Acessibilidade e Inclusão no ensino superior Reflexões e ações em universidades brasileiras

O custo da oportunidade de acesso e permanência ao ensino superior quando se tem uma deficiência: o caso da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

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Autora:Márcia Denise Pletsch

Introdução

Nenhuma batalha pedagógica pode ser separada da batalha política e social.

Mario Alighiero Manacorda

Desde os anos noventa, têm sido ampliadas as políticas de inclusão educacional de pessoas com deficiências na Educação Básica e, mais recentemente, no Ensino Superior. De maneira geral, essas políticas seguem pressupostos internacionais que tomam como base o discurso em prol dos direitos educacionais e sociais dessa população. Sem dúvida, a partir da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), que visa assegurar a inclusão dos alunos públicos da Educação Especial desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, essas mudanças se acentuaram. As diretrizes sobre inclusão educacional contidas neste documento seguem os princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, de 2006, que foi incorporada pelo Brasil como Emenda Constitucional em 2009 pelo Decreto 6.949/ 2009 da Casa Civil. Tais princípios também foram incorporados na Lei Brasileira de Inclusão de 2015 (LBI) ou Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n.º 13.146, de 6 de julho de 2015), que entrou em vigor em janeiro de 2016.

Sobre o ensino superior, a LBI traz, em seu artigo 30, um conjunto de diretrizes em relação aos processos seletivos para ingresso e permanência nos cursos oferecidos pelas instituições de ensino superior e de educação profissional e tecnológica, públicas e privadas, como se pode ver no trecho coligido a seguir:

I - atendimento preferencial à pessoa com deficiência nas dependências das Instituições de Ensino Superior (IES) e nos serviços;

II - disponibilização de formulário de inscrição de exames com campos específicos para que o candidato com deficiência informe os recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva necessários para sua participação;

III - disponibilização de provas em formatos acessíveis para atendimento às necessidades específicas do candidato com deficiência;

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IV - disponibilização de recursos de acessibilidade e de tecnologia assistiva adequados, previamente solicitados e escolhidos pelo candidato com deficiência;

V - dilação de tempo, conforme demanda apresentada pelo candidato com deficiência, tanto na realização de exame para seleção quanto nas atividades acadêmicas, mediante prévia solicitação e comprovação da necessidade;

VI - adoção de critérios de avaliação das provas escritas, discursivas ou de redação que considerem a singularidade linguística da pessoa com deficiência, no domínio da modalidade escrita da língua portuguesa;

VII - tradução completa do edital e de suas retificações em Libras (BRASIL, 2015).

Outra iniciativa importante sobre o acesso das pessoas com deficiências ao Ensino Superior é a Lei nº 13.409, sancionada em 2017, de 28 de dezembro de 2016, que altera a Lei n.o 12.711, de 29 de agosto de 2012, para dispor sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnico de nível médio e superior das instituições federais de ensino. É a chamada lei de cotas para pessoas com deficiências (BRASIL, 2012, 2016).

Em nossa perspectiva, a política de educação inclusiva é polissêmica, mas temos defendido que a análise da mesma a partir dos princípios dos direitos humanos amplia sua compreensão e assegura aos sujeitos com deficiência o acesso à educação, participação das atividades e aprendizagem/desenvolvimento. Nesta perspectiva, a inclusão implica a combinação de três elementos: desenvolvimento dos sujeitos, pluralidade cognitiva e convivência com a diversidade cultural, numa escola/universidade com todos e para todos.

Tomando como pano de fundo as mudanças ocorridas em termos legais, objetivamos, neste capítulo, apresentar, mesmo que de forma sucinta, uma discussão sobre a proposta de educação inclusiva na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) a partir de políticas nacionais envolvendo a temática. Igualmente, pretendemos problematizar, a partir do relato por meio de entrevistas semiestruturadas de dois sujeitos com deficiência (os discentes Marcos e Paulo) matriculados em diferentes cursos de graduação, as condições sociais e de vida que impactam o acesso e permanência deles na Universidade. Também foram analisados documentos institucionais sobre o tema da inclusão no ensino superior. Em termos metodológicos, seguimos os pressupostos qualitativos para a coleta e análise dos dados.

