Meu Nome é Vicente Paulo Batista Dalla Déa, tenho 43 anos, professor de Educação Física, pai do Lucas que tem 13 anos e da Ana Beatriz que está com 16 anos e tem síndrome de Down.
A Ana Beatriz nasceu no dia 5 de novembro de 2003 e chegou esbanjando saúde e beleza, porém vou contar um pouco dessa linda história de um milagre!
Morávamos – eu e minha esposa - em São Carlos, uma cidade do interior de São Paulo, tínhamos vindo de Campinas – SP por conta de uma promoção do meu trabalho, o que culminou em uma vontade nossa, ou seja, era um de nossos objetivos de vida ter filhos e morar em uma cidade menor e com uma qualidade de vida superior, pois achávamos que seria bom para criar nossos futuros filhos.
Casamo-nos em novembro de 2002 e depois de exatamente um ano nasceu nossa primeira filha a Ana Beatriz, como disse, com síndrome de Down, imaginem ela foi a primeira neta, tanto dos avós paternos como também dos avós maternos. Era só mimo, era o xodó de todos, avós, tios e claro dos pais babões de primeira viagem.
Na gestação nem tudo foram flores, acompanhávamos a gestação com um médico chamado Mário Henrique que se tornou um amigo, pois além de ser um excelente médico, descobri que ele também torcia para o Corinthians e nossa consultas, digo nossas pois fizemos questão de colocá-las sempre na minha folga para poder acompanha-la, tudo caminhavam muito bem até que em uma consulta, dentro do protocolo médico ele fez uma verificação que chama-se transluscência nucal, que serve para medir a quantidade de líquido na região da nuca do feto, geralmente realizado entre a 11ª e a 14ª semana. Nesse dia houve uma alteração no padrão normal e ele sugeriu que fôssemos investigar com um médico especialista nesse caso.
Página 61Encontramos uma equipe especializada para continuar a investigação em uma cidade chamada Ribeirão Preto, que fica aproximadamente 160km de São Carlos. Na primeira consulta o médico geneticista explicou os procedimentos que minha esposa faria, dentre estes a amniocentese, um procedimento dolorido com risco de aborto, pois é retirado o líquido amniótico do abdome materno por meio de uma agulha e esse procedimento todo é feito sem anestesia.
Ficamos preocupados, imagine, uma gestação planejada onde nos propusemos a mudar de cidade pensando em qualidade de vida, ou seja, queríamos dar o melhor para nossos filhos e estava acontecendo isso. Foram dias e noites com um misto de esperança e angústia.
Começamos a fazer um acompanhamento mais frequente revezando entre idas ao médico de São Carlos e a equipe de Ribeirão Preto. Até que o dia de fazer a amniciocentese chegou. Lembro que íamos sempre rezando nesse caminho entre São Carlos e Ribeirão Preto e o primeiro estresse tínhamos vencido, pois apesar de toda dor e preocupação com essa agulhada no abdômen da minha esposa, o procedimento tinha sido um sucesso, nesse dia voltamos para casa aliviados, pois não tínhamos perdido o feto, detalhe ainda não sabíamos nada sobre o feto, ou seja, se era menino ou menina se tinha alguma deficiência ou não etc.
Página 62Quando tudo parecia estar indo bem, em uma consulta, ainda esperando o resultado da amniocentese, a equipe médica de Ribeirão Preto deu uma notícia que nos abalou muito, o feto tinha um acúmulo de líquido em torno do corpo todo e que infelizmente as chances de sobrevivência eram mínimas, com toda clareza para ser mais preciso, o médico disse que a qualquer momento a gestação seria interrompida, pois quando essa bolha de líquido que envolvia todo o corpo do feto, rompesse, fatalmente viria a óbito. Nossa até hoje escrevendo esse momento das nossas vidas me emociono. Não deixaríamos que essa notícia interrompesse nosso sonho, somos religiosos, acreditamos em Deus e foi nesse momento que nossas conversas com Ele se tornaram frequentes, lutamos muito, nós três – eu, minha esposa e o feto – para continuar vivendo com nosso sonho de termos um filho ou uma filha.
