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Concepção de Ciência e Ensino de Ciências da Natureza: Entre a Inclusão e a Subalternização

Welson Barbosa Santos
Denise de Oliveira Alves
Daniel Gabriel Borges

Aproximações Iniciais

Neste capítulo nos lançamos ao desafio de levantar algumas reflexões (re)editando o velho debate sobre o modelo clássico de ciência e até que ponto ele se coloca a favor da inclusão ou da subalternização do estudantes com relação ao conhecimento (construído ou assimilado passivamente) na educação escolar. Esclarecemos que ao utilizar a denominação “modelo clássico de ciência” estamos fazendo referência à perspectiva positivista, ampla corrente de pensamento que se fundamenta na ideia de que a ciência é o único meio verdadeiro de construção do conhecimento, postulando a sua supremacia em detrimento de outras formas do conhecimento humano.

O viés priorizado como forma de aproximação ao tema é o de contextualizar alguns pressupostos conceituais que estruturam a educação especial na perspectiva da educação inclusiva, desejando, com isso, refletir sobre inclusão educacional, ensino de ciências, processos de inclusão e subalternização. Então, a grande questão colocada é: em que concepção de ciência se ancora o ensino das ciências da natureza e, em que medida esse ensino contribui para a inclusão ou subalternização do estudante com deficiência nas escolas comuns regulares?

Buscando resposta a essa questão estruturamos o texto em três tópicos. No primeiro discutimos a representação dominante de ciência, seus limites frente à construção do conhecimento e sua potencialidade de incluir ou subalternizar estudantes com deficiência nas escolas inclusivas. Essa discussão se respalda no pressuposto de que a concepção de ciência que os professores possuem orienta e justifica suas práticas pedagógicas. Além disso, fazemos, sumariamente, uma contextualização acerca do escopo da educação especial na perspectiva inclusiva e, por último, buscamos refletir sobre esses referenciais como orientadores da prática pedagógica no ensino das ciências da natureza. O substrato empírico para essa discussão são observações, entrevistas e questionários, realizados em uma escola estadual, nas disciplinas de Ciências, Química, Física e Biologia, com estudantes do 6º ao 3º ano do ensino médio, entre estes, um estudante com deficiência.

Como pano de fundo está a problematização acerca da educação inclusiva e do impasse que sua implementação nos traz: de um lado tem-se uma demanda legal e uma política governamental que traçam diretrizes para a inclusão escolar, além de experiências que buscam atestar a eficiência e apontam os limites de uma escola aberta para todos, indistintamente. De outro, temos a crítica a um modelo de escola que reflete uma ciência positiva e desenvolve mecanismos excludentes socialmente aceitos e historicamente perpetuados. O impasse está colocado na medida em que esse modelo de ciência que ancora a prática pedagógica, por sua fragilidade conceitual em comportar a complexidade de uma sala de aula heterogênea, se esgota progressivamente enquanto potencial explicativo do fenômeno educacional.

Do homem genérico à cisão do homem: ciência para incluir ou subalternizar?

Refletir sobre o modelo dominante de ciência nos faz voltar um pouquinho no tempo, quando o mundo não era o da ciência e a curiosidade do homem à cerca de sua essência, dentre os demais segredos do universo, era buscada no encantamento, na magia, no misticismo, em conceitos prévios, nos livros sagrados e na natureza. Até o início do século XVI era assim a alma do mundo velho: cheia de contradições. A filosofia caracterizava-se por tomar o conhecimento como uma totalidade – a reflexão sobre a natureza, a política e a arte eram consideradas um mesmo objeto intelectual.

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Neste lugar e tempo os homens construíam formas discursivas e imagéticas, numa tentativa de organizar-se e organizar o mundo que os rodeava. O mais interessante, e que seria incompreensível pelo modelo de ciência positiva, é que este encantamento não se configurava como incapacidade de utilizar-se da própria razão para a conquista do esclarecimento. Era, pois, o próprio nascimento da razão, fruto da construção de verdades refutáveis, que se erigia sobre as diferenças, que eram parciais e efêmeras. Uma razão que incluía o conhecimento, uma importante dimensão estética, porque abstrata e expressiva, e um aspecto ético, pela indissolúvel amarração do homem ao homem e à natureza.

