nutrientes e alguns ácidos;
P4: Sim, a vários tipos de ácidos e bases presentes no solo que são analisados pela química;
P5: Sim, no solo existe vários nutrientes e neles existem vários ácidos, mas existe ácidos não só no solo;
P7: Sim, pois alguns elementos químicos são essenciais para um solo fértil e para cultura das plantas;
P10: Sim, pois no solo contem nutrientes que é voltado que são elementos químicos.

Nesse contexto, pela forma de abordar os conteúdos, observou-se que os participantes apresentavam conhecimento satisfatório sobre correção do solo, o que resultou em momentos de discussão favoráveis ao trabalho desenvolvido. Contudo, não possuíam conhecimento químico satisfatório sobre os processos ocorridos nesse meio. Reforçando o saber, sobre a acidez do solo, explicou-se, incialmente, que a mesma está relacionada à presença de dois cátions na solução do solo, ou seja, hidrogênio (H+) e alumínio (Al3+) e que, a presença de ambos depende do pH em que se encontra o meio. Durante a abordagem desse conteúdo, alguns alunos mencionaram reconhecer que, na maioria das vezes, os solos ácidos apresentam excessiva quantidade de cupinzeiros nos pastos. De certa forma, a presença de cupins em determinadas regiões do cerrado brasileiro tem sido associada a situações de desequilíbrio ambiental e manejo inadequado do solo e da pastagem, como cita Constantino (2005).

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Ainda, mediante a abordagem da acidez no solo, os participantes foram questionados quanto a relação existente entre os conceitos de ácidos e bases e a disponibilidade de nutrientes no solo em função do pH. Importante ressaltar que, embora os participantes cursem uma disciplina específica sobre Agricultura Geral e que trata sobre as questões ácido/base no solo, os mesmos não conseguiram expressar de maneira satisfatória o questionado e nem apresentarem a faixa ideal de pH no solo, que está relacionada a liberação e disponibilidade de nutrientes às plantas.

Nesse sentido, evidenciado o pouco conhecimento dos participantes sobre disponibilidade de nutrientes x pH, foi apresentado aos mesmos um gráfico que expressa a disponibilidade de nutrientes para as plantas em relação ao pH do solo. No gráfico, os participantes conseguiram visualizar a relação ideal entre pH e disponibilidade de nutrientes, ou seja, para que haja um equilíbrio e disponibilidade de nutrientes no solo é necessário que o pH do mesmo encontre-se em uma escala de 6 a 7.

Após a explanação do conceito de pH do solo os participantes compreenderam que o pH do solo influencia a disponibilidade de nutrientes para as plantas, ressaltando ainda, o que ocorre no solo quando a faixa de pH não está entre 5,5 e 6,5: P2: “Sim, quando o pH estiver muito ácido determinadas culturas podem não sobreviver, deve-se fazer uma correção adicionando calcário no solo.”

O pH do solo é um dos fatores que mais limitam a produtividade das culturas familiares nos solos brasileiros. Sobre a utilização de calcário no solo para correção da acidez, os participantes apresentaram informações relevantes sobre tipos de calcários e processos de aplicação, contudo, como dito anteriormente, os mesmos não apresentaram conhecimento químico sobre sua ação no solo. Isso demonstra a importância desses conhecimentos para públicos ligados a produção agrícola familiar. Nesse contexto, foi explicado aos mesmos que no solo, o calcário ao reagir com a água sofre o processo de dissociação, liberando para a solução do solo, íons cálcio (Ca2+): CaCO3(s) ↔ CaCO3(aq) + H2O ↔ Ca+2 + HCO3- + OH-

Segundo Raij (2011), a hidroxila reage com o íon H+ da solução do solo, resultando em água. O bicarbonato reage também com H+ originando gás carbônico. Sendo assim, a reação tende à direita enquanto existirem íons H+ em solução. Mediante explicação sobre a reação química do calcário no solo e disponibilidade de nutrientes, os participantes foram direcionados para o laboratório experimental, para determinarem o pH do solo em amostras coletadas pelos mesmos em suas residências. Para essa determinação, os participantes adicionaram 20 mL de água destilada em 20 gramas de solo, homogeneizaram a mistura e, aguardaram cerca de 50 minutos para leitura dos valores de pH, no pHmetro digital de bancada.