Antes de dar continuidade é importante sinalizar que nos últimos 15 anos cresceu significativamente o ingresso de discentes público-alvo da Educação Especial no ensino superior nacional, sobretudo em decorrência da criação de novas instituições de ensino superior (IES) e da implantação de ações governamentais que estimulassem o acesso de minorias sociais, como o Programa Universidade para Todos (PROUNI), do Programa de Financiamento Estudantil (FIES). Tais inciativas repercutiram positivamente nas matrículas nesse nível de ensino, pois, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Nacionais Anísio Teixeira (INEP), tivemos um crescimento de 85,35% de matrículas entre os anos de 2004 a 2014 (MELO, 2015; MELO; MARTINS, 2016; PLETSCH; MELO, 2017; PLETSCH; LEITE, 2017; CABRAL, 2018).

Em termos específicos no que se refere a pessoas com deficiências, os dados mostram que o aumento foi expressivo, algo em torno de 520%, atingindo 33.377 matrículas. Todavia, esse crescimento ainda está longe do ideal. Em 2018, segundo o Censo da Educação Superior, do total de matrículas somente 0,52% (43.633 matrículas) é de pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação (BRASIL, 2018). Essas matrículas estão distribuídas conforme quadro a seguir.

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Quadro 1. Distribuição das matrículas do público da Educação Especial no Ensino Superior
Categoria Quantitativo de matriculas
Deficiência física 15.647
Baixa Visão 12.751
Deficiência auditiva 5.978
Deficiência intelectual 2.755
Cegueira 2.537
Surdez 2.235
Altas habilidades/superdotação 1.486
Deficiência múltipla 906
Autismo infantil 633
Síndrome de Asperger 489
Transtorno Degenerativo da Infância 235
Síndrome de Rett 182
Surdocegueira 132
Total 43.633

Fonte: Elaborado para fins deste capítulo a partir de dados do Inep (BRASIL, 2018).

Como podemos observar, ocorreu um avanço de 2017 para 2018. Os avanços também foram sinalizados nos indicadores analisados por Martins, Leite e Broglia (2015) e Pletsch e Leite (2017), a partir de dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Nacionais Anísio Teixeira (INEP). As autoras indicam que houve um crescimento de 85,35% de matrículas entre os anos de 2004 e 2014.

No entanto, em que pesem os avanços legais e o crescimento nas matrículas, a participação dessa população não atinge atualmente um por cento da participação no ensino superior ao montante de estudantes que se encontram nessa condição. Esperamos, contudo, que, a partir de 2017, com a Lei de Cotas de pessoas com deficiências no ensino superior, esses indicadores sejam ampliados e com isso as IES serão desafiadas a elaborar propostas para garantir o acesso, a permanência e a plena participação nas atividades de ensino, pesquisa e extensão desse grupo social.

O custo da oportunidade: o caso da inclusão de pessoas com deficiências na UFRRJ

A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) iniciou suas atividades como Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária (Esamv), criada em 20 de outubro de 1910 pelo Decreto 8.319, tornando-se Universidade em 1963 (UFRRJ, 2019). Atualmente, a estrutura da UFRRJ é multicampi, com cerca de 23 mil alunos de graduação nos seus mais de 50 cursos e 1.300 estudantes nos 24 Programas de Pós-Graduação.

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Recente pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e o Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assistência Estudantil (Fonaprace) mostrou que a maioria dos estudantes da UFRRJ (78%) tem renda familiar mensal per capita de até 1,5 salário mínimo, o que corresponde a R$ 1.431. Ainda de acordo com os dados, 32% dos estudantes participam ou participaram de programas de assistência estudantil, a maioria como beneficiário do auxílio-alimentação (16,2%) e do auxílio-moradia (14,9%). A pesquisa mostrou que a maioria dos estudantes é do sexo feminino com 63,9% enquanto que a média nacional é de 54,6%. Do total de alunos da UFRRJ, 54,7% se declaram não brancos. A maioria é formada por jovens, pois 63,3% têm até 24 anos de idade. Quanto à orientação sexual, 21,4% não se declaram heterossexuais (UFRRJ, 2019). No caso de discentes com alguma deficiência, em 2013, os registros da Instituição mostravam que havia um aluno. Desde as cotas tivemos o ingresso de 52 alunos da Educação Especial, subdivididos em 7 discentes com deficiência visual (baixa visão e cegueira), 2 com deficiência múltipla, 5 com deficiência intelectual, 33 com deficiência física, 5 com deficiência auditiva. Antes da Lei de cotas eram apenas 14 estudantes com deficiência na UFRRJ.

