Cultura Digidown Formação de Professores para a Inclusão de Estudantes com Síndrome de Down

Síndrome de Down, Processos de Alfabetização e Letramento Digital

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Autoras: Tatiane Soares dos Santos, Vanessa Helena Santana Dalla Déa e Maria de Fatima Teixeira Barreto

A apropriação da língua escrita sempre foi um desafio para a educação brasileira, que há muito tempo convive com altos índices de analfabetismo. E esse desafio se torna ainda maior quando se trata de pessoas com síndrome de Down por apresentarem a deficiência intelectual (DI) e comprometimentos na linguagem oral. Nesse contexto esses estudantes constituem uma esmagadora maioria de pessoas que não são sequer alfabetizadas. De acordo com dados recentes do Ministério da Educação (Brasil, 2008, 2009) dos 700.824 alunos matriculados em modalidades de educação especial, 330.794 (aproximadamente 47%) apresentam deficiência intelectual, dentre essas a maioria é formada por pessoas com SD.

Durante muitos anos pessoas com deficiência foram excluídas da sociedade e principalmente dos processos de escolarização, por se acreditar que não eram capazes de desenvolver habilidades relacionadas à socialização e a aprendizagem. Essa realidade afetou de forma intensa pessoas com síndrome de Down (SD) sob o pretexto principalmente da deficiência intelectual (DI). Por muitas décadas a SD, foi entendida como uma condição permanente que impedia a pessoa de aprender, se desenvolver, e se relacionar socialmente (SAAD,2003).

Com o aumento de conhecimentos científicos sobre a SD, e com novas concepções de aprendizagem e desenvolvimento oriundos da abordagem histórico-social de Vygostski, esses estigmas e estereótipos já não possuem bases empíricas que os defenda, pois hoje já se sabe que essas pessoas podem aprender e se desenvolver, e que fatores externos ao indivíduo são mais determinantes nesse processo que os fatores biológicos. Oliveira (2009) já apontava que “a condição de deficiência intelectual não pode nunca predeterminar qual será o limite de desenvolvimento do indivíduo. [...] Cabe à escola criar as condições necessárias [...] para a superação de seu próprio limite.” (p.73, 74).

O Referencial de Avaliação de Aprendizagem dos Alunos com Necessidades Educacionais Especiais enfatiza que as pessoas com deficiência, jovens e adultos, “que estão na escola, já viveram anos marginalizados do saber sistematizado”. (SECRETARIA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 2012, p.29). A partir desse contexto histórico de exclusão e marginalização desses alunos com DI, o referencial reforça que alfabetizar perpassa o sentido de mera aquisição de uma habilidade de leitura e escrita, mas influencia diretamente no desenvolvimento cognitivo e social dessa pessoa, portanto:

[...] Alfabetizar uma pessoa com deficiência intelectual não é um fim em si mesmo, mas um meio de possibilitar modificações mais amplas no seu repertório comportamental, contribuindo ao mesmo tempo para que melhore o que se chama a sua “auto estima” e para que o mesmo também possa ter acesso ao conhecimento consequentemente o desenvolvimento do seu potencial cognitivo. (SECRETARIA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 2007, p.60)

Pletsch e Glat (2012) argumentam que, apesar dos avanços científicos e da consolidação de políticas públicas seguindo os princípios da educação inclusiva, “as práticas pedagógicas e a cultura escolar que se observa no cotidiano das instituições públicas de ensino não sofreram ressignificação” (p.200). As autoras reforçam que essa afirmação se deve ao fato de que, apesar dos ideais de inclusão que circundam as escolas públicas brasileiras, não têm ocorrido mudanças quanto às oportunidades e a qualidade do ensino prestado a essa demanda de alunos com deficiências. Segundo as autoras este cenário acaba prejudicando o processo de ensino e aprendizagem de alunos com necessidades específicas, sobretudo daqueles com dificuldades cognitivas, como podemos constatar nos sujeitos com SD.

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Pletsch e Glat (2012) contestam “que os professores do ensino comum não assumem, na prática, responsabilidade didática pelos alunos com deficiências incluídos em suas turmas”. (p.200). Com isso, pouco ou quase nada se tem feito para melhorar a qualidade do ensino prestado a esses alunos. As autoras ainda afirmam que, no caso dos alunos com deficiência intelectual, esta situação só é ampliada, já que este sujeito continua sendo considerado “da Educação Especial”, o que representa um papel determinante na vida escolar da maioria desses sujeitos, que passa a ser também privado dos conhecimentos sistematizados oferecidos pela escola. Pletsch e Glat (2012) salientam que enquanto a Educação Especial continuar atuando como um sistema paralelo, pouco progresso se fará na aprendizagem, desenvolvimento e inclusão destes alunos. Mendes (2006), Oliveira (2008), Fontes (2009), entre outros, também admitem essa posição, ao discutir a importância do trabalho colaborativo entre o especialista da Educação Especial com o professor regente da turma comum em que estão matriculados alunos com deficiência intelectual.

