Acessibilidade e Inclusão no ensino superior Reflexões e ações em universidades brasileiras

Pessoas com Deficiência na Educação Superior: o caso UFSCar

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Autores:André Henrique de Lima , Miriam Viridiana Verástegui Juárez , Leonardo Santos Amâncio Cabral e Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

Este capítulo apresenta elementos contextuais e discussões a respeito da acessibilidade voltada à legitimação de direitos de ingresso, permanência, formação e diplomação das pessoas com deficiência na educação superior brasileira, especificamente na região Sudeste, representada aqui pelo cenário da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior do estado de São Paulo.

As conquistas históricas, políticas e sociais, (quase sempre) gradativas e/ou processuais, culminaram na atual “Agenda 2030 para Desenvolvimento Sustentável”, a qual preconiza aos cidadãos das diversas sociedades a equidade nas condições de acesso em todos os níveis de educação e formação profissional, vislumbrando-se o reconhecimento das diferenças das pessoas com deficiência (ONU, 2015, meta 4.3). Essa prerrogativa tem permeado a legislação educacional de diversos países, inclusive no que tange à luta pela inclusão e acessibilidade na educação superior.

No Brasil, sobretudo nas últimas duas décadas, podemos destacar que, à luz da Constituição Federal de 1988, a normatização do ingresso das pessoas com deficiência nas Instituições de Educação Superior (IES) foi reforçada por normativas que se configuram como arcabouço legal que respalda o que compreendemos como políticas de ações afirmativas, as quais, conforme Cabral (2018):

[...] apresentam-se como instrumentos alternativos de caráter temporário ou indeterminado os quais, sob perspectivas e interesses sociais, políticos, econômicos e culturais, são destinados ao reconhecimento das diferenças historicamente marginalizadas por critérios econômicos, biopsicossociais, étnicos, raciais, religiosos, de deficiência, de diversidade sexual e de gênero, e tem como escopo atenuar as desvantagens no acesso, na permanência, na plena participação e na formação acadêmica dessas populações, fomentando ainda a pluralidade das identidades nos contextos universitários, a igualdade formal e substancial de oportunidades e a equidade de direitos. (p. 24)

Nesse contexto, fomentado por essas e diversas outras políticas de ações afirmativas, é possível destacar o aumento exponencial no índice de ingresso de pessoas com deficiência na educação superior brasileira. Quando consideramos o Censo Educacional de 2000, notamos que haviam sido registradas 2.173 matrículas (0,12%) de pessoas com deficiência nesse nível de ensino e, em 2016, no último Censo da Educação Superior, esse número aumentou cerca de 25 vezes (254%), alcançando 50.118 matrículas (0,43%), conforme os microdados referentes ao ano de 2015 (INEP, 2016; CABRAL; SANTOS; MENDES, 2018).

Desse total, segundo os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a região Sudeste é a que apresenta o maior índice de matrículas de pessoas com deficiência nas IES (39%), sendo São Paulo o estado com maior índice nacional (22,3%) (INEP, 2017).

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É nesse cenário que a UFSCar está inserida e é sobre (e dessa) realidade que nos dedicamos em reunir, sistematizar, analisar e discutir alguns elementos inerentes ao ingresso, à permanência, à formação e à diplomação de seus estudantes com deficiência.

A Educação Especial na UFSCar: contextualização histórica e ações afirmativas

A área da Educação Especial está presente na UFSCar desde a década de 1970, quando o Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) ofertou, em 1977, um curso de especialização para professores do “ensino especial” da cidade de São Carlos e região. Dessa iniciativa, foi identificada a escassez de profissionais na área da Educação Especial, o que incitou o CECH a assumir a responsabilidade de oferecer oportunidades de formação acadêmica e científica, culminando com a implementação do Programa de Mestrado em Educação Especial (PMEE) que, em 1990, passou a ser o atual Programa de Pós-Graduação em Educação Especial (PPGEEs).

Naquele contexto, a Biblioteca Comunitária (BCo) da UFSCar, em parceria com o PPGEEs e com os universitários com deficiência visual, fundou, em 1996 , o Programa de atendimento a grupos especiais de usuários: deficientes visuais (PROVER), cujo objetivo era o de proporcionar o acesso a tecnologias informatizadas e a confecção de materiais acadêmicos. Esta pode ser considerada a primeira ação afirmativa, de âmbito institucional, voltada a pessoas com deficiência usuárias da BCo/UFSCar. Naquele cenário, o que se viu, ao longo dos anos, foram as demandas acadêmicas suscitando servidores, discentes e docentes a recorrerem ao PROVER na busca por suprirem suas respectivas demandas (MORAES, 2008; VITORINI, 2015).