Em termos históricos, é importante sinalizar que a discussão da educação inclusiva especificamente dirigida para a população da Educação Especial na UFRRJ iniciou-se em 2009 quando a Universidade foi contemplada pelo edital Incluir do Ministério da Educação (MEC). Desde então, inúmeras discussões e ações têm sido tomadas para ampliar não apenas a discussão interna, mas para garantir o acesso e a permanência dos discentes com deficiências nas diferentes atividades acadêmicas. É importante sinalizar que somente em 2008 a UFRRJ realizou concurso público para contratar professores da área de Educação Especial.

Em 2009, foi apresentada ao Conselho Superior da Universidade uma proposta de deliberação para aprovar ações institucionais sobre a inclusão de pessoas com deficiências no ensino superior. A deliberação proposta foi aprovada somente em 12 de junho de 2012, contendo diretrizes pedagógicas, em especial, focando suporte aos estudantes para participarem das atividades curriculares previstas em seus cursos e denominou que o setor responsável palas ações seria Núcleo de Inclusão no Ensino Superior (NIES). Todas essas ações eram ainda pontuais e atendiam a exigências de editais específicos, não fazendo parte de uma política institucional mais ampla e articulada voltada para garantir direitos dessa população. Paralelamente, a UFRRJ já havia assumido cotas e ações afirmativas para outras minorias sociais, mas nunca havia contemplado o público com deficiência. É como se ele não existisse apesar de, aproximadamente, 24% da população brasileira, como mostram os dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A partir de 2013, foi instituída uma comissão sobre inclusão e acessibilidade e o Nies (como era chamado na época) ficou vinculado à Pró-Reitoria de Graduação. Essa comissão era composta por diferentes docentes e técnico-administrativos da UFRRJ. Esses profissionais reuniam-se pontualmente, uma vez que não havia em sua jornada de trabalho uma carga horária específica para as atividades na comissão.

Somente em 2019, foi regulamentada, por meio da Portaria 395 da Reitoria, na qual o Nies passa a ser chamado de Núcleo de Acessibilidade e Inclusão. Nesse documento, o NAI da UFRRJ passa a ter uma estrutura organizacional, com coordenação com carga horária de 16 horas semanais, uma comissão permanente com pelo menos cinco membros efetivos e uma comissão colaboradora. As suas atribuições são assim definidas:

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I - Acompanhar e avaliar o ingresso, o acesso, a permanência e a conclusão do público-alvo da Educação Especial que ingressa na UFRRJ pela Lei 13.409/2016 – altera a Lei n.º 12.711, de 29 de agosto de 2012, para dispor sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiências nos cursos técnico de nível médio e superior das instituições federais de ensino.

II - Levantar e acompanhar o status da estrutura da UFRRJ no que diz respeito a acessibilidade, propondo, sempre que necessário, modificações e ajustes.

III - Apoiar a oferta de capacitação para formação dos discentes e servidores da UFRRJ sobre o tema (UFRRJ, 2019).

Desde então, algumas ações têm sido estruturadas pela Coordenação do NAI, dentre as quais destacamos a organização de uma equipe de trabalho permanente, com secretaria executiva, um técnico administrativo e quatro bolsistas de residentes (duas de Pedagogia e duas de Psicologia) por meio de uma parceria com a Pró-Reitoria de Extensão a partir do Programa Bolsas de Residência em Iniciação Profissional na Área de Gestão Aplicada a Projetos Educacionais. Também aprovamos o edital de aquisição de equipamentos de acessibilidade e mantivemos o edital de auxílio/bolsa acessibilidade. Paralelamente, iniciamos, por meio da comissão de apoio, a estruturação da política de inclusão no ensino superior da UFRRJ, em discussão, focando temas como o acolhimento dos discentes, acessibilidade curricular e física, estágio obrigatório e não obrigatório, ações de comunicação e informação, entre outros, necessários para consolidar a proposta de educação inclusiva na universidade. Além desse debate, temos nos debruçado em apoiar pedagogicamente os estudantes a partir do levantamento de suas demandas individuais, assim com temos apoiado os colegiados de cursos que nos procuram para o apoio/suporte em provas e outras atividades acadêmicas por meio do programa de tutoria que foi implementado em 2018.