Segundo as autoras, a escola não tem levado em consideração a diversidade de seus alunos, e tem adotado o mesmo currículo (sem adaptações, nem flexibilização) e métodos tradicionais para o ensino à todos os alunos, desconsiderando assim as especificidades que envolvem a DI por exemplo. Com isso alunos que não conseguem se adaptar a esses padrões acabam excluídos, como percebemos no caso dos alunos com SD.

Pletsch e Glat (2012) afirmam que crianças com DI, dentre elas estão os com a SD, têm sido excluídas dos processos de ensino e aprendizagem que ocorrem dentro das escolas, isso se reverbera principalmente nas práticas de leitura e escrita, ou seja, na alfabetização e no letramento. É fato que alunos diagnosticados com DI, como esses alunos, têm concluído sua passagem pela escola sem nem ao menos serem alfabetizados (SAAD, 2003), (PLETSCH; GLAT, 2012). Conforme estudos feitos pelas autoras, ainda existe nos contextos educacionais uma “supervalorização das habilidades cognitivas presente nas concepções dos educadores que torna esses sujeitos, em suas percepções, inelegíveis à aprendizagem formal” (PLETSCH; GLAT, 2012 p.198). Esse fato nos mostra que a concepção de deficiência intelectual ainda é impregnada pelo modelo médico, em uma visão estática das possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento desses sujeitos. Com isso o diagnóstico clínico continua sendo usado como referência para as práticas educacionais, conforme defende as autoras, o que corrobora para essa exclusão de estudantes com SD no interior das escolas.

Tendo por base esses processos de avaliação, Oliveira (2008) reforça que certamente as práticas pedagógicas não serão positivas para o processo de aprendizagem, uma vez que focalizam na deficiência e não no processo educacional no qual esse aluno está inserido. Assim por avaliar alunos com DI, com base em padrões estabelecidos como “normais” e homogêneos, os professores acabam negando a esses alunos o acesso a saberes mais complexos, impossibilitando o desenvolvimento de suas funções superiores. (PLETSCH; GLAT, 2012)

Conforme afirmam Pletsch e Glat (2012) a escola não tem se preocupado em se adaptar para oferecer a esses alunos experiências significativas com a leitura e escrita, que de fato lhe propicie desenvolvimento de funções mais complexas. Nesse sentido as autoras ainda contestam que consonantes com a representação social da pessoa com deficiência intelectual “como incapaz de aprendizagens complexas superiores, as professoras parecem adotar uma atitude de pouca expectativa e exigência, aceitando ‘o pouquinho que eles fazem já está bom’, já que ‘pelo menos’ eles estão na escola se socializando”. (p. 200). Assim as autoras esclarecem que as tentativas de modificação na estrutura curricular verificadas em algumas escolas regulares consistem “apenas em pequenos ajustes, voltados para uma ‘facilitação’ da tarefa, o que acabava por minimizar as possibilidades de aprendizagens superiores– para usar um termo vygotskiano”. (PLETSCH; GLAT, 2012, p.199). Ainda nesse sentido as autoras argumentam que de maneira geral, tanto no contexto educacional comum de alfabetização quanto no especializado, na maior parte das vezes as atividades curriculares pedagógicas consistem:

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Em tarefas elementares como recortar, colar, pintar, copiar, ou seja, atividades que não favoreciam o desenvolvimento de habilidades cognitivas mais elaboradas, necessárias para a construção de conceitos científicos que envolvem conhecimentos abstratos (por exemplo, a relação entre o signo representado pelo número um e a quantidade que ele representa). (PLETSCH; GLAT 2012 p.199-200)

É certo que pessoas com DI, como qualquer outra criança em fase de alfabetização, apresentam dificuldades na internalização de conhecimentos relacionados ao pensamento abstrato, responsável também pela aquisição de conhecimentos mais complexos, intrinsecamente relacionada à leitura e escrita. Por isso a escola deve propiciar situações de aprendizagem que favoreçam o desenvolvimento dessas funções superiores, pois é a partir desse desenvolvimento que a criança internaliza os saberes culturais da sociedade, como seus signos e símbolos (leitura e escrita).