A partir do século XVII o que era sabedoria, virou epistême, desencantamento, e a ciência se impõe para o enquadramento de tudo o que não conseguimos abarcar. Disso advém um conhecimento fragmentado em múltiplos objetos, originando uma diversidade de métodos. Era a racionalidade instrumental, outorgando a ciência o poder de produzir “a verdade”.

Uma crítica rigorosa a essa racionalidade é feita, mais tarde, por muitos pensadores, entre eles, Gaston Bachelard, que chama a atenção para um dos maiores equívocos da modernidade, que foi o de supervalorizar a razão em detrimento do sujeito, da subjetividade (BACHELARD, 1978; 1990). Seu pensamento aponta para a interação permanente entre o “saber racional” e a “invenção poética”, aparentemente contrários e, para ele, tudo o que se pode esperar da filosofia é que ela torne “(...) a Ciência e a Poesia complementares, uni-las como dois contrários bem feitos. É preciso, portanto, opor ao espírito poético expansivo o espírito científico taciturno” (BACHELARD, 1978, p.130).

Talvez esse caráter dual de sua obra: diurna (epistemológica) e noturna (poética) e, principalmente, a fluidez que existe entre as duas perspectivas, garantindo uma comunicação recíproca entre si, e uma dimensão de completude ao invés de descontinuidade seja o maior legado de seu pensamento no confronto ao paradigma da ciência positivista.

Também Japiassu (1982), de outro - mas não distinto - lugar epistemológico, fez a mesma crítica muito bem resumida em sua frase: “(...) toda a desgraça das ciências humanas reside no fato de ter que lidar com um objeto que fala” (p.9). É estruturante para seu pensamento a indagação:

Será que devemos ver no homem a figura de um novo objeto oferecendo-se ao estudo científico? Ou será que devemos ver nele um momento de contestação no qual a ciência, enquanto projeto de mathesis universalis, é posta em questão? (p.11).

Em outra obra (JAPIASSÚ, 1986), ele nos fala de dois mitos que a Epistemologia crítica deveria incumbir-se de diferenciar: o mito da Ciência que necessariamente conduz ao progresso e o mito da Ciência-Pura e neutra. O primeiro foi aceito, por muito tempo, como uma verdade inquestionável, um dogma, segundo o qual a ciência deve ser julgada pelo valor social de seus resultados. O segundo – mito Ciência-Pura e neutra - toma a ciência como sendo seu próprio fim: ela só deve prestar contas à si mesma. Mas isso não significa que ela também não possa prestar serviços. O que importa aqui é que ela será sempre uma busca desinteressada do Conhecimento, um bem em si mesmo, sem nenhuma significação moral ou política.

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Tal argumentação - da Ciência Pura e neutra – pode parecer, em uma leitura apressada, inabalável, contudo, a epistemologia crítica vem mostrar que, ao fornecer um saber, este saber confere meios de ação; e tais meios, servem a determinados fins e dizem respeito aos cientistas que os produzem. Pensemos, por exemplo, nos rastros de horror e miséria deixados na história pelos saberes científicos, a partir de armas militares de destruição em massa como: o lançamento das bombas atômicas sobre o Japão na II Guerra Mundial e o uso de substâncias químicas em guerras como a do Vietnã.

Nesse entendimento, ao qual nos filiamos, o cientista será sim responsável pelo mau uso que terceiros possam fazer da Ciência e por todas as aplicações nocivas ao homem. Ainda, podemos dizer que enquanto atividade humana, a ciência é histórica, situada, provisória, política e social, não consegue ser neutra, perene ou autônoma, enquanto seu papel e seu produto - o conhecimento. São muitas as implicações desse entendimento, quando pretendemos refletir sobre a escola e, mais especificamente, sobre o projeto em implementação em nosso País, de uma escola inclusiva, acolhedora de todos os estudantes, indistintamente.