Em relação à classificação do solo analisado, todos os participantes conseguiram classificar os respectivos solos analisados em “ácidos” ou “básicos” observado a escala de pH informada anteriormente. Sobre a disponibilidade de nutrientes no solo analisado e sua relação com o pH, verificou-se que os participantes fizeram referência apenas aos macronutrientes, como “nitrogênio, fósforo e potássio”, não citando os micronutrientes, que de certa forma, também estão presentes no solo em função do pH estimado. Por exemplo, esperava-se que o participante P1, citasse “excesso de ferro, cobre, manganês, zinco e alumínio tóxico e “baixas concentrações de potássio, cálcio e magnésio”, sendo estes últimos elementos, formadores de bases e atuantes na redução de alumínio e hidrogênio no solo”.

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Acredita-se que a maioria dos participantes ao citarem apenas os macronutrientes (N, P e K), tenha feito referência à adubação NPK, amplamente utilizada na agricultura. Em relação às ações a serem tomadas para um solo ácido, verificou-se que, a maioria dos participantes conseguiram compreender que a adoção da calagem no solo torna-se a prática mais usual para a correção de solos ácidos.

Mediante os fragmentos de falas analisados, compreende-se que a utilização da experimentação, mostrou-se interessante do ponto de vista a relacionar os conteúdos aplicados anteriormente, com a prática em si, ou seja, que por meio dos valores de pH determinados no laboratório, os participantes conseguiram compreender, de certa forma, quais nutrientes estariam presentes no solo analisado e quais seriam as ações a serem tomadas para corrigir o mesmo. Segundo Abraham et al. (1997) a aplicação de conceitos científicos em sala de aula sem relação com o cotidiano dos alunos, pode promover de certa forma, desestímulo para com os mesmos. Sendo assim, compreende-se que a utilização da experimentação, tanto quanto a metodologia de temas geradores são ferramentas pedagógicas muito importante, pois motivam o aluno e favorecem a construção de conhecimentos de forma contextualizada e crítica.

Considerações finais

Para além da aquisição de novos conhecimentos e reflexões sobre ácidos e bases que a temática trabalhada propiciou aos estudantes, a experiência relatada suscitou reflexões sobre a necessidade de que os docentes empreendam esforços para ir além de um academicismo de formação eminentemente técnica, ainda enraizada em muitas práticas pedagógicas tradicionais, perspectivando outras relações pedagógicas que permitam o desenvolvimento de uma postura de respeito aos saberes construídos no cotidiano, onde o trabalho pedagógico em Ciências e Química possa se constituir por meio do acolhimento das vivências dos sujeitos e de suas compreensões acerca dos temas trabalhados.

A temática “ácidos e bases” foi, aqui, apenas o pretexto para refletirmos sobre a necessidade de aprofundamento em outro solo epistemológico para o ensino de Ciências e Química, que não a pedagogia tradicional, onde a singularidade humana é apagada em nome da padronização do ensino. Como contraponto aos processos de padronização e homogeneização do ensino trouxemos o pensamento de Paulo Freire, mais especificamente sua perspectiva dos “temas geradores”. Temos, então, duas possibilidades de ensino de Ciências e Química com suas implicações eminentes: uma, no escopo da pedagogia tradicional, na qual a ciência e a tecnologia também se entrelaçam às relações de exclusão e dominação, já que os saberes e a cultura campesina são desconsideradas e outra, que contribui na fundamentação crítica do ensino de Ciências, que é o trabalho com temas geradores e experimentação.

Assim, constatamos que os pressupostos freireanos vão ao encontro dos princípios da educação do campo, pois ambos defendem a contextualização do ensino, tornando-o significativo, a partir do reconhecimento e consideração dos aspectos da realidade que fazem parte da vida no campo. A grande pergunta que nos fazemos é: pode-se instaurar, via práticas pedagógicas e conteúdos curriculares, um novo ethos pedagógico, que permita a esses estudantes o deslocamento de um lugar de heteronomia com relação ao conhecimento, para um lugar de emancipação e cidadania? Que potencialidade teria o ensino de Ciências e Química fundamentado nos pressupostos freireanos de promover essa travessia?

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Esse movimento, no contexto internacional, surge após a Segunda Guerra Mundial em negação à concepção linear relacionada à Ciência e à Tecnologia.

Para Ramos (2004) a contextualização pode ser compreendida como a “inserção do conhecimento disciplinar em uma realidade plena de vivências, buscando o enraizamento do conhecimento explícito na dimensão do conhecimento tácito”. (p 9)