História de pessoas com Síndrome de Down A inclusão escolar

Capítulo 2 - História da Valentina

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Esta história começa muito antes de nascer a menina Valentina, a inspiradora deste relato.

Eu sempre quis muito ter filhos e então quando eu lia histórias em quadrinhos – o que eu fazia sempre, porque gostava muito e porque meus pais eram grandes incentivadores da leitura - eu separava os gibis das histórias que eu tinha achado mais legais, mais geniais, mais engraçadas, mais hilárias e guardava nas minhas caixinhas de coisinhas, sempre com fofas dedicatórias aos meus futuros filhos. E por que isto ilustra logo os primeiros parágrafos dos meus escritos sobre a escolarização da minha filha que nasceu com síndrome de Down?

Porque eu própria aprendi a ler a escrever as primeiras palavras com a ajuda da minha mãe e dos gibis de histórias em quadrinhos. Então eu cultivava aquilo, simplesmente porque as minhas memórias afetivas me faziam ter uma certeza inconsciente, inquestionável, que meus filhos iriam fazer o mesmo. Iriam pelo mesmo trajeto de interesse pelas letras e palavras e coisas próprias da escola e do mundo das leituras. Vejamos o desenrolar disto, então.

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A Valentina tinha quase 2 anos de idade, quando foi pela primeira vez para a escola. Era um projeto educativo muito lindo, planejado com muito cuidado e conduzido, de forma muito carinhosa, por duas irmãs pedagogas e se chamava Escola de Educação Infantil Vinicius de Moraes, na cidade de Rio Verde (distante 220 km de Goiânia), onde eu vivia na época.

Esta escola, da rede privada, estava no segundo ano de atividades (em 1998) e existe ainda hoje, conduzida pelas mesmas proprietárias, que eram as coordenadoras pedagógicas na época. Eu tinha feito uma grande busca, a fim de conhecer as instituições disponíveis e viáveis, quando um colega da faculdade me contou que as irmãs dele haviam aberto esta escolinha.

Quando elas me apresentaram o que eu considerei um projeto escolar muito condizente com os meus próprios valores, eu me senti confiante em matricular a Valentina. E posso afirmar que foram experiências muito positivas. Por exemplo, foi lá que vivemos, pela primeira vez, o tão especial e potencialmente difícil momento para mães e filhos: a separação pelo primeiro “dia de aula”. Foi uma experiência bem tranquila, muito bem orientada pelas profissionais e que não me traz nenhum pesar ao me lembrar, aliás muito pelo contrário. Havia o sistema de agenda e os registros eram feitos diariamente. O diálogo era facilitado e amável. A localização da escola era de aproximadamente 4 quadras do lugar onde eu comecei a trabalhar e a rotina era bastante condizente com a de uma cidade do interior, onde a mãe deixa a criança na creche, vai para o trabalho e ao sair, pega a criança e vai para casa, a pé.

E no nosso caso, sozinhas. Pois é preciso dizer que nestas épocas, de início da Valentina na escolinha, os acontecimentos recentes das nossas vidas, infelizmente, não vinham sendo muito tranquilos. O pai da minha filha e eu havíamos acabado de nos separar, depois de 10 anos juntos, entre namoro e vida em comum.

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Eu era praticamente uma recém formada, no curso de Zootecnia – havia colado grau 2 anos antes - alguns dias após o nascimento da Valentina e mesmo tendo tido, durante a gravidez, um sonho que ela teria Síndrome de Down e, em função disso, ter ido buscar livros e informações mais específicas a respeito, eu estava às voltas com o imenso mundo novo que se descortinava.

Uma menininha linda, muito dorminhoca e boazinha, mesmo que muito doentinha, pois apresentou, além da baixa imunidade e outros aspectos consequentes da síndrome, uma cardiopatia considerada severa: uma má formação no coração, chamada CIA - comunicação inter-atrial - de aproximadamente 2 cm, que causava um aporte sanguíneo desordenado para o pulmão direito e fazia a caixa torácica se dilatar e ela ter comprometimentos respiratórios vários, pneumonias de repetição, bronquite, etc., detectados por volta dos 2 meses de vida, mas mesmo com a prescrição de correção, optamos por não fazer a cirurgia devido ao alto risco.