O que temos é uma escola voltada para as demandas de mercado, sustentada pela ciência “pura e neutra”, com sua produção de saber envolta por complexos jogos de poder. Poder que, para Foucault (2007), apresenta íntima relação com o saber e está atrelado a mecanismos de dominação, enquadramento, assujeitamento e docilização. Basta notar que de tudo que se produz de conhecimento, o divulgado e repassado é somente o que convém, por ser de utilidade e aplicabilidade para controle e dominação no campo da educação, da política, da economia e em todos os âmbitos da vida.

Essas reflexões nos servem de esteira para pensarmos a educação inclusiva. Uma forma de controle exercido por um saber científico (modelo de ciência) subjugado aos interesses do capital, possivelmente não comporte a dimensão da singularidade humana, e seus protagonistas (professores, gestores) não tenham “paciência” com estudantes que fogem ao script, por que não falam, não escutam, não veem, possuem modos diferenciados de lidar com o saber ou outras questões que os tornam resistentes aos processos de padronização do ensino, das metodologias, das práticas avaliativas.

Frente a isso retomamos a interrogação feita no início: que concepção de ciência sustenta o ensino das ciências da natureza da natureza e em que medida esse ensino contribui para a inclusão ou subalternização do estudante com deficiência nas escolas comuns regulares? Que força teria esse poder (controle) na escola inclusiva?

Escola inclusiva

Um primeiro ponto da resposta é lembrar que esse poder não se encontra específica e restritamente no domínio dos grandes mecanismos, sistemas e governos (FOUCAULT 2007) ele está no saber e na sua habilidade de se deslocar. Isso significa dizer que as políticas públicas, os dispositivos legais não tem, em si, a força de incluir, de garantir sucesso escolar. Essa garantia, se puder existir, estará no movimento do poder/saber, na volatilidade do poder, nas relações sujeito-sujeito, contexto em que se otimiza e desloca-se mais rapidamente. Por ser assim, onde há poder há saber e onde há saber há poder porque um conduz o outro; por isso não deve ser percebido como fixo ou restrito ao sujeito ou a um corpo.

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Portanto, se há poder, no saber científico que chega a escola e é reproduzido pelo professor, é no embate com a resistência que claramente vemos sua produtividade e potencialidade. É no questionar esse poder e o saber que ele traz que haverá deslocamento de saber e poder, por isso reconhecido como volátil e não fixo. Nisso percebe-se a importância e o papel da educação inclusiva, por tudo que ela traz de transgressão, de confronto com o modelo clássico de ciência, com os processos de docilização, de subalternização própria do ensino padronizado.

Continuando nossa linha de raciocínio temos a educação inclusiva como possibilidade de resistência e confronto a um saber cientifico constituído por um conjunto de verdades inquestionáveis erigidas sob o domínio desse - poder saber científico – onde os alunos são moldados para se tornarem força de trabalho ajustada, lapidada para a máxima eficácia, utilidade econômica, produtividade e reprodutividade.

Mas, de onde vem essa potencialidade da educação inclusiva? Vem das demandas colocadas pelo estudante que possui uma deficiência e precisa ser olhado de forma singular, atendido em sua especificidade, quer seja um recurso de acessibilidade quer seja uma flexibilização de tempo, quer seja uma diversificação curricular ou metodológica.

Vários autores, ao referirem-se a educação inclusiva, traduzem a dimensão de um “projeto revolucionário”. Eizirick (2005) utiliza a guerra como metáfora para defender a ideia de ser a inclusão um processo complexo, difícil e doloroso e demandar a “gestação de uma mentalidade inclusiva”; em Mantoan (2003) encontramos andar no fio da navalha para expressar o embate, a resistência, a ruptura epistemológica, inerente à proposição de uma escola aberta para todos; ainda, Forest e Lusthaus (1987), pesquisadores canadenses, utilizam o caleidoscópio como metáfora para a inclusão. Este brinquedo, formado por um pequeno tubo de metal, com minúsculos fragmentos de vidro colorido, apresenta a cada movimento, por meio do reflexo da luz exterior em pequenos espelhos inclinados, combinações variadas e agradáveis efeitos visuais. Nenhum pedaço de vidro pode ser retirado do brinquedo para que ele conserve sua beleza.

