Grandes enigmas, paradigmas e mitos cercam a história da construção do tempo em nossa humanidade. Mas de que humanidade estamos querendo falar, contar, pertencer e experienciar?
Certamente é uma pergunta pertinente para todos os tempos, para qualquer tempo, para ontem, hoje e amanhã? Cartas ao tempo vêm da ânsia do hoje, mas também do desejo de nossos ancestrais de falar sobre quem faz, habita e dá sentido ao tempo... e sobretudo da magnífica experiência de entrar em sintonia com o tempo do “Outro”.
Quantas verdades sobre o tempo essa humanidade já inventou, na busca por compreender a noção de tempo! Guardamos, assim, o desejo de entender algumas formas de organização das sociedades contemporâneas.
Somos diferentes, e a forma como significamos e vivemos o tempo também. As “Cartas ao tempo” se tornam uma espécie de manifesto sobre isso, ou seja, é urgente explicar, para este tempo colonizado e seus colonizadores, que precisamos findar com os processos de expropriação, supressão, silenciamento, diferenciação desigual etc., nos quais a lógica do tempo é totalmente diferente.
Com essas reflexões, em 2022, o grupo de dança Diversus estreou o espetáculo “Cartas ao tempo”, em formato virtual.
Página 36A metodologia de criação do espetáculo/virtual “Cartas ao tempo” buscou habitar essas questões do tempo do outro, das construções de tempo colonizadores de povos tradicionais, da população negra, de pessoas com deficiência e de processos de desterritorialização. Essas cartas escritas por diferentes pessoas, por suas diferentes formas de compreender e viver o tempo, também serão escritas e lidas de diversas perspectivas de linguagens. O objetivo da investigação através de cartas, que se traduz em diferentes formas de tempo e temporalidade (materialidades), é, antes de tudo, provocar, experimentar e expressar novas formas de encontro e diálogos entre as mais diversas culturas e suas distintas temporalidades, por meio de uma poética em dança acessível e diversa.
“Cartas ao Tempo” proporciona ao grupo de dança Diversus a possibilidade de ampliar a discussão e dançar com e a partir do respeito e protagonismo da diversidade de corpos. Estes, com suas corporeidades múltiplas e interseccionais e suas histórias, se cruzam e se distanciam.
Acreditamos que o corpo em movimento, em relação com a natureza e com o outro, tem muito a dizer ao tempo e às suas lógicas de construção, fundamentalmente apresentando outras formas de habitar o tempo.
Página 37O processo de criação aconteceu a partir do processo criativo colaborativo, entre as diretoras e codiretoras. Este foi disparado por cartas para os intérpretes-criadores, que foram respondidas e conduziram à dramaturgia das cenas. Seguindo a trajetória metodológica do grupo de dança Diversus, apoiada na potência do métodos de improvisação e nos princípios da educação somática e do encontro com o outro na dança, agora agrega alguns princípios da ecoperformance, que potencializam a relação com a natureza e as questões que entendem o ambiente e o corpo como dimensões inseparáveis da criação performativa.
Ao mesmo tempo que uma ecoperformance experimenta as interações ambientais como um evento performativo, ela se configura como um processo ambiental. A ecoperformance pode ocorrer em qualquer paisagem natural, urbana ou virtual, e pode, entre outras possibilidades, problematizar e reafirmar as interconexões entre o ser humano e o meio ambiente.
Página 38Assim, a dramaturgia do trabalho endereçou cartas:
Cartas ao tempo I - Somos quem? Povos originários!!! O espetáculo se inicia com a carta escrita e lida por Eunice Tapuia, contando com a participação de seus filhos e de sua mãe, na Comunidade Indígena Tapuia.
Cartas ao tempo II - Somos quem? Somos diversos. Grupo de dança Diversus - pessoas com e sem deficiência, mulheres, mães, estudantes de graduação, de dança, teatro, entre outras diversidades...
Página 39Cartas ao tempo III - Somos quem? GICA – Grupo Investigação Corporal em Artes, composto por corporeidades diversas que propõem processos criativos decoloniais em artes integradas e expandidas no oeste da Bahia.
O elemento cênico que faz a ligação entre as cenas são folhas de macramê, que passeiam na roupa das(os) artistas, dançando nas mãos das pessoas, no rio que corre, na árvore no parque e na árvore cenográfica no palco.
Página 40A acessibilidade poética em “Cartas ao tempo” esteve presente em todo o espetáculo, se iniciando na Comunidade Tapuia, com a interpretação em Libras, por uma artista intérprete. Já a audiodescrição foi dialogada entre o narrador e pela própria artista indígena que estava em cena.
Página 41Contudo, em todos os espetáculos do Diversus, a acessibilidade ganhou novos formatos e possibilidades, passeando e inovando nas propostas das cenas. Além da descrição funcional da audiodescrição de movimentos, foi experienciada uma proposta poética do movimento de mulheres bailarinas, mães e femininas. Esta surgiu da parceria do roteirista com a diretora da cena e a consultora de audiodescrição. Para isso, o roteirista acompanhou todo o processo de filmagem.
Salientamos, então, outro recurso de acessibilidade: a máscara, necessária na pandemia da Covid-19, que ganhou transparência, permitindo-se visualizar a expressão das(os) bailarinas(os).
Página 42O espetáculo “Cartas ao Tempo” é um convite para o respeito ao tempo do outro. Neste, por meio da noção de tempo, é possível que haja um respeito mútuo na concepção do tempo do Outro, que é diferente de mim.
Convidamos você a assistir nosso espetáculo e a refletir sobre o que você escreveria em uma carta para o tempo.