História de pessoas com Síndrome de Down A inclusão escolar

Capítulo 9 - História do Arthur

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Meu nome é Anileide Silva Barros, 58 anos, natural de Buriti Alegre, Estado de Goiás, na data de 04/03/1962 (quatro de março de mil novecentos e sessenta e dois).

Residente da Capital Goiânia desde 1979 com o principal objetivo de entrar para a Universidade. Sou funcionária Pública Federal aposentada pela Universidade Federal de Goiás, a mesma instituição de ensino na qual terminei a graduação em Ciências Sociais no ano de 1984.

Tenho dois filhos. O primogênito, Vitor Augusto Bonifácio, nasceu em 28/03/1998, no mesmo mês em que eu completei trinta e seis anos de idade e está atualmente com 22 anos.

Meu segundo filho, Arthur Gaspar Rosário, nasceu dia 30/07/2001, quando eu tinha trinta e nove anos, atualmente está com dezoito anos completos. Não sei afirmar se se deve ao fato da minha idade à época “considerada” avançada para a maternidade, e por este motivo, Arthur nasceu com síndrome de Down.

Mesmo considerando os avanços científicos e o grande número de trabalhos acadêmicos sobre a síndrome de Down, ainda há muito que não conhecemos sobre o assunto e muitas “fantasias” a seu respeito. Sabemos, por certo, que em geral a Síndrome de Down é caracterizada por certo retardo mental, tônus muscular frouxo que afeta o pleno desenvolvimento da mobilidade e da coordenação, incidindo também no processo da fala, baixa estatura na maioria dos casos, maior suscetibilidade a doenças cardiovasculares, maior risco de desenvolver doenças ou distúrbios do comportamento tais como ansiedade e autismo.

Sabemos, também, que a Síndrome de Down existe em todo o mundo apresentando os mesmo traços físicos gerais e os mesmos sintomas. Mesmo assim, só quem navega nessa “onda” pode compreendê-la um pouco mais a cada dia sem, no entanto, conhecê-la totalmente. Sempre haverá surpresas e desafios, fracassos e vitórias.

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Após “navegar por longas águas” neste caminho, entendemos que a Síndrome de Down é revestida pela necessidade de sermos otimista, mas, em proporção adequada para não cairmos em falsas expectativas. Minha experiência, travada com muito amor e atitudes, ensinou-me que através da Síndrome de Down, não podemos agir cem por cento à partir dos princípios e considerações gerais do assunto e que mesmo à despeito de toda a sistematização caracterizada, “cada caso é um caso”. Humanos são diferentes pela própria constituição natural e não somos capazes de desvendar toda essa “cortina de informações” que cada um carrega.

Será um enorme prazer expressar as nossas experiências que envolvem o nascimento e convivência com o Arthur.

Antes do início deste relato, mencionarei uma fábula da escritora americana Emily Perl Kingsley de 1987, intitulada “Welcome to Holland” - “Bem-vindo à Holanda”, escrita após o nascimento de seu filho Jason Kingsley com a Síndrome de Down. Naquela época usava-se também o termo “mongolismo” para designar a deficiência.

Emily foi uma mãe pioneira em estudar, escrever, divulgar e levar o assunto à discussão. Na citada fábula a escritora faz a seguinte analogia: “quando esperamos pela chegada de um bebê é planejar uma viagem de férias, sem prazo determinado, para a Itália. Daí, adquirimos os guias para essa viagem e fazemos todos os planos concernentes à esse país. As gôndolas de Veneza, o Coliseu, o Vaticano. Aprender um pouco da língua ou algumas frases úteis em italiano. E tudo isso é novo e muito empolgante.

Acontece que, após nove meses de espera ansiosa, o dia chega finalmente. Arrumamos as malas com muito amor e expectativa e, várias horas depois, o “avião” aterrissa na Holanda. Ouvimos o comunicado “Bem-vindos à Holanda” e ficamos surpresos, assustados. “Como assim Holanda? Toda a vida sonhei com a Itália. Planejei e me preparei para a Itália. Deveria ser a Itália”.

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Porém, houve uma mudança de plano do vôo e aterrissaram na Holanda, onde devemos ficar. E continua Emily Kingsley, “o mais importante é considerar que o voo não nos levou a um lugar horrível, pois, a Holanda também é um bom lugar, é apenas diferente”.