Para problematizar sobre os desafios e as perspectivas colocadas para a inclusão no ensino superior na UFRRJ, trazemos as falas dos discentes Marcos e Paulo (nomes fictícios). Ambos não nasceram com deficiências, mas se tornaram. São negros e moradores da periferia, vindos de escolas públicas. Marcos sofreu um acidente e Paulo foi alvejado após ser confundido com um traficante. Vejamos, em suas palavras:

Marcos

- Eu me acidentei no ano de 2010 trabalhando numa obra da construção civil aos 17 anos, tive um TCE (traumatismo crânio encefálico). Me tornei paraplégico do lado direito prejudicando a visão e a audição, assim como a marcha e mais a questão da fala... Fiquei 45 dias internado no Hospital sendo que desses 45 dias, 2 em coma induzido. Eu não me lembro muito do que aconteceu no dia do acidente, atualmente também não tenho capacidade de guardar memória recente, me perco.

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Então eu basicamente fiquei um tempo internado, foi muito difícil, duro para minha família, porque minha família vem de uma realidade em que os homens, cada vez mais jovens começam a produzir. Produção quando eu digo é ajudar a família financeiramente, e eu me via na posição em que eu era um peso financeiramente para minha família. Minha família é muito humilde e também não soube lidar de uma forma correta, eu também tive algumas outras perdas como sequela motora, cognitiva e sensorial. Também tive perdas relacionais nesse processo e isso me afetou muito.

[...] Esse acidente mexeu muito com minha vida. De modo a testar os meus limites. Ficar sem movimento durante um tempo, sem andar para poder ir e vir foi duro. Ingressei na fisioterapia de segunda a sexta-feira de uma universidade que fez todo um trabalho de reabilitação comigo. Esses profissionais são tão importantes quanto, os profissionais como neuros, ortopedistas. Os psicólogos e fisioterapeutas me fizeram reviver, então eu me animei a tentar estudar. Com muita dificuldade e com amor de outras pessoas que fui conhecendo ao longo do caminho, eu consegui entrar no pré-vestibular social chamada PVS, recebi todo o carinho possível, carinho este que nunca tinha recebido e comecei a estudar a contragosto da minha família. No finalzinho de 2012 eu já tinha feito ENEM. Passei com uma nota muito alta que me daria entrada na UFRRJ ou na UNIRIO, mas escolhi a Rural, sabe-se lá porquê. Atualmente lidar com a sequela do TCE é fácil, mas, também é difícil.

O fácil é porque eu consegui criar um mecanismo dentro de mim, olho pro meu lado e vejo que pessoas passam coisas piores e conseguem dar a volta, o difícil é superar as perdas. Eu entendi que eu não posso mais jogar bola... e me dar a chance de me amar de uma ótica melhor de uma forma livre. Então atribuo ganhos e perdas ao acidente. Ganhos é estar no fim do curso, ter fundado um coletivo na UFRRJ de pessoas com deficiências e simpatizantes, ajudar meu próximo. Mas as perdas são lidar com o meu emocional, quando eu vejo que hoje eu tenho poucos amigos, abdiquei de tantas coisas... eu tenho bloqueios mentais que não me deixam tocar muito nesse tema, é muito difícil para mim eu acho que para qualquer pessoa que sofre um acidente traumático difícil falar sobre ele... Nossa cultura não nos ensina a perder. Nossa cultura só nos ensina a ganhar, eu faço parte de uma cultura que eu aprendi só ganhar e o perder veio da forma mais traumática possível. Eu tentei o suicídio por três vezes, uma foi cortando os pulsos com uma faca de serrar, as duas outras vezes foi tomando doses excessivas de medicamento.

Na universidade, no início pensei que agindo de uma forma impositiva, autoritária, conseguiria garantir os meus direitos como aluno deficiente. Porém, me senti numa luta solitária. A partir do momento que o Núcleo de Inclusão passou a fazer parte da minha vida acadêmica, passei a vê-la com mais possibilidades. Vários questionamentos foram resolvidos. Hoje posso contar com a presença de uma mediadora que me acompanha em sala durante as aulas e desta forma me auxilia na conclusão dos trabalhos propostos. Sinto-me mais seguro com a utilização de alguns objetos que facilitam a minha rotina na sala de aula, como o gravador. Mas também sei que ainda terei muitos desafios a enfrentar até o final da graduação.

Eu já fiquei muitas vezes sem pegar livro na biblioteca, você pede ao colega ele diz que não pode pegar, pede ao outro colega, ele também diz que não pode pegar, aí você chega na biblioteca pede ao funcionário ele responde que não pode sair do setor. Então dessa forma para mim a biblioteca continua inacessível por problemas de acessibilidade física. Não tem elevador e rampa e o acesso é por escadas.