A proposta de educação inclusiva difere substancialmente de outros modelos e formas de inserção escolar de pessoas com deficiência e, por isso é, em sua gênese, revolucionária. Tal como no caleidoscópio, é da inserção de “todos” os estudantes na escola que depende a sua beleza! As transformações demandadas por essa proposição são radicais e profundas e estão intimamente relacionadas à impossibilidade de se construir uma nova escola sobre as bases de abordagens simplistas que tomam a realidade como fenômeno unidimensional.

A título de contextualização, foi a partir da década de 1990 que o movimento de educação inclusiva tomou força mundialmente, mais precisamente tendo como marco a Declaração Mundial Sobre Educação para Todos. Desde então, conforme Alves (2013):

(...) presenciamos em nosso País, uma profusão de políticas, diretrizes, ações governamentais e não governamentais acerca da educação inclusiva, que desencadeiam profundas transformações no trabalho pedagógico e nos processos de gestão das escolas e dos sistemas de ensino. (p.37).

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Vale ressaltar que o avanço desses dispositivos legais e também dos aportes teóricos e conceituais contribuíram para que a educação especial passasse a se constituir como uma “modalidade transversal de ensino, que permeia todas as etapas, níveis e modalidades de ensino, desde a educação infantil até a educação superior” (BRASIL, 2018). E, a partir de então, não mais foi possível a organização de um sistema paralelo de educação destinado exclusivamente a pessoas com deficiência. A consequência disso foi a complexificação do trabalho pedagógico de modo a se tornar impossível pensá-lo de uma forma apriorística e linear, em que um mesmo conhecimento, uma mesma forma de ensinar tenha aplicação universal e validade para todos os sujeitos.

Além disso, a dinâmica de uma sala de aula acolhedora, que ofereça condições de participação e aprendizagem a todos os estudantes, impõe a necessidade de que o debate sobre as questões educacionais repouse sobre outra perspectiva de ciência, que traga à tona novas concepções de conhecimento, ensino, aprendizagem e posicione o estudante na centralidade do processo educativo e, portanto, na contramão da lógica mercadológica.

Dito isso reafirmamos que, se há possibilidade de romper com essa condição, isso será possível na relação aluno e professor, (mais ainda na relação aluno com deficiência), já que, segundo Alves (2018) a materialização da política de educação especial na perspectiva inclusiva “(...) comportará, sempre, poderes e resistências e, consequentes escapes – rotas de fuga – ricas possibilidades de (re) criação do instituído” (p.99).

Buscamos, a seguir, ilustrar nossas reflexões a partir do substrato empírico anunciado nas considerações iniciais. Pensamos que esse movimento teoria/prática é fundamental para chegarmos a uma possibilidade de resposta a questão inicial acerca da concepção de ciência que sustenta o ensino das ciências da natureza e em que medida esse ensino contribui para a inclusão ou subalternização do estudante com deficiência nas escolas comuns regulares.

O Ensino de Ciências da Natureza

A essa altura, julgamos ser importante reforçar que a ciência e seus saberes distinguem-se pelas suas características peculiares de rigor, precisão, regularidade, capacidade de previsão e de modificação do ambiente. Talvez esses sejam os sustentáculos do seu enorme prestígio, mas, mesmo assim, trata-se de um conhecimento a se complementar nos outros conhecimentos que a sociedade também produz. E já passa da hora de ficar entendido, tanto por quem produz ciência - a comunidade acadêmica; quanto por quem dá consequência ao saber produzido no cotidiano da escola - os professores, que não há uma única epistemologia, único modelo de cientificidade e que todo conhecimento, para se constituir, “(...) deverá destruir as construções passadas e abrir lugar a novas construções” (JAPIASSÚ, 1986, p.53). É este “movimento dialético que constitui a tarefa da nova Epistemologia”, nos ensina Japiassú.

Essa concepção nem sempre é bem entendida e aceita no campo das práticas pedagógicas. É fato que o processo educativo deveria considerar os saberes da experiência dos alunos que chegam à escola, seus modelos de convivência, seus costumes, os símbolos sociais, as crenças e os sentimentos que levarão, sempre, a formas específicas na elaboração subjetiva da aprendizagem pelo sujeito. Contudo, os professores deveriam realizar um esforço para fazer a travessia, dar um salto para além do academicismo de formação eminentemente técnica, rompendo com as velhas formas de pensar, muitas vezes estereotipadas, sobre os processos de ensinar e aprender.