Tudo isso inspirava constantes e delicados cuidados e ao longo da infância (e posso dizer que da vida toda) da Valentina, as questões de saúde interferiram grandemente no aspecto escolar, como é natural de ser com qualquer pessoa que apresente enfermidades.

Contudo as necessidades me fizeram ter de colocá-la na escola em torno dos 2 anos de idade. Era por meio período do dia apenas, mas era um tempo em que eu podia trabalhar e auferir alguma renda.

Os registros mais importantes nos relatos deste período, que foi curto, um semestre apenas, se referem mais à socialização e pequenas noções de autonomia em meio à ludicidade própria das propostas educativas desta fase, a educação infantil. Relatos estes que além de sempre atestarem boas respostas por parte da Valentina, falavam do especial interesse dela em passar boa parte do tempo escolar às voltas com um tracajá de médio porte e seu laguinho artificial feito de pedras, que havia no quintal da escola... Ela sempre gostou imensamente de animais de todas as características.

A saída da pequena Escola Vinícius de Moraes se deu porque decidi me mudar para Goiânia, cidade para onde havia se mudado minha mãe e onde residiam também meu irmão e minha irmã, seu esposo e meu sobrinho.

O ano era 1999, a Valentina estava, então, com 3 anos e logo nasceu meu filho Pedro, fruto do meu novo relacionamento. Houve uma curta experiência em uma escola neste ano, mas que não se mostrou muito positiva, ou melhor, quase negativa mesmo. Era uma escola chamada Cantinho para sonhar, era bem pequena, mas este é um aspecto que eu aprendi, ao longo do tempo e com o suceder das experiências, a reconhecer como benéfico para os processos de ensino-aprendizagem, e já naquela época eu apreciava isso intuitivamente.

A permanência da Valentina foi de poucos meses, algo além do primeiro semestre. Nesta época aconteceram alguns fatos, naturais da primeira infância, como a fase da ‘mordida’, em que a criança experimenta a socialização de várias maneiras inclusive esta, via oral. E ocorreu que, após a minha filha ter passado por este processo dos coleguinhas, chegando em casa com algumas marcas de mordidas por alguns meses, quando ela, digamos assim, reagiu a isto ou despertou para o processo, meses mais tarde, como é natural acontecer com as crianças com Down, que são mais tardias no desenvolvimento geral, isto foi visto como problema pelas educadoras e pelos pais da comunidade escolar.

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Foram feitas algumas tentativas de explicação e diálogo da minha parte, com argumentação com bases mais científicas. Mas, infelizmente, percebi, além da resistência quanto a isso, a preferência por aspectos religiosos, visto que a proprietária e todas as professoras eram evangélicas, que a relação comercial entre escola-família gera, com este pano de fundo do capitalismo formatando o paradigma principal de lucro, uma propensão das instituições a preferirem crianças/clientes dentro de um padrão de ‘normalidade’.

E foi o que aconteceu. As crianças que não tinham Down e que eram a maioria, quando morderam os coleguinhas foram vistas no máximo como ‘custosinhas’ ou “uma bênção”, como diziam as professoras, ironicamente. Mas há uma triste tendência, mesmo no meio pedagógico onde infere-se que os profissionais tenham estudado a respeito do desenvolvimento fisio-psico-emocional da criança, a rotular, taxar as crianças com diferenças de “agressivas”, “difíceis”... E aí, então, exclusão é uma consequência. Esta escola fechou poucos anos depois.