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Paulo

- Sou aluno de letras, estou no meu primeiro período acadêmico. Minha história se inicia aos 18 anos para os 19 anos de idade, fui ao trabalho e acabei sendo confundido por uma pessoa que se envolvia no mundo da criminalidade. Por esse motivo acabei sendo alvejado, tomei quatro tiros, um tiro atingiu a minha cabeça, outro tiro atingiu uma parte do meu corpo. E naquele mesmo instante que eu me deparei com aquela realidade. Eu fiquei sem chão, até porque não tinha nenhum envolvimento com drogas, não fumava, não bebia. Sendo confundido daquela forma foi algo que mexeu muito com a estrutura da minha família, mexeu muito com a estrutura do meu bairro, com as pessoas que me amavam, com as pessoas que conhecem o meu caráter, minha personalidade.

Muito cedo a minha trajetória foi parada. Eu tinha um sonho muito grande de um dia atuar na área militar, e quando eu me deparei com toda aquela realidade eu fiquei sem saber exatamente eu queria fazer, porque eu não tinha ciência de como seria a vida de uma pessoa com deficiência. Hoje em cima dessa cadeira de rodas, eu digo que a vida é bem diferente.

Existem muitas barreiras vários obstáculos. Uma das conquistas que tive foi passar no Enem e ingressar na universidade Rural e não foi fácil porque a Rural- no campus de Seropédica não tem acessibilidade nenhuma. Eu tive muitas dificuldades, precisei de muita ajuda, principalmente da minha noiva que me levava constantemente. As ruas não são acessíveis e por isso cheguei a sofrer um tombo no primeiro período. Devido ao tombo tive que parar. Por essa razão eu não consegui dar continuidade aos meus estudos. Havia tirado notas boas, mas, devido a essa fatalidade que sofri, a cadeira quebrou, e isso causou uma lesão no meu calcanhar, bati a coluna, e a cabeça no chão. Foi uma história muito ruim, muito triste. Há uma necessidade de uma acessibilidade maior na universidade Rural.

Tanto Marcos quanto Paulo falam dos seus acidentes e das dificuldades cotidianas que enfrentam em termos pessoais e na universidade. Destacam uma variedade de barreiras vivenciadas na universidade para a sua locomoção. É importante sinalizar que, no caso do Campus da UFRRJ de Seropédica, os prédios são tombados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, o que dificulta obras de acessibilidade. Mas os prédios, segundo os entrevistados, não são os únicos obstáculos. A universidade apresenta um conjunto de demandas de acessibilidade como nos caminhos que ligam os prédios não há piso tátil para cegos, por exemplo.

No caso do Instituto Multidisciplinar, Campus de Nova Iguaçu da UFRRJ, apesar do prédio ser recente, não é inteiramente acessível. Por exemplo, o piso tátil foi colocado somente no prédio da pós-graduação e a biblioteca não é acessível, pois não tem elevador, como destacado por Marcos: “[...] temos a biblioteca aqui que não conseguimos acessar, eu não consigo acesso”.

No entanto, ambos destacam que a acessibilidade física não é um dos maiores problemas, mas as barreiras atitudinais, sobretudo com alguns professores, pois muitos não entendem que precisam rever suas práticas para atender as especificidades de seus alunos. Segundo relatado por Marcos, há também colegas que acham que, por terem apoio, são privilegiados. Por exemplo, em seu caso, em função de não escrever durante as avaliações, o NAI assegura um escriba, o que nem sempre é bem visto pelos colegas.

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Após esses breves relatos dos discentes Marcos e Paulo, é possível verificar os desafios que a UFRRJ tem pela frente para garantir uma plena participação dessa parcela da população. Para tal, algumas medidas têm sido implementadas e que têm surtido efeitos positivos para ampliar as possibilidades de inclusão desses discentes na universidade, como, por exemplo, a criação da bolsa de acessibilidade e o programa de tutoria de apoio pedagógico, criados em parceria com as Pró-Reitoria de Graduação e Estudantil.