Assim, temos que nos reprogramar, “adquirir novos guias para essa viagem”, aprender coisas sobre ela. Conhecer novos grupos de pessoas envolvidas e que de outra maneira, talvez, nunca conheceríamos”. O maior problema que encontramos nesse novo caminho, que agora temos que percorrer é que a grande maioria das pessoas que conhecemos ou não, estão na “Itália”, no lugar que idealizamos. E poucos conhecem pouquíssimas coisas sobre a “Holanda” onde nos habitamos agora.

Entretanto, ressalto com muito amor e dedicação quase exclusiva (porque a maioria da humanidade continua maravilhada com a “Itália”), seguimos o nosso caminho nos adequando, passo a passo, com a nossa estada na “Holanda”.

Isso significa nos adaptarmos à convivência com a síndrome de Down. Temos, agora, muito a aprender sobre ela para que nosso bebê cresça saudável e se adapte, o melhor possível, à convivência social.

Quando esperávamos pelo Arthur não sabíamos que teria a Síndrome, pois, nada foi detectado nos exames do Pré Natal. Só tivemos a confirmação vários dias após o seu nascimento.

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Aconteceu da seguinte forma, um fato interessante: o parto foi por volta das vinte e três horas, classificado pela obstetra “parto expulsivo”, ou seja, um parto muito rápido com apenas uma dor aguda e comprida. Quando o neonatologista o colocou no meu colo, notei que seus olhos eram muito pequenos - na realidade parecia haver apenas um risco no lugar no lugar do olho. Eu nunca tinha visto um bebê Down antes e comentei sobre aqueles olhinhos tão pequenos com o médico que, estrategicamente, desviou minha atenção daquele assunto para outro.

No dia seguinte, recebemos alta e voltamos para casa. No mesmo dia recebi uma ligação do próprio médico neonatologista, no qual, nos solicitou o exame do pezinho do Arthur para amanhã, cujo foi feito na rede particular, pois na rede pública não podíamos esperar.

Como sempre fui muito tranquila, procurei não me preocupar. Fizemos o exame rapidamente e nada havia sido revelado. Somente na semana seguinte, no dia da consulta com o médico, ele nos relatou de sua suspeita sobre a Síndrome de Down.

Fiquei assustada, levantei-me, sem perder o equilíbrio e continuei a ouvi-lo.

Ele então continuou: “na noite em que o Arthur nasceu desconfiei que ele poderia ter Síndrome de Down, mas, precisava investigar. Outros médicos pediatras que estavam no hospital foram vê-lo. Foram quatro médicos analisando o caso do Arthur, sendo que dois médicos acharam que ele tinha a Síndrome e dois achavam que não. Alguns testes que estavam disponíveis foram feitos, mas a dúvida apareceu devido aos traços físicos.

Existe muita insegurança neste processo, chorei no retorno para casa e olhando para o Arthur e nos problemas que teríamos a enfrentar, no “desbravamento e conquista da Holanda”.

Sequei minhas lágrimas e prometi nunca mais chorar por aquele que, eu acabara de entender, não era um motivo de sofrimento, e sim, um motivo para enfrentamento com muito amor, fé e força.

Realmente nunca mais chorei por esse motivo. Arthur não tinha nenhum problema de saúde, nem mesmo cardíaco ou respiratório que são muito comuns e isso eram motivos para agradecimentos e paz. O resto teríamos que correr atrás. Quando o resultado positivo do exame chegou, já estávamos bem acostumados e até fazendo com ele algumas terapias como fonoaudiologia e fisioterapia. Seu desenvolvimento, dentro das limitações existentes, foi bem satisfatório então.

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Arthur era uma criancinha muito amada por todos, lindo e feliz. Esperto, com certa sagacidade e parecia que ia andar antes dos dois anos de idade, quando aos vinte e dois meses de idade teve leucemia. Graças à Deus, o tratamento intensivo de seis meses consecutivos de internação, com muita dedicação dos médicos e da família o deixou totalmente curado. E é bastante curioso que mesmo com a quimioterapia, acreditem, Arthur sequer vomitou. Aliás, a saúde física dele é excepcional, nunca gripou, vomitou, gripou, reclamou de alguma dor ou ficou doente. Costumo dizer que a saúde fisiológica dele é de ferro.