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Essa empreitada requer que novas reflexões sejam feitas e que gerem novas respostas, capazes de instaurar uma dinâmica não reificada no ato educativo, mas tendo na base desta discussão um reconhecimento diferenciado das atividades e interações do sujeito em seu modo de conhecer, explicar e intervir no mundo. Estamos falando de uma necessária transformação da prática pedagógica, muitas vezes ainda conservadora, centrada em métodos positivistas-racionalistas, na reprodução e manutenção de um conhecimento acrítico e descolado da realidade.

Essas foram algumas reflexões que condicionaram o nosso olhar sobre a prática pedagógica investigada, que passaremos a descrever a seguir.

A pesquisa aconteceu durante a realização do tempo comunidade (TC) em um curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal de Goiás, regional Goiás. O corpus contou com a participação de 24 estudantes que cursavam a escolarização desde o 6º ano do ensino fundamental até o 3º ano do ensino médio de uma escola estadual e abrangeu os componentes: Ciências, Química, Física e Biologia. Entre os estudantes entrevistados, um era pessoa com deficiência - baixa visão. Além destes, também participaram 2 professores que possuíam licenciatura em Ciências. Todos os sujeitos da pesquisa assinaram o Termo de Livre Consentimento (TLC). O substrato empírico constou de observações, entrevistas e aplicação de questionário.

Algumas impressões foram possíveis a partir das observações realizadas. Antes de relatá-las, tomamos carona com Fourez (1995) e Meksenas (2002) para especificar a concepção de “observação” a qual nos filiamos. Para estes autores, “(...) a observação será, antes de tudo, uma construção do sujeito, e não a descoberta de que alguma coisa estará lá independentemente do sujeito observante” (FOUREZ, 1995, p.59).

Fourez (1995) confronta a perspectiva clássica do método científico a partir dos postulados do método dialético. Toma emprestado de Kant a expressão “revolução copernicana” para dimensionar o deslocamento epistemológico que faz da “observação científica”. Sua concepção de observação pode ser perfeitamente compreendida na “metáfora do olhar” utilizada por Meksenas (2002) para explicitar o seu entendimento de fazer pesquisa: “Olhar é fitar à volta, mirar e contemplar o mundo por meio de um órgão dos sentidos. (...) Não olhamos senão por meio do modo como pensamos, e pensamos de acordo com o nosso olhar na história”. (p.15).

A mesma forma de conceber a observação pode ser transposta aos modelos e teorias científicas. Para Fourez (1995) os sistemas teóricos aparecem como interpretações que organizam a nossa percepção de mundo: “(...) podem ser comparados a mapas geográficos. Estes não são cópias de um terreno. São uma maneira de poder se localizar. O conteúdo de um mapa é determinado, da mesma forma que os modelos, pelo projeto que se teve ao fazê-lo” (p.68).

Assim entendendo, toda realidade é “lida” de forma idiossincrática e a simples tentativa de nos apropriarmos dela já é uma forma de interpretação, o que possibilita que tenhamos vários olhares sobre um mesmo tema, embora utilizando fontes muito próximas, porém com dispositivos analíticos diferentes. Isso não retira o rigor científico de um trabalho, nem implica na falta de reconhecimento do saber acumulado e legitimado pela comunidade científica. Simplesmente reposiciona o pesquisador em outra matriz epistemológica, que problematiza o modelo de ciência dominante na modernidade e reconhece, em todo conhecimento, a conexão entre objetividade e subjetividade, emoção e razão, indivíduo e sociedade, o que faz com que a teoria ganhe vida, dinamicidade, movimento, condicionada pelo contexto histórico e cultural. Considerando essa esteira conceitual, vamos às impressões advindas das observações.

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Considerando os limites espaciais para esse texto nos limitamos em descrever, dos aspectos observados, apenas os que tem maior congruência com o que discutimos aqui. Assim, dividimos o relato em dois eixos: concepção de aprendizagem e estudante com deficiência.