Após esta experiência, encontramos outra escola de educação infantil e nesta fomos muito felizes, fizemos bons amigos com quem ainda hoje mantemos contato e afeto. A Escola Baby Hotel continua em funcionamento, no Setor Aeroporto. Esta escola tinha um berçário e turmas de educação infantil. E tinha uma turma de educação especial. Uma turma multisseriada. Eram em torno de 12 estudantes nesta turma, com diferenciadas necessidades pedagógicas específicas. Havia a Valentina, a Camila e a Mariana com Down, depois o Bernardo também. Havia o Diógenes e a irmã dele cujo nome me esqueci, que tinham comprometimentos motores e cognitivos de origem que eu não sei precisar, a Marina que eu nunca tive muita certeza, mas desconfiava que o problema dela era a mãe que a chamava de burra, pois a Marina repetia isso sobre si mesma o tempo todo, mas no trato com todos ela não apresentava dificuldades.

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Ela, sempre muito meiga, saiu da escola um tempo depois. Havia a Thaís, descendente de japoneses que apresentava, no começo, sintomas de esquizofrenia, mas depois melhorou bastante. Também o Thiago, que tinha sérios comprometimentos motores no corpo todo, se locomovia com a cadeira de rodas toda adaptada, não falava, mas parecia ter a compreensão cognitiva preservada. Também o Sérgio, que tinha comprometimentos cognitivos, era um garoto já maior e eu me lembro que a mãe dele o levava para aplicações de botox na face com a finalidade de atenuar os problemas que ele apresentava por não deglutir a saliva e ela não queria que ele ficasse babando. E tinha o José, um garotinho de grandes olhos negros, que parecia estar dentro do espectro autista. Ele ficava sentadinho só olhando, nunca o vi falar, mas sabíamos que muito raramente ele interagia falando. A Valentina, por um tempo, dizia que iria se casar com o José...

Bem, nesta escola aprendemos muito. Era uma escola que tinha know how na prática da educação inclusiva. A professora, Sandra Prestia, era uma profissional estudiosa e de imensa competência e generosidade, conhecia as características das crianças, as habilidades e dificuldades. Havia um planejamento educacional individual.

A diretora Silvane, apoiava imensamente a todas as famílias. Sentíamo-nos entre amigos e o clima era por todo o tempo em que estivemos lá - 5 anos - de alegria, otimismo e estímulos de vida e estímulos pedagógicos. Com o tempo caminhamos para a pré-alfabetização. Lembro-me de todos os esforços para isto. A professora percebeu que os lápis próprios para desenho, daqueles HB ou 6B, com miolo de grafite mais macio, eram melhores para o traçado da escrita e isto foi algo que ajudou muito que a Valentina se sentisse mais estimulada a pegar o lápis, segurar, fazer os riscos e traçados e desenhos. E isto devido à hipotonia muscular, característica da síndrome de Down, que acarreta a dificuldade motora e menor destreza para os movimentos mais delicados como os que a escrita requer. A coordenação motora fina.

Fato importante ressaltar nestes anos, era que a Valentina era muito recorrentemente afetada por problemas de saúde. Ainda consequências da cardiopatia, várias afecções respiratórias, episódios de sinusite, alergias respiratórias, reações a medicações, especialmente aos antibióticos. A primeira infância foi marcada por ocorrências hospitalares frequentes, mesmo assim ela sempre gostava da escola, de ir à escola, ia no transporte escolar, tranquilamente, e sempre estudava no período matutino. Por volta dos 6 anos, fizemos um tratamento ortomolecular, intensificamos um tratamento com a homeopatia e também iniciei o uso constante de um própolis superconcentrado em forma de comprimidos prensados com aveia, que eu comprava de uma empresa fabricante dos Estados Unidos e isso melhorou consideravelmente a imunidade da Valentina e ela passou a perder menos dias de escola por motivos de saúde.

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E assim seguíamos, conversávamos muito sobre a questão da inclusão. Porque ali a realidade, até então, vinha sendo a de uma turma multisseriada dentro de uma escola com outras turmas de educação infantil, e sabíamos que o caminho natural seria seguir a lei. Em 2005, a efetivação da inclusão se deu e essa turma foi desmanchada. Os estudantes mais velhos foram encaminhados para outras escolas, as crianças com idades até 8 anos, como era o caso da Valentina, foram distribuídas nas outras turmas de pré-alfabetização. A professora, Sandra Prestia, passou a ser coordenadora pedagógica e a professora, Sandra Cristina, igualmente estudiosa e dedicada, ficou como titular da turma para onde a Valentina foi remanejada.