Em 2008, a UFSCar foi contemplada pelo edital público n.º 03/2007, do Programa Nacional de Acessibilidade na Universidade (INCLUIR), o qual disponibilizou recursos financeiros para o provimento de:

[...] condições de permanência de estudantes com deficiência nas instituições federais de educação superior, quais sejam a adequação arquitetônica, a aquisição de recursos de tecnologia assistiva, mobiliários, material pedagógico acessível, fomentando, dessa forma, a implantação dos núcleos de acessibilidade ou órgãos similares para assumirem, juntamente com os outros setores das instituições, ações que visem ao sucesso acadêmico desses indivíduos. (ANACHE; CAVALCANTE, 2018, p. 116)

Naquele mesmo ano, de acordo com as Diretrizes do Programa do Governo Federal de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (REUNI), foi criado o Curso de Licenciatura em Educação Especial (CLEEsp) com o objetivo de:

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[...] formar professores com competências técnicas, políticas e éticas para o ensino de alunos com necessidades educacionais especiais; reiterando os princípios contidos nas atuais políticas educacionais; reiterando, também, os princípios defendidos pela UFSCar, que constam do Plano de Desenvolvimento Institucional. (UFSCar, 2012, p. 13-14)

Nos anos subsequentes à implementação do INCLUIR na UFSCar, do CLEEsp e de diversos outros cursos e campi, houve uma tentativa institucional de se recensear a comunidade acadêmica por meio da autodeclaração de estudantes com deficiência no sistema de matrículas, inclusive como prerrogativa para fomentar justificativas de demandas e continuar concorrendo, nacionalmente, aos editais do referido programa. Como resultados, Zampar (2013) e Lourenço e Battistella (2018), com algumas dificuldades de acesso às informações, puderam identificar os seguintes dados:

Quadro 1 - Dados Censitários de estudantes universitários com deficiência da UFSCar
Período (Ano) N.º de Estudantes com Deficiência Campi
2008 a 2012 72 São Carlos e Sorocaba
2013 (Sem informação) (Sem informação)
2014 154 São Carlos, Araras, Lagoa do Sino e Sorocaba
2015 97 São Carlos, Araras, Lagoa do Sino e Sorocaba

Fonte: Dados apresentados a partir dos estudos de Zampar (2013) e Lourenço e Battistella (2018).

A dificuldade de sistematização desses dados é decorrente, inclusive, da então ausência de um setor institucional responsável especificamente pelas políticas e ações afirmativas da UFSCar. Com vistas a responder a essa e a outras demandas da comunidade acadêmica, foi implementada, em 2015, a Secretaria Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (SAADE), constituída por três coordenadorias , sendo a de Inclusão e Direitos Humanos (CoIDH) a responsável pelas questões inerentes aos servidores e estudantes com deficiência.

Uma vez instituída, a SAADE mobilizou-se com o objetivo de construir coletivamente, ao longo do ano de 2016, a Política de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da UFSCar. Nesse processo, as comissões representativas de cada campus da UFSCar responsabilizaram-se por conduzir “Seminários Temáticos”, quando discussões sobre questões étnico-raciais, de inclusão, direitos humanos e acessibilidade, de gênero e de diversidade sexual foram fomentadas. As informações provenientes desses encontros foram sistematizadas, colocadas em consulta pública e apresentadas em fóruns temáticos para refinamentos e definição das diretrizes da referida política (Figura 1).

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Figura 1 - Etapas do processo participativo e dialógico de construção da política de ações afirmativas, diversidade e equidade da UFSCar

Fonte: UFSCar (2016).

Como resultado, especificamente no que tange às questões relacionadas às pessoas com deficiência, a política institucional que está em vigência até os dias atuais determinou diretrizes que contribuem para a promoção da equiparação de oportunidades no ingresso, na participação, na formação, na diplomação, na perspectiva da educação e aprendizagem ao longo da vida .

É sobre essas temáticas que apresentaremos um retrato atual do contexto institucional da UFSCar, na perspectiva da inclusão e da acessibilidade.