Em uma manhã, não me lembro exatamente o dia, mas deveria ser feriado, pois eu e minha esposa estávamos ainda na cama, quando toca o telefone e minha esposa vai atender, era o médico geneticista de Ribeirão Preto e objetivamente disse, bom dia o exame ficou pronto e vocês terão uma filha, loira, com olhos azuis e com síndrome de Down, alguma pergunta? Minha esposa muda com a forma ainda dormindo que foi despertada, não disse nada e ele desligou o telefone.
Choramos uma manhã inteira juntos e após uma prima nossa ligar, tentando ajudar essa situação disse uma frase que nos chacoalhou e mudou nossa postura a frase foi essa: “Deus dá a cruz que conseguimos carregar”, nossa isso nos incomodou muito e dissemos ela não será nossa cruz, muito pelo contrário será nossa alegria e nos perguntamos, então por que estamos chorando? A partir desse momento então, não choramos mais.
Mas lembra que no início falei que iria contar uma história de milagre, pois então, inexplicavelmente, pelo menos para a medicina, a nossa querida Ana Beatriz estava se desenvolvendo muito bem e aquele acúmulo de líquido em todo o corpo estava diminuindo, então perguntamos para os médicos, qual seria a explicação médica para isso, e ele disse: a medicina não tem como explicar esse caso. Então para nós isso foi um milagre, pois tínhamos muita vontade de tê-la e nossa pequena guerreira, mesmo dentro do útero com alguns centímetros lutou para viver também.
A partir desse momento, por volta da 18ª semana de gestação, curtimos muito, minha esposa cuidava dela e da Ana Beatriz, conversámos muito com a Ana Beatriz, enfim estávamos felizes. As consultas com o nosso querido Dr. Mário Henrique, meu amigo corintiano eram somente notícias boas, a nossa querida Ana se desenvolvia muito bem, aliás o seu crescimento era acima da curva utilizada inclusive para fetos convencionais.
Página 63Essa gestação nos trazia muita alegria e começamos a ler muito sobre síndrome de Down para saber a etiologia da síndrome, conhecemos algumas famílias com crianças com síndrome de Down e começamos a conviver com elas, estávamos felizes e tínhamos certeza que a Ana Beatriz também seria. Preparamos nossa casa para receber a Ana Beatriz, por exemplo seu quarto era muito colorido para que ela se sentisse estimulada a buscar cores e objetos, com muitos brinquedos, nossa casa tinha um bom quintal e sempre minha esposa inventava algo, comprava areia, para estimular o tato, a brincadeira, a socialização, adquirimos um cachorro para que ela se sentia atraída a ir atrás dele, enfim sempre respeitando seu limite e disposição, proporcionamos um ambiente bem interessante.
Começamos a conversar bastante com nossos familiares, pois até então ninguém tinha tido muito contato com pessoas com Down, com exceção do meu pai que teve um aluno, ou melhor adotou um aluno com síndrome de Down nas aulas de Educação Física. Com toda essa preparação, conversas, contatos com as pessoas com Down, o nascimento da Ana Beatriz foi somente alegria, quero fazer um parêntese aqui para agradecer meu amigo corintiano e também médico Dr Mário Henrique, pois nas últimas semanas de gestação, ele aumentou o número de consultas, para fazer alguns exames pois geralmente crianças com Down tem maior prevalência de nascer prematuramente. Então ele pediu para que fôssemos uma vez por semana para analisar o desenvolvimento da Ana Beatriz, para verificar se a placenta estava adequada, enfim para que a qualidade de vida da Ana Beatriz fosse a melhor possível e que assim nascesse forte e no tempo adequado.
E foi o que aconteceu, a Ana Beatriz nasceu com quase quatro quilos e com pouco mais 50 centímetros, uma meninona!
Com relação as características da Ana Beatriz, desde quando nasceu ela frequentou muitas estimulações, como fonoaudiologia, terapia ocupacional, fisioterapia, fez natação, equoterapia, musicoterapia e tudo isso auxiliou seu desenvolvimento pleno. Optamos em não procurar uma instituição especial, ela foi atendida por projetos de estimulação na universidade ou particular. Ela conseguiu sentar-se por volta dos 7 meses, ela andou com quase 2 anos, inclusive dentro de um shopping, deve ser por isso que gosta tanto de passear em shoppings até hoje!