Por esta época, pudemos perceber, pela primeira vez, como a delicada questão da ligação afetiva é determinante para as pessoas com síndrome de Down. Ou, pelo menos, foi assim para a Valentina e com muitas pessoas, com e sem síndrome, que pude observar de perto ao longo desses anos. O elo afetivo entre eles e as pessoas que tomam parte direta no processo de ensino, no caso a professora, o professor, precisa existir, é um estágio anterior necessário para que o processo de aprendizagem se dê efetivamente.

Então fomos percebemos, ao longo do ano de 2005, que a Valentina ainda continuava se reportando à Sandra Prestia, mesmo interagindo com a nova professora regente. Esse processo de transferência de referência demandou esse tempo e percebemos um estacionamento no desenvolvimento dela em relação à alfabetização e ao letramento. E como em 2006, eu passei em um concurso para professora numa faculdade no interior de Goiás, na cidade de Mineiros, nós tivemos de nos mudar para lá. Residimos nesta cidade por 2 anos, o tempo do contrato. E depois eu passei no processo seletivo para o mestrado na UFG, no Campus da cidade de Jataí e nos mudamos novamente e aí residimos por mais 2 anos, o tempo do mestrado. E nesses 4 anos, a Valentina passou por 4 escolas.

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Isso representou, a meu ver, muitas perdas pedagógicas para ela, justamente devido a essa característica de não interagir muito facilmente, após mudanças e demandar mais tempo para conseguir criar vínculos afetivos. E este fato, junto a outros tantos, claro, acarretaram uma maior lentidão nos processos de aprendizagem escolar da Valentina, infelizmente.

Na primeira escola em Mineiros, Colégio Ágape, foram longas as conversas sobre todo o histórico de vida familiar e escolar da Valentina. Eles realmente não tinham experiência com educação inclusiva. Mas tinham a escuta.

Muitas ocorrências os fizeram me chamar na escola várias vezes. A Valentina não ficava na sala de aula. Ela foi matriculada numa turma de 1º ano. E mesmo gostando de alguns colegas e da professora, ela ficava pouco tempo na sala e a escola era de porte médio, não me lembro exatamente, mas eu diria uns 250 alunos. Eu acredito que o processo ali se dava por haver inexperiência por parte deles e a falta de vínculo por parte da Valentina e nesse meio tempo ela dispersava. Não fazia má criação, mas não obedecia as regras. Não se sentia pertencente.

Durante a semana, uma média de 3 vezes, por meses seguidos, eles me ligavam para eu comparecer à escola. Ao fim do ano, o balanço me mostrou que não seria possível conciliar esta situação com o trabalho, meu rendimento não seria suficiente. Às vezes, eu estava no campo, 20 km de distância, porque a área de atuação era essencialmente agrária. E sendo somente eu a responsável por responder por ela, morávamos somente nós 3 – eu e meus dois filhos – por várias vezes eu atendi ao telefone sabendo que eu não poderia ir até a escola.

Neste ponto é importante dizer que esta é uma realidade que mães passam. Milhares de mulheres lidam com o desfavorecimento e desvalorização no mercado de trabalho por serem as responsáveis por atender às demandas dos assuntos relacionados aos filhos, na escola. Pois as minhas constantes necessidades de sair do trabalho para comparecer à escola da minha filha quase acarretaram problemas para mim, no trabalho. E não estou aqui fazendo um depoimento de deslegitimação destas demandas. Apenas estou deixando registrado este fato. E acrescentando que quando este filho ou filha apresenta algum aspecto que precise de mais atenção, se a mãe não atende à escola a contento, pode ter como certo que será vista como relapsa, desinteressada, desnaturada até! E por mais que até material didático, informativo, literatura pertinente ao tema da educação inclusiva, que eu já tinha adquirido neste tempo, eu tenha levado a esta escola e emprestado a um dos coordenadores pedagógicos (e que diga-se de passagem, não foram devolvidos...), mesmo assim, em algum momento a relação não ficou boa. Mesmo tendo havido bons eventos até boas experiências e amizades que ainda perdurem, a Valentina ficou somente um ano.