Ingresso: normativas, adequações e bancas de verificação

No âmbito das ações afirmativas de ingresso de pessoas com deficiência nos cursos de graduação e de pós-graduação da UFSCar, são previstas adequações nos exames de admissão, a depender da solicitação dos candidatos na fase de inscrição aos processos seletivos. Como exemplo, podemos fazer referência às seguintes orientações:

Candidatos com deficiência e/ou mobilidade reduzida, que exijam condições especiais para a realização da Prova […] deverão encaminhar [...] os seguintes documentos: [...] Laudo(s) emitido(s) por especialista(s), que descreva(m), com precisão, a natureza da deficiência, bem como as condições necessárias para a realização das provas. [...]. Anotar no envelope: Especiais. (UFSCar, 2016, item 12)

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Para além dessas ações afirmativas de ingresso, as determinações da Lei n.º 13.409/2016, do Decreto n.º 9.034/2017 e da Portaria n.º 5, de 9 de maio de 2017, suscitaram a UFSCar, juntamente com as demais Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) brasileiras, a adotar o sistema de reserva de vagas voltado às pessoas com deficiência que cursaram, em sua totalidade, o Ensino Médio em escolas públicas da rede regular de ensino. Tais dispositivos trouxeram consigo uma gama enorme de questionamentos e desafios que abrangeram desde questões conceituais à sua operacionalização de fato no âmbito das IFES.

No âmbito desses movimentos, destacamos um fato: ainda que algumas IFES tenham evidenciado que as ações das bancas de verificação de ingresso seriam respaldadas à luz dos dispositivos da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, ratificados no Brasil pelo Decreto n.º 6.949/09, e transversalizadas pela perspectiva biopsicossocial reforçada pela Lei Brasileira de Inclusão da pessoa com deficiência (BRASIL, 2015), o que se viu, na prática, foi o enquadramento compulsório dessa parte da população a um grupo definido de acordo com critérios estritamente biomédicos, conforme disposto no art. 2º da Lei n.º 13.409/16 e nas categorias discriminadas no art. 4º do Decreto n.º 3.298/1999 (com as alterações introduzidas pelo Decreto n.º 5.296/2004); no §1º do art. 1º da Lei n.º 12.764, de 27 de dezembro de 2012 (Transtorno do Espectro Autista); e, até mesmo, naquelas contempladas pelo enunciado da Súmula n.º 377 do Superior Tribunal de Justiça.

No intuito de proteger os direitos garantidos estritamente às pessoas com deficiência e de evitar processos de judicialização, o esforço da UFSCar foi o de delimitar, em seus editais públicos, os critérios de não elegibilidade para a candidatura a esse sistema, também respaldados pela abordagem biomédica, predominantemente com base na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10) ou International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems (ICD) , a qual fornece códigos relativos à classificação de doenças e de uma grande variedade de sinais, sintomas, aspectos anormais, queixas, circunstâncias sociais e causas externas para ferimentos ou doenças.

Como consequência, os critérios de não elegibilidade limitaram as possibilidades de vários grupos populacionais em concorrer ao sistema de reserva de vagas nas IFES brasileiras, a saber: a) pessoa com transtornos específicos do desenvolvimento das habilidades escolares (CID 10 - F81); b) pessoa com dislexia e outras disfunções simbólicas, não classificadas em outra parte (CID 10 - R48); c) pessoa com transtornos hipercinéticos (CID 10 - F90); d) pessoa com transtornos mentais e comportamentais (F00 - F99); e) pessoa com deformidades estéticas e/ou deficiências sensoriais que não configurem impedimento e/ou restrição para seu desempenho no processo ensino-aprendizagem que requeira atendimento especializado; e f) pessoa com mobilidade reduzida (UFSCar, 2017a).

A apuração e a comprovação da deficiência do/a candidato passaram a ser realizadas por uma Comissão Especial de Verificação (CEV) composta por, no mínimo, três representantes com formação em saúde ou educação, preferencialmente atuantes das áreas da Educação Especial, Psicologia, Sociologia, sempre contando com as Comissões de Acessibilidade atuantes nos campi da UFSCar.

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Sobre o funcionamento das bancas de verificação realizadas pela CEV nos processos seletivos, considerando-se a característica de a UFSCar ser uma instituição multicampi, para além das discussões presenciais em cada campus, havia um diálogo entre as comissões de modo virtual (chamadas telefônicas; Skype, WhatsApp, entre outros recursos), para fins de esclarecimentos e orientações intersetoriais e interdisciplinares, sob a perspectiva colaborativa.