Como em todas as famílias que têm filhos com síndrome de Down, seguimos a vida nos dedicando muito, amando muito e buscando todas as formas e tratamentos possíveis para a felicidade e adequação do Arthur no mundo social que entendemos como o “normal” , de direito e necessário a todas as pessoas individualmente ou como cidadãs.

Ainda antes da idade escolar percebemos que Arthur, mesmo sendo tão saudável, feliz e brincalhão, não se interessava por coisas que interessavam a outros Down, como por exemplo, computadores, celulares ou controles remotos. Sempre gostou de filmes e de música, mas, nunca teve interesse ou quis aprender ligar os aparelhos. Se interessava por plantas e desenhos e gostava de atrair a atenção das pessoas. Nunca foi muito falante, mas, falava algumas poucas palavras com boa pronúncia e se comunicava muito à sua maneira. Muito cedo aprendeu a comer usando dois talheres e encantava as pessoas quando íamos com ele a restaurantes. Sempre foi bom em alcançar o alvo, tipo arremessar uma bola do outro lado do muro ou em cima da casa. Nunca, até hoje, quebrou ou derrubou alguma coisa acidentalmente, parece ter um lógica de risco e campo de visão muito precisos.

Todavia, mesmo comparado ao universo Down, parece que sempre teve um comportamento muito infantil. Não sei se esse comportamento se deu ao fato de muitas vezes termos nos adiantado aos seus desejos. Ou seja, muitas vezes o atendemos sem que ele terminasse de expressar o desejo. O fato é que todos os filhos devem ser tratados com atenção e dedicação, mas, talvez exageramos com os especiais.

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Até, aproximadamente, os quatorze ou quinze anos de idade Arthur foi bastante social gostando de passear e receber pessoas. No entanto, sempre preferiu as brincadeiras isoladamente ou apenas com o seu irmão. Nunca foi totalmente autônomo no que diz respeito a banho e realização das necessidades fisiológicas, mas, sempre as realizou parcialmente, dependendo de ajuda apenas para finalizá-las. Nunca teve dificuldade para entender o que as pessoas falam ou pedem a ele. Sempre foi rápido para atender àquilo que queria e nunca conseguimos convencê-lo fazer algo que não quer fazer no momento ou não gosta de fazer, ou seja, sempre teve forte personalidade própria.

Uma outra característica marcante e diferenciada na personalidade do Arthur é que ele sempre preferiu as pessoas com mais idade que ele. Por exemplo, sempre preferiu os amigos do seu irmão a seus colegas de aula.

É certo que nesse caminho tivemos erros e acertos e até hoje é assim. Sempre o levamos a tratamentos com os mais variados profissionais indicados: fisioterapia (com permanência bem rápida, uma vez, que seu desenvolvimento físico foi bastante satisfatório), fonoterapia, terapia psicológica, terapia ocupacional e cursos de arte. Tentamos, também, natação e não foi possível dar continuidade em decorrência de seu temperamento intempestivo, festivo e infantil, pois, ele sempre fugia para a piscina de adultos, o que representava um perigo para ele e exigia atenção quase exclusiva do professor.

Em casa sempre proporcionamos brincadeiras e passeios, dentro de nossas limitações de tempo e cansaço. Porque, ironicamente, nascimentos com síndrome de Down são mais comuns para os pais mais velhos. No meu caso, sempre trabalhei em casa e fora também. Meu filho mais velho nunca foi ciumento e sempre foi muito amável com o irmão. Mas, com uma inteligência consideravelmente alta, sempre questionou os padrões da escola não se adequando totalmente a eles, fato que sempre exigiu dos pais muita atenção e acompanhamento também.

Arthur nunca frequentou escola especial. À partir dos seus quatro anos começamos com berçário e jardim em escolinhas regulares. Transitando por ali até os seus quase sete anos de idade. Sempre consideramos o seu acolhimento nessas escolas como bom, exceto em uma que lembro-me com toda a clareza.