E procurei outra escola menor. Mais artesanal, digamos assim. Nesta escola, chamada Escola Evolução, tivemos vivências melhores. O espaço era mais aconchegante. Tinha mais área verde. E novamente constato que o espaço físico é um fator determinante para a eficiência do processo pedagógico. Foi mais um ano na tentativa de alfabetização e letramento, estando a Valentina formalmente matriculada na mesma série do ano anterior. Os relatos nesta escola davam conta de uma interação social melhor, mas sem muitos avanços pedagógicos. Mas percebemos uma didática mais apropriada para a inclusão na prática dos profissionais desta escola, mesmo sendo igualmente inexperientes.

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Neste ano de 2007, por alguns meses, a Valentina frequentou as atividades de apoio pedagógico na APAE de Mineiros. Algo que seria um pré-atendimento educacional especializado – AEE (que foi implementado pelo MEC em 2008).

No começo de 2008, estávamos residindo em Jataí, eu estava iniciando o mestrado em Agronomia na UFG e nesta cidade a procura pela melhor escola foi inicialmente frustrante. Conversei em várias instituições e optei pelo Educandário Pequeno Príncipe de lá.

Muito em consideração pelo que foi dito pela diretora sobre outro aluno com Síndrome de Down que estudava nesta escola na época, já nos anos do ensino médio, o Kalil Assis Tavares. Foi o primeiro ano de mudança na denominação do ensino fundamental e que a pré-alfabetização foi anexada ao ensino fundamental, passando a ser o 1º ano. E depois de muito se conversar sobre qual turma seria melhor para ela frequentar, correlacionando-se idade e conhecimentos, a Valentina foi matriculada no 2º ano, com 10 anos.

Novamente inadaptação. Mas desta vez as reações da Valentina já foram mais veementes. Naturalmente, à medida em que a pessoa cresce e amadurece tudo vai se tornando menos maleável. Ela se agitava muito nesta escola, e não houve um planejamento individual para ela. Era basicamente assim: “ela precisa se adaptar, obedecer, interagir para a professora poder alfabetizá-la”.

E como ela estava “demorando” para interagir, e, na verdade, ela estava ficando cada vez mais calada, sem responder verbalmente mesmo, foi “sugerido” (forçado) pela coordenação da escola, fazermos avaliações neurológicas, psicológicas, fonoaudiológicas etc. Os laudos indicavam maiores observações para os sinais de autismo, recomendação de psicoterapia, exercícios fonoaudiológicos e uso de medicamento à base no cloridrato de metilfenidato para o déficit de atenção dela. Assim foi feito. Iniciamos sessões de psicoterapia com uma psicóloga que ia até a escola, até a nossa casa e a Valentina também ia ao consultório, e também eu e também o irmão, Pedro. Passamos a ministrar a Ritalina na dosagem prescrita pela médica neuropediatra. Também sessões de fonoaudiologia.

Não houve efeito significativo e ao final de 6 meses saímos da escola, com as relações desgastadas pela repetição daquela mesma postura por parte da instituição já conhecida: empregar recursos sempre os mesmos e deixar claro que ou a criança corresponde a eles ou é rotulada como difícil. E a família, no caso eu, que era a única pessoa ali presente, no dia a dia, sempre leva a culpa, declarada ou velada.

Outro fato importante a ser pontuado é que, embora Jataí seja a cidade onde residia o pai da Valentina, não houve neste período em que moramos na cidade, interesse dele em estar presente nestas e nem outras questões, como foi por toda a vida. Mesmo tendo sido chamado a participar das avaliações feitas nesta época, não houve continuidade para além das primeiras e o tratamento psicológico, que era o que ele poderia e deveria, segundo a recomendação, seguir acompanhando, não foi.