Após esses procedimentos, como resultado da implementação do primeiro sistema de reserva de vagas para pessoas com deficiência em todos os cursos de graduação da UFSCar, em 2018, foram deferidas as matrículas de 54 estudantes com deficiência autodeclarados (sendo 35 no Campus São Carlos).

Em 2019, porém, a Portaria n.º 1.117, de 1º de novembro de 2018, determinou que as IFES adotassem a Linha de Corte do Grupo de Washington de Estatísticas sobre Deficiência. Esse critério culminou na redução do índice nacional de pessoas com deficiência de 23,9% para 6,7%. Na Unidade Federativa de São Paulo, esse índice caiu de 24,7% para 7,3%, impactando diretamente sobre o percentual de reserva de vagas nos cursos de graduação, uma vez que esse cálculo é baseado no último Censo Populacional do IBGE de cada unidade federativa (Figura 2).

Figura 2 - Simulação em tela do SiSUGestão, ambiente em que as IFES fazem a assinatura do Termo de Adesão ao Sistema de Seleção Unificada (SiSU)

Fonte: SiSUGestão (UFSCar).

Nesses moldes, uma vez considerados os cálculos com base nesses novos critérios, um curso de 40 vagas, por exemplo, passou a não garantir a reserva de vagas para pessoas com deficiência a partir do SiSU de 2019. Isso ocorreu na maioria absoluta dos cursos da UFSCar, em todos os campi, configurando-se como um grande retrocesso em relação ao SiSU de 2018. O número de matrículas deferidas reduziu de 54, em 2018, para 25 estudantes (12 no Campus São Carlos), em 2019.

Para além da redução do número de matrículas, observou-se um retrocesso cultural, gerencial e pedagógico: profissionais de muitos cursos, ainda que veladamente, manifestaram sentir-se “aliviados” pelo fato de terem chances mais reduzidas de receberem alunos com deficiência, por não terem de repensar suas práticas de gestão, de desenvolvimento e/ou adequação de materiais e de estratégias didático-pedagógicas para fins de responderem a possíveis demandas de estudantes com os mais diversos tipos de deficiência que pudessem ingressar via sistema de reserva de vagas.

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Ainda assim, os processos de (des)construção de concepções e a ressignificação das práticas puderam ser percebidas ao longo dos últimos anos, no processo de permanência desses estudantes, formação e diplomação.

Permanência e trajetória acadêmica: desafios e perspectivas

Um currículo atento à formação profissional, ao desenvolvimento de competências e habilidades, inevitavelmente implica alteridade, reconhecimento das diferenças do outro (para além do respeito e tolerância), em um envolvimento cooperativo dos profissionais, da comunidade, dos docentes e dos discentes na definição, nos processos de planejamento e definição de objetivos, conteúdos, estratégias e recursos educacionais, em uma perspectiva biopsicossocial (SKLIAR, 2003; LUCCHESE; BARROS, 2009; CABRAL; MELO, 2017).

Nesse sentido, o processo de permanência do estudante universitário com deficiência envolve a promoção da acessibilidade, em suas diversas esferas, lançando mão de estratégias de planejamento, de desenvolvimento, de utilização de recursos didático-pedagógicos, de gerenciamento de tempos e espaços e de estratégias de avaliação (REISER, 2001).

Na UFSCar, o planejamento da orientação acadêmica desses estudantes está atrelado às estratégias de identificação, de acesso e de difusão de informações, as quais são reunidas e sistematizadas desde os processos seletivos. Os setores responsáveis pelo ingresso, sobretudo a Pró-Reitoria de Graduação (ProGrad), suas respectivas divisões e a SAADE compreendem a importância de algumas iniciativas: a) convidar os ingressantes com deficiência para dialogar sobre possíveis demandas de permanência (acadêmicas e de subsistência); b) comunicar aos diretores de centro e coordenadores de curso sobre o ingresso de estudantes com deficiência; e c) agendar reuniões com gestores e estudantes para orientações institucionais e planejamentos coletivos, sob a perspectiva colaborativa. Isso porque o planejamento é compreendido como uma necessidade constante em todas as áreas da atividade humana, considerando as condições existentes no contexto, prevendo formas alternativas de ação para superar possíveis dificuldades, de modo a se alcançar os objetivos previstos no processo de formação profissional (CABRAL et al., 2015).