Sobre concepção de aprendizagem

Antes mesmo de nos referirmos a concepção de aprendizagem que conseguimos abstrair das observações e entrevistas é necessário contextualizar uma realidade acerca da formação de professores, que, em nosso entendimento, afeta a qualidade dos processos de ensinar e aprender. Levantou-se, no estudo, que a escola estava sem professores de Física e Química, e que, para suprir a necessidade, a secretaria de educação enviou para a escola professores de outra área. Segundo a direção este é um problema sério, uma vez que não há na cidade professores destas áreas, nem nas proximidades, que se disponham a uma contratação temporária. Esse déficit de professores com formação específica apareceu no depoimento dos estudantes:

Nem todos os professores são formados nas áreas que eles atuam, então às vezes nem sabem sobre o assunto e continuamos sem saber a matéria. (E 5).
Outra coisa que me deixa chateado é a incapacidade de alguns professores de darem suas aulas por falta de preparo na área em que trabalham. (E 13).

Talvez para compensar a falta de formação, nas entrevistas realizadas com os professores ficou evidente que há um apego ao livro didático, além de que a escola e o próprio professor não dialogam com pais e alunos, para construir um conhecimento que considere a realidade do aluno.

Analisando os manuais escolares que estavam disponíveis em sala de aula, percebemos que o livro, visualmente, instiga a vontade de ler, pela sua organização e boas imagens utilizadas, chegando a exagerar na quantidade de imagens presentes nos textos, principalmente para o manual de sexto ano. Constatamos, ainda, que os textos possuem informações atuais sobre os conteúdos de Física, Química e Biologia, porém, não favorecem uma aprendizagem significativa, já que, os conhecimentos são transmitidos em versão final, não por meio de uma construção do aluno.

Para um ensino de ciências que contemple uma aprendizagem significativa ao aluno, seria necessário a utilização de atividades experimentais, pois permitem, simultaneamente à apreensão de um conhecimento, o desenvolvimento dos processos científicos e das capacidades investigativas envolvidos na aquisição dos conteúdos. Esses processos e capacidades são, por sua vez, necessários ao desenvolvimento de competências complexas (cognitivas, afetivas e psicomotoras), que podem ser utilizadas também em outras áreas de conhecimento/saber. Para além, as atividades experimentais costumam ser motivantes e prazerosas para o aluno.

Contudo, em alguns momentos foi possível verificar que o professor não lança mão dessa ferramenta pedagógica – a experimentação. Observando uma aula de ciências, por exemplo, vimos o professor explicando aos alunos que o ar que nos rodeia tem peso e ocupa espaço, citou alguns exemplos do cotidiano e finalizou. Quando o interrogamos sobre se conhecia a experiência do balão com a garrafa pete, que poderia tornar a aula motivante e fazer com que os alunos chegassem a conclusão,por si próprio, de que o ar ocupa espaço, o mesmo disse desconhecer e também alegou não ter laboratório de ciências e o material necessário na escola para a realização.

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Assim, percebemos que da forma como é ministrado na grande maioria das aulas observadas, preocupando-se apenas no transmitir fatos e conceitos científicos (Produtos prontos da ciência), presentes no livro didático e textos científicos, acaba-se desvalorizando a observação, a classificação, a previsão, a medição, a capacidade de inferir, de interpretar, de comunicar, etc., competências fundamentais para a construção do conhecimento cientifico. Sendo assim, esse é um ensino que pouco contribui para a emancipação dos alunos, pois não desenvolve competências científicas que permitam a construção da ciência.

Disso apreende-se uma concepção de aprendizagem de fundamento apriorista ou empirista, incapaz de enfrentar a incerteza, o inusitado, a fluidez do conhecimento, onde os professores acionam suas velhas ferramentas intelectuais, sem considerar a busca do significado e da interpretação, próprias dos processos de construção do conhecimento onde por meio da imersão nas interações situacionais os sentidos são produzidos.

Ainda, possivelmente sobre “aprendizagem”, chamou-nos atenção a resposta dos estudantes quando indagados sobre o que gostam na escola: 48% consideraram os amigos e colegas, 36% os professores, e 16% outros (Quadra, estrutura, proximidade de casa). Em momento algum o aprender foi mencionado como algo que pode ser prazeroso e os motivar a ir a escola.