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E sempre foi perceptível que a Valentina se ressentia das ausências do pai, da visitação irregular e da falta de compreensão característica dele. Contudo a nossa postura, tanto minha quanto dela, sempre foi a de manter a via da comunicação aberta e a esperança de que com o tempo, o amadurecimento vá acontecendo, pois independente das opções alheias, escolhemos seguir acreditando nos efeitos dos estímulos da inteligência emocional. E além de tudo, a figura do pai é indiscutivelmente importante.

Bem, passemos então para o próximo projeto educativo que recebeu a Valentina: a Escola Talento, que usava o método COC de ensino. Também uma escola pequena e lá a Valentina passou por duas professoras que primavam pelo afeto sincero. Isto fez diferença e ela foi muito feliz. Acredito mesmo que se tivéssemos continuado lá, teríamos alcançado avanços pedagógicos, mas infelizmente ao final de um ano e tive de optar pela mudança, retorno a Goiânia. Além de ter terminado o mestrado, motivo maior de se fixar residência em Jataí, eu sofri um acidente automobilístico gravíssimo e precisei estar perto da família para a logística de viabilização de cuidados e enfim, foram 3 meses para reabilitação e como eu pretendia seguir estudando e o próximo passo seria um doutorado, isto não poderia ser tentado no Campus da UFG em Jataí, pois lá o programa de pós tinha apenas mestrado.

Enfim, nos mudamos para Goiânia no começo de 2010 e foi um período difícil para a Valentina. Vieram vários anos de dificuldades imensas. Tanto de saúde emocional e física quanto, consequentemente, pedagógicas.

Ela começou a desenvolver uns transtornos alimentares, bulimia/anorexia. Ela se ressentiu com a mudança, com a perda dos colegas e amigos da última escola onde estava estudando, de não estar mais morando numa cidade pequena onde ela tinha mais liberdade e autonomia, até mesmo para caminhar na rua e outros lugares.

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Mesmo que não muito presente, o pai estava próximo e havia as primas por parte da família dele, de quem ela gostava muito. E também o cãozinho que não se adaptou em Goiânia e com pouco mais de uns dois meses após a mudança, ele sumiu. Tudo isso gerou um estado de ânimo que simplesmente parece ter tirado todo o interesse dela pela escola. Matriculei-a na Escola Estadual Gracinda de Lourdes, antiga escola com histórico de atendimento satisfatório em educação inclusiva, mas as profissionais que havia, digamos assim, feito esta fama já não estavam mais atuando lá. A professora de apoio demorou 1 mês para ser nomeada e começar a atuar no acompanhamento da Valentina. Quando ela chegou na escola, várias páginas dos cadernos dela voltavam rabiscadas, rasgadas... ou seja, ela ficava sem acompanhamento na sala de aula e estes eram alguns dos resultados. De fato, a escola contava com sala de apoio pedagógico especializado, eu cheguei a passar algum tempo lá, explorando, conhecendo os materiais que eles dispunham.

Por esta época, comecei a fazer uma especialização em educação inclusiva e me interessar por estudar Pedagogia. Mas o tempo de permanência nesta escola não completou um ano, antes disso a inadaptação fez com que saíssemos. O último dia foi o dia em que a Valentina fugiu da escola.

Em um momento de transição entre um prédio e outro, nas imediações em que a escola se situa, numa viela sem saída, no Centro, próximo à Avenida Araguaia, (havia uma reforma na estrutura física da escola) e isso fazia com que precisassem levar as crianças para outro prédio ao lado, nos intervalos para recreio.

Enfim, quando a coordenadora me sugeriu que eu desse uma “boa surra” na Valentina e fiquei me questionando sobre a sanidade emocional que o sistema escolar e social vigente na nossa sociedade está infligindo às pessoas.

Tentamos o Instituto Educacional Emmanuel, uma escola mantida por uma instituição que propaga valores humanos cristãos, mas lá nos foi dito categoricamente para procurar outra escola onde houvesse pessoas que soubessem realmente atuar na educação inclusiva, porque eles não tinham.