Com base na definição de metas institucionais e de estudantes, parte-se para o desenvolvimento de estratégias, valendo-se de recursos humanos, materiais, tecnológicos, financeiros, estruturais e didático-pedagógicos, sejam eles disponíveis ou a serem ainda desenvolvidos ou alcançados, de acordo com as demandas, sob a perspectiva da promoção da acessibilidade.

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Contudo, todas essas pretensões e iniciativas esbarram nas mais diversas barreiras e, concordando com Anache et al. (2014), Bruno (2011), Ferreira (2007), Poker e Milanez (2015), algumas ações passam a ser fundamentais nesse processo, tais como: sensibilização da comunidade universitária; pesquisas sobre concepções de estudantes, professores e técnicos acerca da inclusão; atividades de ensino, pesquisa e extensão; criação de estágios supervisionados com a participação efetiva dessa parte da população como atores; construção de instrumentos de triagem e avaliação para registro, atendimento e acompanhamento dos acadêmicos que procuram o atendimento educacional especializado; avaliação das necessidades educacionais dos estudantes; orientações ao corpo docente e funcionários de diferentes setores da instituição; diagnóstico institucional sobre as condições de acessibilidade; formação continuada de professores; adequação do currículo, assessoria psicopedagógica e produção e adequação de recursos pedagógicos. Soma-se a isso:

[...] a importância de as políticas institucionais estarem respaldadas sob a perspectiva inclusiva e de melhoria do ambiente educacional, traçando objetivos, requisitando professores capacitados para atuarem em áreas específicas e criando uma prática de reconhecimento e respeito mútuo entre estudantes, professores e coordenação em geral, de forma que construam juntos o saber. (CABRAL, 2017, p. 380)

Transversalizando esse processo, está o aspecto fundamental de se promover a equidade e acessibilidade no processo de ensino-aprendizagem no âmbito da educação superior, reconhecendo-se as identidades e diferenças das pessoas com deficiência nesse cenário, promovendo a legitimação dos direitos formais e substanciais dessa população, no acesso ao currículo e na formação profissional, com vistas a se reduzir sua vulnerabilização no cotidiano acadêmico e social (BRASIL, 2008; 2015; EBERSOLD, 2008; LIMA; CABRAL, 2018; ZABALA, 1998).

Nesse sentido, diferentes instâncias da UFSCar se empenharam cooperativamente no sentido de subsidiarem a identificação de estratégias didáticas e de planejamento voltadas ao ensino-aprendizagem e à formação profissional de estudantes universitários com deficiência da instituição, na perspectiva da acessibilidade, particularmente após a implementação do sistema de reserva de vagas para a matrícula desse alunato.

Representando algumas das ações concretas mais recentes, destacamos: em setembro de 2019, o Conselho de Coordenação do Curso de Medicina da UFSCar aprovou uma proposta de "diferenciação e acessibilidade curricular para estudantes com deficiência" elaborada em cooperação com o Curso de Licenciatura em Educação Especial. No entanto, ainda que o currículo diferenciado e acessível tivesse sido planejado e implementado de imediato no referido curso, esse deveria ser ratificado por ato normativo da ProGrad/UFSCar, para fins de reconhecimento institucional e futura diplomação do(a) estudante.

Para tanto, a ProGrad/UFSCar solicitou um parecer da Procuradoria Federal junto à Fundação UFSCar sobre a questão, o qual foi concluído em fevereiro de 2020. Nele, é observado que as pessoas com deficiência:

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[...] possuem proteção legal e podem ter seus direitos ampliados e regulamentados no âmbito da Universidade, mediante os critérios pedagógicos e acadêmicos a serem estabelecidos pela Coordenação do Curso e o CoG, com articulação pela ProGrad [concluindo que são] legalmente adequadas propostas com a finalidade de adaptação curricular do curso de medicina para pessoas [com] deficiência e necessidades especiais, desde que se faça através dos órgãos colegiados da Universidade, em especial o CoG, nos termos do artigo 14, II, do Regimento da UFSCar. (PROCURADORIA FEDERAL DA UNIÃO, 2020)

Uma vez aprovado pela Procuradoria Geral da UFSCar, ficou estabelecido, em relação ao currículo diferenciado aos estudantes com deficiência, o seguinte fluxo para sua elaboração no âmbito da instituição, nos seguintes termos:

[...] a proposta de adaptação curricular deve ser construída pelo NDE de acordo com as demandas que foram apresentadas pelos professores; posteriormente aprovada pelo Conselho de Curso, encaminhada para essa Pró-Reitoria, para análise sob o ponto de vista da legislação e normativas internas e finalmente encaminhadas para o CoG. (PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS, 2020)

Com base nesses direcionamentos, ficaram estabelecidos os respaldos legal-institucionais que fundamentam as decisões dos Núcleos Docentes Estruturantes (NDE) dos cursos da UFSCar, bem como do Conselho de Graduação (CoG), no que tange à diferenciação e acessibilidade curricular para estudantes com deficiência da educação superior.