Sobre estudantes com deficiência

Com relação aos estudantes com deficiência, além da estudante com baixa visão, que foi sujeito da pesquisa, a escola possui um quantitativo de vinte alunos atendidos, no contra turno, no atendimento educacional especializado (A.E.E). Pareceu-nos, a um primeiro olhar, haver uma intencionalidade de atendê-los da melhor maneira, já que a escola conta com professores específicos para acompanhamento em sala de aula, e na sala de recursos multifuncionais para o AEE. Ainda, tem investido na acessibilidade física (banheiros adaptados, rampa de acesso a sala da direção).

De acordo com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) o AEE destina-se aos alunos público alvo da Educação Especial e tem o objetivo de identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando suas necessidades específicas. As atividades desenvolvidas no AEE diferenciam-se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. Esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos alunos com

Nas observações realizadas, os alunos estavam felizes com a escola, a aluna com deficiência que participou da pesquisa, disse gostar da estrutura, dos professores e colegas. A escola tenta atender da melhor forma, mesmo dentro de limitações de orçamento e recursos tecnológicos para atendimento aos estudantes com deficiência.

Quando perguntada sobre o que a motiva a estudar e permanecer na escola respondeu "a minha perspectiva de vida é o que sonho ser no futuro", ou seja, estudar, ir para uma boa faculdade, conseguir uma boa situação econômica.

Tanto a fala da aluna quanto as observações realizadas podiam nos levar a conclusão de que a escola em questão é uma escola inclusiva, que garante participação e aprendizagem aos estudantes com deficiência. Fica claro, ainda, que os professores estão evidenciando um processo de sensibilização em relação à questão legal, do direito à educação por parte das pessoas com deficiência.

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Entretanto, a fala recorrente sobre “o não estar preparada” por não possuir formação, específica para a escolarização de estudantes com deficiência, acrescida de um ensino ministrado na perspectiva da transmissão de conteúdos nos faz indagar sobre a concepção que está subjacente a prática docente e, até que ponto, essa concepção favorece a inclusão escolar desses alunos. São questões que trazem a tona às dificuldades relacionadas ao ensinar e ao aprender, às inadequações metodológicas e práticas avaliativas, a aparente incongruência entre a formação de professores, seus saberes e o trabalho pedagógico em ambientes inclusivos, ao mal estar docente frente à implementação da educação inclusiva, entre outras.

Além disso, não podemos esquecer que na educação especial, a forma individualista de conceber a realidade alinha-se a uma perspectiva clínica que, enfatizando o déficit orgânico, ignora as possibilidades de desenvolvimento advindas da vida social e da inserção na cultura. Por muito tempo essa concepção norteou as práticas educacionais direcionadas ao estudante com deficiência, produzindo um efeito de naturalização do fracasso escolar ou da não aprendizagem como sendo uma decorrência da deficiência em si e, portanto, condição imutável na/da pessoa.

Uma das consequências desse processo é a concepção, recorrente, de que Pessoas com Deficiência, mais especialmente deficiência intelectual, não são capazes de aprender, nem tampouco de se constituírem enquanto sujeitos de direito com relação à condução de suas próprias vidas. Subjacente a tais concepções está à noção de imutabilidade da situação de deficiência, relacionada à ênfase nos condicionantes biológicos em detrimento dos intervenientes socioambientais.

Assim, os discursos e as práticas de inclusão serão sempre marcados pelos discursos e pelas práticas de exclusão: inclusão/exclusão na escola/universidade, inclusão/exclusão na vida social, inclusão/exclusão de si próprio (coisificação). A história da Pessoa com Deficiência é a história da institucionalização, da segregação, e, ao mesmo tempo, é uma história de lutas e conquistas pela (des)institucionalização e pela inclusão. Para fazer avançar as práticas de inclusão entendemos ser preciso, em primeiro lugar, identificar e melhor conhecer esses discursos e práticas e, em segundo lugar, intervir, para que as pessoas (os professores e gestores da Educação possam, se assim julgarem pertinente, mudar seus discursos e suas práticas, instaurando outras lógicas, outras dinâmicas, fortes o suficiente para abalar as velhas concepções acerca da aprendizagem e inclusão educacional de estudantes com deficiência.