Página 64Ana Beatriz começou a frequentar a escola comum com apenas um ano. Se adaptou bem, no primeiro dia de aula a mãe ficou na porta da escola chorando e a Ana feliz e tranquila na escola. Na primeira semana voltou para casa com as duas bochechas mordidas, mas logo aprendeu a se defender. Mas nunca foi de atacar. Até hoje é assim, se é agredida ou sofre algum tipo de preconceito se defende bem. Na educação infantil passou por duas escolas e as duas a atenderam bem com mais de uma professora na turma e ela se desenvolvia bem conhecendo cores e vogais junto com as demais crianças.
Mesmo indo para a escola as estimulações e esportes continuaram. No horário contrário da escola tinha equoterapia, musicoterapia, terapia ocupacional, natação e psicopedagoga. Sempre encontramos profissionais muito especiais que fizeram a diferença para que a Ana falasse bem e tivesse uma condição motora muito boa. Apesar de falar bem e as pessoas entenderem bem o que ela fala, a Ana não é de dar papo para as pessoas que não conhece. Ela quebra o estereótipo de que a pessoa com Down é simpática e dada. Quando gosta é carinhosa e educada. Mas quando não conhece ou não gosta, não faz a mínima questão de agradar. Acho que é uma forma que arranjou de se defender do preconceito e dos olhares de dó ou de repulsa que sempre existem. Por ser loira, de olhos azuis e muito bonita, ela chama a atenção e ouvimos comentários do tipo: ela tem Down, mas nem aparece ou apesar de ter Down ela é muito bonita, como se a beleza fosse uma característica apenas para as pessoas sem deficiência.
Página 65Chegamos em Goiânia quando a Ana tinha 6 anos, prestes a iniciar a alfabetização. Fomos a uma escola mais perto de casa que foi indicada por uma mãe que encontramos que tem uma menina com síndrome de Down. Não sentimos que a Ana estava feliz e a professora reclamava que ela ficava embaixo da mesa a aula toda e dificilmente se comunicava. Não sentimos confiança na escola e em poucos meses trocamos para a escola que a Ana está até hoje.
A escola que a Ana estuda desde os seis anos é uma escola com uma proposta inclusiva, seu slogan é “Jeito coração de ensinar”. Parece piegas, mas é exatamente o que fazem. É uma escola privada, a diretora é apaixonada pela inclusão e quase todas as turmas têm pessoas com deficiência intelectual, física ou com transtorno de espectro autista. Atitudes de preconceito por parte de outros pais e pelos colegas são repreendidas pela diretora que é a dona da escola. Nos sentimos acolhidos e a Ana até hoje é feliz lá. Sente falta quando está de férias e se sente bem.
Muitos colegas de sala da Ana estão na escola há anos, acabam acompanhando o desenvolvimento dela, já a conhecem bem, respeitam suas dificuldades e características e valorizam seus acertos. Atualmente vivemos um momento de pandemia do Covid19, estamos em casa há mais de um mês e já faz uns quinze dias que todos os alunos estão tendo aulas online. Eu tenho acompanhado a Ana como “professor de apoio” aqui em casa e tenho me surpreendido com o carinho dos colegas com ela e com a iniciativa de alguns professores para incluí-la nos conteúdos tratados com todos sem esquecer e respeitar suas dificuldades e eficiências.
Página 66Em todas as turmas da escola tem um professor de apoio, mas quem dá aula é o professor regente. O professor de apoio dá atendimento prioritário para os alunos com deficiência, mas atende a todos os alunos que tenham alguma dificuldade. Assim trabalha junto ao professor regente e a coordenadora pedagógica adaptando a linguagem, e os conteúdos para que os alunos com deficiência entendam. Todas as vezes que não gostamos de algum procedimento da escola, eu e minha esposa questionamos e somos ouvidos. Lembro de um dia em que todas as carteiras da sala estavam viradas para frente e a professora de apoio virou as carteiras dos alunos com deficiência para outro lado para facilitar esse atendimento. Entendemos a dificuldade da professora, mas entendemos também que isso marcava e estigmatizava ainda mais os alunos. Questionamos com respeito, apontando o que pensávamos e fomos atendidos prontamente. E assim tem sido, mas quando nossa crítica não vai ao encontro ao que a escola pensa discutimos e chegamos em um consenso.