Procurei a Escola Escrevivendo, mas lá todas as turmas já estavam com a porcentagem de “alunos de inclusão” completas. Foi o que uma coordenadora com cara de paisagem me disse. Tentei uma escola no Setor Sul, Sistema Educacional Interacionista, mas eles me disseram que a idade da minha filha não era compatível com a idade limite da turma dos mais velhos que eles tinham lá, que era de 5º ano.

Comecei a pesquisar sobre onde haveria uma escola em que os conteúdos estivessem sendo estudados através de projetos educativos que incluíssem as diferentes competências do estudante e respeitassem o seu tempo, suas características e cheguei à Escola da Ponte. Cheguei, foi apenas um modo de dizer... Na verdade fiquei conhecendo através de um livro do professor e escritor, Rubem Alves. A escola fica em Portugal, eu entrei em contato e descobri que havia se mudado para o Brasil, São Paulo, o professor idealizador do projeto Fazer a Ponte, que há 30 anos estava funcionando e proporcionando um processo ensino-aprendizagem mais eficiente, tranquilo e coerente a todos os envolvidos.

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Mas, aqui, a realidade que começava a ser vivida pela Valentina era a aversão pela escola. Uma verdadeira dicotomia entre amor e ódio. Ela tinha vontade de ir para a escola, íamos visitar escolas e ela sempre se empolgava e quando começavam as atividades ela não se adaptava.

Foi assim com a Escola Cantinho da Emília e com a Escola Estadual Presidente Dutra. Nesta última, ela tinha professora de apoio e os relatos davam conta de que ela até conseguia manter o interesse da Valentina por algum período, mas depois esta professora de apoio saiu por ter se aposentado e antes que a nova professora fosse nomeada, ela se especializou em passar o tempo sentada num canto da quadra esportiva e não falar novamente com ninguém, não responder a ninguém, não se alimentar e por fim, um dia ela urinou na roupa.

Eu passava horas conversando com a coordenação pedagógica e a diretora, que inclusive tinha um filho com Síndrome de Down e me repetia inúmeras vezes que o filho dela havia estudado lá na escola e se saído muito bem, embora não tivesse aprendido a ler e escrever fluentemente, e que ela não entendia o que acontecia com a Valentina.

Novamente minha filha se tornou mais um número nos levantamentos estatísticos da evasão escolar. E novamente tratamentos psicológicos, neurológicos, psiquiátricos, etc. Para terminar o ano, eu passei a levá-la para atividades em uma ONG de educação social através da arte. E também para um projeto esportivo para jovens com Síndrome de Down, fruto de uma parceria entre a ASDOWN GOIÁS e o Clube de Engenharia de Goiás, além de também frequentarmos o projeto AlfaDown da PUC.

Mas por esses anos, de 2011 a 2016, processos delicados de saúde se apresentaram e a Valentina teve de ser internada algumas vezes, emagreceu muito, depois engordou com o uso de antidepressivos e tudo foi muito inconstante nesta entrada na adolescência.

Em 2014, depois de muito conversar com a Albertina Bringel, uma profissional admirável, diretora do CIEM - Colégio Integrado de Educação Moderna, no Setor Jaó, decidi matriculá-la e lá ela ficou até o dia 19 de outubro. Nunca me esqueço. Depois de passarmos todos esses meses com a Valentina indo para a escola praticamente empurrada, todos os santos dias, quando chegamos no portão e fui me despedir, no meio da argumentação que já era prática diária, ela me disse “mãe, você não vê que esta escola não é minha, esta professora não é minha, estes colegas não são meus?” É uma luta inglória eu tentar explicar tudo o que senti. E mais ainda, não chega a uma pequena fração do tudo que é o que ela sentiu, e sente, em relação à escola, que é, então uma amostragem do que é a vida.

Decidi cursar Pedagogia e fazer uma escola para a minha filha. Ela escolheu o nome: Escola do Futuro. Os gibis guardados, adorados, revirados na minha caixinha de guardados foram revisitados.

Que a esperança e a utopia, aquelas das quais nos fala Eduardo Galeano, nos faça caminhar.