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Trabalhava meio período, das 07:30 as !3:30 horas, não muito longe da escola e sempre deixava o Arthur lá antes de entrar no meu trabalho (o que ainda era cedo para o recebimento dos alunos) e o buscava as depois das 13:30 horas (após o inicio do período vespertino), esse era o nosso acordo. Um certo dia, saí mais cedo, e fui buscá-lo. Ao chegar na escola, era a saída dos alunos do turno matutino. Parei bem em frente a escola e permaneci dentro do carro esperando que todos os alunos saíssem. Então, presenciei cenas que partiam o meu coração de mãe, cada criança que saia recebia um beijo das professoras. Arthur nunca foi beijado por nenhuma delas, nem na entrada tampouco na saída da escola! Eu tremia de uma emoção negativa! E quando meu filho já estava acomodado dentro do carro para partirmos, disse bem alto para a coordenadora “Mônica eu achava que vocês não sabiam beijar”; Sem dar tempo para ela responder, saí dali rapidamente.

No dia seguinte, às sete horas da manhã lá estava eu, sem o Arthur e com um expediente que redigi, retirando o Arthur daquela escola, me eximindo da responsabilidade do ato e responsabilizando a escola pelo mesmo, uma vez que tratavam os alunos com diferença e discriminação. Ameacei denunciar a escola caso eles, Coordenadora e Diretor, não assinassem o meu documento para que eu me resguardar na minha condição de responsável pelo filho menor de idade e para que a escola aprendesse a tratar todos da mesma forma (ainda tenho esse documento assinado por eles).

Aos sete anos, participou de uma seleção no CEPAE/UFG (Centro de Ensino e Pesquisa Aplicados à Educação da Universidade Federal de Goiás), e foi sorteado para cursar o primeiro aninho da primeira fase do ensino fundamental. Colégio conceituado e com vagas disputadas e ainda, considerado de referência em Goiânia. Colégio por ter seu quadro de professores composto por profissionais pós-graduados e por seu caráter de desenvolver a pesquisa e estágios com acadêmicos das várias áreas e cursos da UFG.

Trabalha com esses acadêmicos pesquisas variadas o que equivale dizer que trabalha, também, com as temáticas sobre inclusão.

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No ano de sua entrada no CEPAE/UFG, mais uma vez em decorrência do comportamento afoito e muito voltado ao lúdico, o processo teve que ser abortado. Arthur driblava todos com suas peraltices. Se escondia naquele imenso espaço. Fugia correndo para o prédio abaixo onde funcionavam as séries mais avançada e onde estudava o seu irmão, escapava para a biblioteca no outro prédio em busca de gibis, tentava alcançar a rua e fazia outras peraltices.

Em reunião da Coordenação da Escola com os pais e, posteriormente, levada a plenário da câmara interna de decisões, ficou acordado que em função das circunstâncias e do fato de o colégio àquela época não ter professor de apoio ou mediador para acompanhamento individual, a permanência do aluno com tais características naquele quadro representava grande desafio para o qual a escola não estava ainda preparada, inclusive à integridade física do aluno.

Ficou decidido que a escola teria um tempo para buscar os recursos necessários ao atendimento do caso e que o Arthur, numa situação especial e parecida com trancamento de matrícula, poderia retornar a escola depois. Nesse ínterim, escola e pais mantinham uma comunicação constante para anunciarem as novidades trabalhadas e possibilidades do retorno.

No início do próximo ano retornamos ao CEPAE/UFG. E, como acertar na ainda não desbravada “Holanda”, para a qual nunca estamos totalmente preparados é sempre mais difícil, não foi “canja de galinha” para nenhum dos lados.

Diferente das escolas estaduais ou municipais ou em função de suas características institucionais de funcionamento como escola/laboratório de pesquisa da Universidade Federal, o CEPAE não recebia verba governamental no orçamento da Universidade Federal destinado à contratação de professores de apoio. Travamos uma luta acirrada com o apoio dos professores e dos órgãos superiores da universidade até que, meses depois, conseguimos o remanejamento de servidores da área de educação que estavam fora de suas funções e o encaminhamento de alguns alunos estagiários da licenciatura para atuarem com professores de apoio.

Nosso exemplo serviu para que outros colégios no país ligados a outras universidades federais, também, empunhar a mesma bandeira de luta e reivindicações.