Contudo, novos desenvolvimentos teóricos e conceituais tem problematizado o determinismo subjacente a esses pressupostos, a exemplo do movimento mundial de inclusão que eclodiu no Brasil e no mundo a partir da década de 1990, e impulsionou uma grande mudança no entendimento acerca das diferenças humanas e das possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem das Pessoas com Deficiência.

Também no campo da psicologia temos, entre outras, a teoria sociocultural de Vygotsky (1998) que confronta os referenciais organicistas e aponta para a complexidade e singularidade dos processos humanos de desenvolvimento e aprendizagem que acontecem na interação com signos, símbolos culturais e objetos. Um dos pressupostos básicos do pensamento do autor é que o ser humano constitui-se, enquanto tal, na relação com o outro.

Recuperando a questão estruturante para esse texto, essas são situações que afetam os espaços escolares e não conseguem ser olhadas e tratadas pela lente da racionalidade científica, paradigma dominante nas ciências.

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Reflexões finais

Buscamos nesse capítulo refletir sobre uma velha questão que se vê reeditada hoje, a partir de novos referenciais legais, políticos, teóricos e conceituais que consubstanciam o campo da educação comum e da educação especial na perspectiva inclusiva. Referimo-nos ao conceito clássico de “Ciência”.

Vimos que, entender que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro, desconsiderando todas as outras manifestações do saber traz implicações para a prática pedagógica, comprometendo a intencionalidade e o alcance de nosso trabalho pedagógico.

O caminho teórico e conceitual tomado nos permitiu pensar que tem havido uma busca por caminhos que possibilitem o alcance de um fazer ciência que fuja as armadilhas da normatização e o controle e consequentemente a subalternização. A partir daí, será possível tornar esses saberes ferramenta de poder. Ainda, assumindo o lugar de resistência citada por Foucault (2007), a urgência é de se dizer não ao óbvio do cotidiano já estabelecido e interrogar as ideias, os fatos, as situações, os comportamentos e os valores. Nisso, é preciso questionar o poder estabelecido e bem arraigado em toda a sociedade, principalmente nas micro relações de poder, como orienta o autor.

Consideramos que é a partir de uma logística clara das relações de poder que envolvem a ciência, a escola e os saberes produzidos e repassados que conseguiremos melhor pensar o papel da educação frente aos mecanismos de subalternização e não reconhecimento da diferença, promovendo um novo olhar sobre as práticas pedagógicas para que, desta forma, sejam concebidas de maneira integral e sistêmica, compreendendo as vivências subjetivas do sujeito e respeitando a sua complexidade. Ainda, acreditamos que a partir de uma desconstrução da ciência como saber soberano será possível se repensar a docência nas áreas de conhecimento que propagam esse saber.


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MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Inclusão escolar: o que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Moderna, 2003.

MEKSENAS, Paulo. Pesquisa Social e Ação Pedagógica. São Paulo (SP): Edições Loyola, 2002.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. Tradução José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. 6. ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1998.

A terminologia travessia é utilizada aqui no sentido atribuído pelo professor Mesac Silveira Junior: “A travessia abriga fragilidade, por que a esperança, que incita a travessia, está permeada de necessidades, medos e preocupações” (SILVEIRA JUNIOR, 2008). Também em Fernando Pessoa encontramos: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares”. Esse é o tempo da travessia, nos ensina o poeta, e, “[...] se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos” (2011).

A pesquisa aqui socializada é apenas um recorte de uma pesquisa maior, que foi aprovada pelo Comitê de Ética – CEP, sob o parecer CAAE 57295716.0.0000.5083 e resulta da produção de professores pesquisadores do Grupo de Pesquisa Educação no Cerrado e Cidadania – GPECC - http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1384116871669959.

Segundo a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, o público alvo da educação especial são Pessoas com Deficiência, Transtornos Globais do desenvolvimento e Altas Habilidades/Superdotação. (BRASIL, 2008).