Seguindo essa perspectiva Pletsch e Glat (2012), enfatizam que para proporcionar este tipo de desenvolvimento cognitivo, devem ser oferecidas atividades que desenvolvam justamente essas capacidades. Entretanto, ao olhar para os contextos escolares, ao contrário disso, “pode-se dizer até que, de certa forma, a escola – seja regular, seja especial – contribui para maior ‘cristalização’ da deficiência, em vez da superação desta” (p.200). Vygotski (1997) já alertava isso ao afirmar que o potencial do desenvolvimento para crianças com alguma deficiência deveria ser buscado na área das funções psicológicas superiores, e não das elementares. Nesse sentido podemos acrescentar que a aprendizagem “não ocorre de maneira espontânea, mas sim a partir da interação e do desenvolvimento de práticas curriculares planejadas e sistematizadas de forma intencional” (PLETSCH, 2010, p. 187).

Negar a interação entre o estudante e os signos construídos historicamente pela sociedade como no caso a leitura e escrita, é impedir a aprendizagem e consequentemente o desenvolvimento do aluno. Mas que promover essa interação com situações reais, significativas de aprendizagem, é preciso que o professor compreenda seu aluno como sujeito ativo na sua aprendizagem, subjetivo, e com capacidades e potencialidades que lhe são próprias como qualquer outro aluno, independente de suas diferenças. Assim assuma seu papel de mediador, atuando na ZDP (Zona de Desenvolvimento Proximal) desse aluno, ajudando-o a efetivar essas aprendizagens, que promovem saltos qualitativos no seu desenvolvimento. Pois como salienta Vygostski (1991) a aprendizagem precede o desenvolvimento.

Podemos perceber que para Vygostski a relação entre o sujeito e o conhecimento é mediada pelo outro, logo isso implica assumir que o outro exerce uma grande importância nesse processo. De acordo com Pino (2001, p. 65), “não se trata de fazer do outro um simples mediador instrumental. [...] A mediação do outro tem um sentido mais profundo, fazendo dele a condição desse desenvolvimento”. É importante também salientar que no processo de aprendizagem e desenvolvimento, como vimos, a criança não desenvolve sozinha, de modo que a escola tem um importante desafio a enfrentar: encontrar caminhos que possam superar as barreiras impostas pela deficiência, através do mecanismos de compensação, e localizar sua atenção nas condições em que a aprendizagem ocorre, e não mais nas deficiências, dificuldades e prognósticos de seus alunos, principalmente quando se trata de seus estudantes com síndrome de Down.

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Partindo desses pressupostos de exclusão da pessoa com SD dos processos de alfabetização e letramento oferecidos pela escola regular, podemos perceber como se faz necessário propostas que venham intervir nessa realidade, oferecendo à escola e aos profissionais envolvidos nesse processo, recursos que contribuam significativamente auxiliando o professor na mediação desses conhecimentos. Essa é uma das pretensões dessa pesquisa, se pensar um recurso que contribua nesse sentido, pautados em uma proposta de contemple as especificidades e potencialidades desses estudantes.

No capítulo a seguir, aprofundaremos sobre os processos de alfabetização e letramento, a fim de conhecer como se dão esses processos e qual suas implicações na formação do leitor e escritor competentes.

Especificidades da Alfabetização e do letramento

O desafio de contribuir para que nossos alunos se tornem leitores e escritores competentes têm suscitado muitas preocupações e discussões no campo educacional. Esse desafio se torna ainda maior quando se trata de pessoas com SD, por apresentarem como vimos algumas especificidades e necessidades como a DI e suas dificuldades com a fala, que tornam esse processo um pouco mais desafiador. Essas especificidades exigem dos profissionais educativos envolvidos nesse processo uma boa formação e principalmente entender como se dá a apropriação da leitura e escrita por parte dos alunos, para que possamos mediar essa ação e facilitar esse processo através de propostas que sejam de fato significativas e interessantes à esses estudantes.

Como vimos nos capítulos anteriores o processo de aprendizagem e desenvolvimento se dá da mesma maneira tanto pelas pessoas com deficiência quanto as sem deficiência, e o meio externo exerce uma grande influência nesse processo.

Dessas afirmações podemos refletir que as pessoas com SD se apropriam da língua escrita da mesma forma que os demais alunos, e que a escola e os profissionais envolvidos nesse processo exercem grande influência como mediadores desse processo. Logo entender como se dá os processos de alfabetização e letramento é fundamental, para compreender com os sujeitos se apropriam da leitura e escrita, e a partir disso podermos pensar uma proposta pedagógica que seja significativa e que tenha bases teóricas que a fundamentem.