Arthur continuava peralta, mais engajado no processo, apesar de não ter aprendido ler e escrever. Aprendia coisas novas a cada dia, tornou-se um pouco mais falante e era bem sociável, adorava os passeios da com a turma e as aulas ao ar livre. Gostava de ir para a escola e de brincar no parquinho. Seus coleguinhas de sala, aprenderam tratá-lo com muito carinho e se comportavam como verdadeiros ajudantes, participantes ativos daquele processo, eles pareciam responsáveis em dispensar uma cota de bom acolhimento ao Arthur em sala de aula e até durante o recreio. As escapadelas às vezes aconteciam, mas, já não eram tão perigosas e todo o colégio o conhecia àquela altura dos acontecimentos. Seus maiores interesses eram em desenhos e gibis.

Certa vez, no recreio, Arthur foi até a cerca que beirava a mata, encontrou uma cobra morta e a pegou. Saiu correndo e rindo com a cobra pelo pátio e a jogou numa professora de outra turma que passava por ali...ufa! A professora quase teve um “treco” e o Arthur foi aplaudido por todos os colegas que presenciaram a cena. Quando fomos buscá-lo naquele dia, ele estava no centro de um aglomerado de alunos de várias idades que o saudavam e diziam: “Arthur , você é o nosso héroi”.

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O tempo foi passando. Técnicas e metodologias especiais eram pesquisadas e aplicadas pelos professores para o seu aprendizado. Arthur aprendeu muito sobre convivência social na escola e isso era considerado por todos nós como uma grande vitória. Alfabetização era uma meta, mas, não primordial, considerando todos os fatores envolvidos em sua história. Sempre avaliamos o seu desenvolvimento global para decidir se no ano seguinte o melhor para ele seria acompanhar a sua turma ou ficar retido na série para apreender os conteúdos ainda não assimilados. Assim, ele continuou seus estudos no CEPAE, consideravelmente bem até o ano de dois mil e dezesseis, quando, à partir do segundo semestre começou a apresentar comportamentos diferentes em casa e na escola.

Às vezes ele parecia apático e distante, não sorria, não gostava mais das brincadeiras, não tinha interesse pela escola e se sentia muito incomodado com as aulas mais barulhentas, como as de música e de educação física. Foi, rapidamente, perdendo o interesse pela fala e pelos passeios. Passou a não gostar de sair de casa e abandonou os bons hábitos à mesa durante as refeições.

Não entendemos o que estava acontecendo. O levamos para tratamentos com psiquiatras e reforçamos as terapias com a psicóloga que passou a fazer uma “ponte” com a escola para entender o que acontecia. Apesar, da grande cooperação e receptividade da escola nunca tivemos a uma conclusão definitiva do problema.

Chegamos a um ponto que não era possível levá-lo a nenhum lugar. Às vezes conseguíamos colocá-lo dentro do carro, mas, na maioria das vezes ele não descia. Oferecia uma resistência física total, com endurecimento da musculatura, o que impossibilitava a sua remoção do lugar onde estava. Seu estado geral de saúde passou à crítico e ele não tinha condições de voltar para a escola em dois mil e dezessete. Muitas vezes tentamos, mas não fomos bem-sucedidos. Novamente, me reuni com a equipe escolar e ficou acertado a manutenção da vaga do Arthur, condicionada à situação de envios periódicos de relatórios médicos, tentativas constantes de acesso à escola e retorno assim que possível. Os mesmos procedimentos foram aplicados, sucessivamente, por mais de dois anos e com a mesma resposta por parte do Arthur.

Quando, após confirmado o diagnóstico de nosso bebê, compreendemos que aterrissamos em um território desconhecido chamado “Síndrome de Down”, nossa tentativa original, depois de traçarmos um novo caminho a seguir, é fazer com que a nossa criança seja a mais funcional possível. Para isso um dos melhores caminhos é, sem dúvida, a escola. Acreditamos que a escola é importante para o sucesso e garantia de direitos sociais equivalentes. Por isso também, era muito difícil conviver com a situação na qual o meu filho se encontrava. Eu também tive que fazer alguns tratamentos de saúde e solicitei minha aposentadoria antes do tempo que desejava para acompanhá-lo mais de perto. Até hoje, não sabemos ao certo o que aconteceu. Arthur, na adolescência, se recolheu como uma ostra em um mundo que, de repente, parecia ser só dele ou talvez de ninguém.

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Alcançá-lo com a nossa vontade tornou-se cada vez mais difícil, mesmo com minha dedicação ainda mais próxima e, então, passamos quase três anos sem conseguir levá-lo de volta à escola e a outros convívios sociais. Foram tempos muitos difíceis onde percebemos que éramos incapazes de fazê-lo avançar para um objetivo chamado “inclusão” e que, talvez fosse um objetivo apenas nosso e nem um pouco dele.