Igualmente, ressaltamos que, para os próximos anos, um conjunto de ações está previsto no Planejamento de Desenvolvimento Institucional (PDI) para ampliar as ações e apoio aos estudantes com deficiências na UFRRJ. Destacamos como importantes as seguintes ações: a) Formação e instituição da equipe que irá compor o NAI-RURAL, considerando - além de membros docentes e de técnico-administrativos - os profissionais especializados necessários para implantação de política de acessibilidade de pessoas com deficiência no ensino superior (intérprete de libras, pedagogo, estagiários, tutores, bolsistas, áudio descritores, entre outros necessários para atender as demandas dos discentes), sendo necessário que esses profissionais tenham sua carga horária integral voltada para as demandas no NAI-RURAL; b) Elaboração de política de acessibilidade institucional contemplando as pessoas com deficiência na comunidade UFRRJ, considerando entre essa política o apoio às ações relacionadas ao ensino, pesquisa e extensão para a promoção da acessibilidade e inclusão na UFRRJ; c) Estabelecer comunicação efetiva e eficiente de todos os setores da comunidade acadêmica da UFRRJ e das Pró-Reitorias com NAI-RURAL; d) Garantir espaço físico acessível com aquisição de recursos de tecnologia assistiva para atender as demandas de acessibilidade curricular dos discentes público da Educação Especial (PDI/UFRRJ, 2018-2021).

Essas ações são necessárias e urgentes para garantir maiores condições de suporte aos 26 discentes que atualmente estudam na UFRRJ, os quais ingressaram na modalidade de reserva de vagas de pessoas com deficiências, 13 em 2017/2 e 13 em 2018/1. Desse total, mais de 50% se enquadram, também, nas cotas raciais.

Se o “custo da oportunidade” para os jovens pobres e negros da Baixada Fluminense já é alto, mais ainda o é para aqueles que apresentam também alguma deficiência.

Considerações finais

Este capítulo teve como objetivo apresentar uma breve discussão sobre a inclusão de pessoas com deficiências no ensino superior, tomando como base o caso da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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Nossa discussão mostrou diferentes problemas no que diz respeito à acessibilidade. Em especial, chamaram nossa atenção os dados relativos à acessibilidade atitudinal. Do mesmo modo, verificamos que a acessibilidade pedagógica, arquitetônica e nos transportes merece cuidadoso debate na Instituição. Também não podemos deixar de evidenciar a falta e carência de profissionais especialistas como intérpretes, tradutores e instrutores de Libras, assim como de revisores e transcritores em Braille. Sabemos que essa demanda depende de liberação de vagas pelo Ministério do Planejamento e de recursos para contratos, aspecto já presente nos debates sobre inclusão e acessibilidade em seu Plano de Desenvolvimento Institucional.

Diante do exposto, esperamos que as reflexões aqui apresentadas, a partir dos casos de Marcos e Paulo, assim como as nossas inferências, possam contribuir com informações e reflexões para que a UFRRJ e outras IFES possam avançar e melhorar as condições de acesso, permanência e participação da população com deficiência, transtorno global do desenvolvimento e altas habilidades nas atividades acadêmicas. Esperamos que o compromisso assumido pelo poder público, a partir da promulgação da Lei de Cotas, implique também aumento do orçamento para as instituições.

Entendemos que ampliar a acessibilidade ao ensino superior exige mais investimentos financeiros, mas também pesquisas que privilegiem o tema e suas dimensões frente às políticas de inclusão. Sem pesquisas empíricas que analisem as formas sob as quais essa política educacional se traduz no ensino superior, não há como identificar e problematizar as experiências bem ou mal sucedidas, assim como as reais demandas colocadas para efetivar tal processo.

É importante sinalizar, ainda, que, apesar das dificuldades e problemas enfrentados pela UFRRJ, sobretudo no que diz respeito à carência de recursos humanos capacitados em áreas específicas para o suporte e apoio pedagógico, a implementação do NAI em diálogo com os diferentes setores da Universidade tem ampliado a participação dos discentes nas atividades de ensino, pesquisa e extensão.

Por fim, nunca é demais lembrar que, como já dissemos anteriormente (PLETSCH, 2020), a educação inclusiva é um processo dinâmico, cujas fronteiras se movem de acordo com as visões de inclusão em disputa e as lutas dos agentes políticos, econômicos e sociais envolvidos. Isto é, as convenções sobre o que é ou não “inclusivo”, até onde a inclusão pode chegar, por quais caminhos e recursos e quem tem direito ou não a ela mudam conforme fatores contingentes.

Nesse sentido, mudanças na agenda científica são necessárias. Pesquisas que alarguem a compreensão sobre o caráter multifacetado da deficiência enquanto experiência social que envolve dimensões como classe, raça e gênero têm de ser levadas em conta na elaboração de políticas institucionais de inclusão no ensino superior. Eis um dos grandes desafios das universidades públicas para avançar em propostas de educação inclusiva que contribuam com os esforços por uma sociedade mais democrática, justa e solidária.

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