Algumas vezes nesses anos a professora de apoio, sem maldade ao tentar ajudar a Ana Beatriz que é bem esperta e danada, acabava mimando demais e tirando a autonomia e responsabilidade que queríamos para ela. Mas sempre que víamos isso conversávamos com carinho com as professoras e isso se modificava.
Com o passar dos anos o desenvolvimento da Ana Beatriz, que é mais lento que dos colegas, ia ficando cada vez mais diferente dos demais. Mas a escola nunca privou que ela estivesse com uma turma comum e que tivesse o mesmo conteúdo que os demais. Mas para que pudéssemos respeitar as condições dela, sem desrespeitar suas dificuldades e ignorar suas capacidades, a escola tem uma psicopedagoga que a acompanha desde a primeira série fazendo o planejamento e adaptando todos os livros que a turma utiliza. Assim os livros da Ana têm o mesmo conteúdo que os demais, mas os textos são menores, mais simples, com letra de forma maiúscula (que é a que ela lê com mais facilidade), com tarefas que ela dá conta de fazer sozinha ou com pouco apoio. Pagamos no começo do ano para a preparação desse material, mas tem valido a pena e tem feito a diferença no desenvolvimento dela.
Página 67Atualmente a Ana Beatriz está com 16 anos e está no oitavo ano do ensino fundamental, lê razoavelmente bem, tem uma boa oralidade, adora dançar, é muito boa para criar coreografias e memorizar as coreografias que vê por meio das aulas no Youtube, adora nadar, pois faz isso desde os quatro meses de idade, ano passado foi a sua primeira competição de natação em São Paulo, nas paralimpíadas escolares e conseguiu nadar os 50 metros.
Hoje na escola tem uma professora de apoio, e na sala dela tem 20 alunos, entre eles tem três crianças com necessidades educativas específicas, além da Ana Beatriz, (dois autistas e um disléxico), cada um com suas características e desenvolvimento. Como já disse, estamos acompanhando a Ana nas aulas em casa e continuamos fazendo a tarefa de casa com ela. E estamos felizes com o desenvolvimento dela.
Com os conhecimentos que adquiriu em casa e na escola ela consegue ter muita autonomia. Tanto nas atividades de vida diária quanto nas diferentes formas de tecnologia e comunicação. Ela tem nos surpreendido resolvendo problemas matemáticos que achávamos complexos para ela. Também nos surpreende nesse momento de isolamento com a comunicação que faz com cartas escritas ou com o auxílio do aplicativo do celular. Ainda troca letras que tem fonemas parecidos, mas quando a interessa consegue ler e escrever qualquer coisa. E isso é uma coisa que temos usado e incentivado a escola a usar: temos utilizado seus interesses e o que gosta para conseguir seu desenvolvimento.
A Ana gosta bastante do ambiente escolar, tem sua preferência pela matemática, adora dançar e interpretar por meio das aulas de arte e educação física. A escola por ter uma filosofia inclusiva seus amigos e amigas a respeitam como ela é, bem como os professores. Com relação ao seu temperamento, é muito equilibrada, dificilmente “explode”, é decidida, ou seja, quando quer algo ela foca nisso até conseguir ou entender que naquele momento não conseguirá. Fico impressionado com sua inteligência emocional, ela percebe quando estamos bem ou mal, tem uma sensibilidade para essas emoções.
Página 68Já finalizando esse texto quero dizer que muitas vezes ou na maioria das vezes esqueço que ela tem síndrome de Down e, penso que isso é a verdadeiro respeito as diferenças, pois eu foco na pessoa e não na sua deficiência, afinal a Ana Beatriz tem, por conta da síndrome, somente a deficiência intelectual, ou seja, ela é muito mais parecida conosco do que diferente. Tenho muito o que agradecer a Ana Beatriz pelo jeito em que ela nos ensina a enxergar a vida, pelo jeito que resolve seus problemas sem ficar se vitimizando, como já falei ela é muito focada nos seus objetivos e isso me inspira!
Ana Beatriz, Lucas e Vanessa obrigado por fazerem parte da minha vida!!!