Com o passar dos meses ele “melhorou” um pouco e parecia menos resistente. No final do ano letivo de dois mil e dezenove, após vários tratamentos e tentativas, conseguimos a vitória de seu retorno à escola por um curto tempo. Para a difícil de tarefa de acompanhá-lo nesse processo de readaptação e aprendizado, o colégio designou duas mediadoras para acompanhá-lo: cada uma em diferentes dias da semana; uma do Curso de Libras e a outra do Curso de Geografia/UFG. Ambas abraçaram o caso com visível amor, dedicação e profissionalismo que eram perceptíveis no dia a dia. A mediadora do Curso de Libras, mesmo em sua tenra idade mostrou muita maturidade didática e psicológica na tentativa de ajudar o Arthur. Com ela, aprendi buscar ainda mais coragem e resistência para labutar a dura labuta. A mediadora do Curso de Geografia, por sua vez, foi para mim um exemplo incansável de fé na busca de nossos objetivos com Arthur. Muitas vezes, eu me senti compelida a reavaliar os meus conceitos à respeito de outras pessoas, frente à sensibilidade do seu coração de mãe, pensando e agindo a favor do meu filho. Mas, nem tudo é como e quando queremos. Arthur não quis continuar na escola. Não vencemos, do nosso ponto de vista aquela batalha. E no final do ano aquelas duas dedicadas alunas não tiveram extensos e positivos relatórios a entregar sobre os seus encontros com meu filho. Entretanto, não foi culpa de ninguém.

Arthur continua resistente a muitas de nossas solicitações, mas, está sempre tranquilo e feliz, diferente do início de seu processo de reclusão, quando apresentava um aspecto doentio e distante.

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Hoje, questiono muito até que ponto é necessário fazê-los avançar com a intenção de equipará-los para a demanda social. Pois, nenhuma pessoa é igual a outra e também entre as pessoas com síndrome de Down existem diferenças marcantes. Não creio que podemos generalizar ou aprender algo com pessoas ou profissionais que, tratando da temática, diga algo do tipo “no universo da Síndrome de Down tal coisa é assim”. Para mim, não existe “universo caracterizado na síndrome de Down”; pois, também na SD devemos considerar todas as especificidades apresentadas. Acredito que para avaliar qualquer aspecto da síndrome de Down, devemos como em quaisquer outros assuntos ou estudos, levarmos em consideração individualidades como, contexto socioeconômico e saúde física e mental dos envolvidos para não incorrermos em erros graves e, sem querer, contribuirmos para uma segregação ainda mais sentida pelas emoções. Pois, na medida certa, todos nós precisamos nos colocar no mundo como realmente somos, respeitando a nossa essência original.

Por fim, gostaria de ressaltar que a Asdown - Associação Síndrome de Down/Goiás, sediada em Goiânia, tem papel social relevante no acolhimento e ajuda para as famílias das pessoas com síndrome de Down; na perspectiva de que essas famílias, a partir do convívio com seus pares aprendam coisas e participem de situações pertinentes ao cotidiano da Síndrome de Down. Muitas vezes, quando nossos filhos ainda são bebezinhos e entramos pela primeira vez na Asdown, nos assustamos um pouco. Pois, no fundo, todas nós, mães de filhos especiais, pensamos que o nosso(a) filho(a) é diferente dos demais para melhor e temos dificuldade no confronto com semelhantes. Mas, aos poucos entendemos a importância do convívio entre crianças, adolescentes e todas as pessoas com síndrome de Down. Todos nós temos necessidade nos identificarmos em determinado contexto ou história. E, no caso da síndrome de Down, se a convivência acontecer apenas entre os ditos “normais”, corre-se o risco da não aceitação total entre eles. Principalmente porque, na adolescência quando o “modismo da inclusão” e a “fantasia do diferente” são substituídas na vida dos não SD pelas festas, namoros e concorrências, esses já não têm tempo ou compatibilidade para aqueles que não estão no mesmo “barco”.

Cabe destacar, também, a importância da participação de todos na Asdown/GO, para que tenhamos mais força e representatividade na luta sociopolítica e cultural em defesa de todos os nossos direitos como cidadãos e cidadãs.