Formação profissional e diplomação: nuances e concepções

As conquistas na UFSCar são fruto, também, de alguns projetos de ensino, pesquisa e extensão que têm sido desenvolvidos para fomentar as discussões a respeito da formação profissional e diplomação dos estudantes com deficiência, dentre os quais podemos citar: a) JobSkills: tecnologia de apoio para o acesso de estudantes universitários com deficiências no mercado de trabalho; b) Estratégias didático-pedagógicas e de gestão no Ensino Superior sob a perspectiva inclusiva; c) Pessoas com deficiência e estágio curricular; d) Interface entre Educação Especial e Educação Laboral: uma análise integrativa; e) Aspectos de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho; f) Suporte de audiodescrição entre pares voltado a estudantes universitários com deficiência visual .

Considerando-se os processos de planejamento, desenvolvimento e utilização de recursos, gerenciamento e avaliação do percurso acadêmico dos estudantes universitários com deficiência, espera-se que a legitimação de sua trajetória seja referendada por meio da diplomação, uma vez que, conforme Bourdieu (2007), é “essa certidão de competência cultural que confere ao seu portador um valor convencional, constante e juridicamente garantido” (p.78). Ainda de acordo com esse autor, o reconhecimento de suas competências e de seus conhecimentos teórico-práticos, desenvolvidos na universidade, possuem a potência de possibilitar aos sujeitos egressos de atuarem na sociedade, enquanto cidadãos formados na educação superior.

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Contudo, é cada vez mais notória a necessidade da (des)construção sobre o que são “competências” no contexto da educação superior. Esse conceito, infelizmente, ainda está muito contaminado pela perspectiva do capacitismo, “materializada através de atitudes preconceituosas que hierarquizam sujeitos em função da adequação de seus corpos a um ideal de beleza e capacidade funcional” (MELLO, 2016, p. 326).

Sobre isso, acreditamos que, quando esse processo é permeado pela perspectiva da alteridade, da aproximação das identidades e das diferenças, as culturas e concepções tradicionalmente conservadoras das mais diversas profissões irão, paulatinamente, ressignificar-se, de modo a compreender que a deficiência não deve ser, nas diversas sociedades, o fator impeditivo de reconhecimento e exercício de competências profissionais.

Considerações Finais

O panorama apresentado neste capítulo pode possibilitar a compreensão de que os estudantes com deficiência matriculados na UFSCar e sua respectiva comunidade acadêmica ainda enfrentam diversos desafios culturais, didático-pedagógicos, de gestão, de avaliação, de políticas e de financiamento que recaem, diretamente, no ingresso, na trajetória acadêmica desses estudantes e dos demais, em sua efetiva participação, aprendizagem, formação/habilitação profissional, diplomação, a transição para o mercado de trabalho e orientação de seus respectivos projetos de vida.

É necessário, portanto, que o currículo na educação superior seja urgentemente revisto e discutido sob a perspectiva organizacional e programática, considerando-se os estudantes universitários com deficiência no âmbito dos projetos pedagógicos de todos os cursos, com vistas a se superar ideais capacitistas e a se fomentar processos de formação sob a perspectiva biopsicossocial e de acessibilidade, fomentando a motivação e a cooperação entre os atores envolvidos, não somente em atividades teóricas, como nas atividades práticas supervisionadas e estágios curriculares.

Considerando o exposto, espera-se que as discussões deste capítulo fomentem a elaboração de projetos pedagógicos de curso de IES, a gestão educacional, a construção de contextos inclusivos, a avaliação processual dos estudantes universitários com deficiência, os critérios para sua diplomação e, concomitantemente, a construção de uma aproximação entre a universidade e a sociedade para que esse profissional em formação exerça suas aspirações enquanto cidadão legítimo.

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