Para que os sujeitos letrados e alfabetizados sejam formados nos espaços escolares é necessário que se desenvolva com os alunos um processo de aquisição da linguagem inicial escrita que contemple não somente a habilidade de dominar o sistema de representação escrita e ortográfico, mas também compreendam seus usos nos mais variados contextos sociais. O desenvolvimento dessas habilidades e competências se dão por meio de dois processos distintos, com especificidades próprias, indissociáveis e complementares: a alfabetização e o letramento. (SOARES, 1998)

Soares (1998) distingue esses dois termos, dando à eles os seguintes significados: “Alfabetização: ação de ensinar/aprender a ler e a escrever. Letramento: estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita” (p. 47).

Tfouni (1995), também estabelece diferenciações entre os termos inferindo que: “Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade.” (p.9). Para a autora a alfabetização está situada em uma dimensão individual da aquisição da leitura e escrita, em contrapartida o letramento se estabelece a partir da social.

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A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isto é levado a efeito, em geral, através do processo de escolarização, e, portanto, da instrução formal. A alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual. O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio históricos da aquisição da escrita.(TFOUNI, 1988, p.9)

Conforme Soares (1998), o termo alfabetização refere-se a apropriação de uma tecnologia de representação da linguagem humana, a escrita alfabético-ortográfica. O domínio dessa tecnologia envolve um conjunto de conhecimentos e procedimentos relacionados tanto ao funcionamento desse sistema de representação quanto às capacidades motoras e cognitivas para manipular os instrumentos e equipamentos de escrita.

Há algumas décadas atrás a alfabetização era discutida somente como a aquisição da habilidade de representação do código de leitura e escrita. Era entendida também como a codificação e decodificação de nossa língua, com fins meramente individuais de progressão pessoal para satisfazer as demandas de uma cultura dominante, essas eram as características que marcavam os processos de alfabetização. Assim para que uma pessoa fosse considerada alfabetizada, era somente necessário que ela soubesse ler e escrever a princípio seu próprio nome. Mais tarde as competências que caracterizam uma pessoa alfabetizada se ampliaram, e para ser considerada alfabetizado o indivíduo precisava saber ler e escrever um bilhete simples. (SOARES, 1998).

Soares e Batista (2004) afirmam que, com o passar do tempo, o conceito de alfabetização foi progressivamente ampliado por causa das exigências sociais e políticas, chegando ao ponto em que ser alfabetizado apenas, não bastava; tornou-se necessário fazer uso da leitura e da escrita nas práticas sociais em que a língua é necessária. Com isso foi se percebendo que somente ensinar o domínio do código não era suficiente para fazer com que essas pessoas alfabetizadas, se tornassem leitoras e escritoras competentes. Era necessário que as pessoas se tornassem capazes de não somente codificar e decodificar, mas de desenvolverem essa tecnologia em práticas sociais de leitura e escrita. Se fazia necessário também que entender o significado disso no seu contexto social, e assim interpretar e reagir de forma crítica reflexiva sobre o que se lia e escrevia. É nesse contexto, que surge o fenômeno letramento.

O Letramento é um tema recente no âmbito educacional e linguístico, que surgiu na década de 80. Uma das primeiras ocorrências mais conhecidas do termo foi utilizado por Mary Kato em 1986, que tratava a língua falada culta como uma consequência do letramento. Em 1988, temos as primeiras definições feitas por Leda Verdiani Tfouni, que estabelecia diferenciações entre a alfabetização e o letramento. Assim o segundo termo foi-se constituindo nesses campos como sendo uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. (KLEIMAM, 1995).

A palavra letramento é de origem inglesa literacy. Recentemente na década de 90, Magda Soares explica sobre sua origem de seu significado:

[...] adquirir a "tecnologia" do ler e escrever e envolver-se nas práticas sociais de leitura e de escrita _ tem consequências sobre o indivíduo, e altera seu estado ou condição em aspectos sociais, psíquicos, culturais, políticos, cognitivos, linguísticos e até mesmo econômicos do ponto de vista social, a introdução da escrita em um grupo até então ágrafo tem sobre esse grupo efeitos de natureza social, cultural, política, econômica, linguística. (SOARES, 1998. p.17-18, grifos da autora)

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De acordo com Soares (2013), o processo de letramento começa quando a criança nasce, pois ao nascer ela já está inserida em uma em uma sociedade grafocêntrica, está imersa em um contexto social e cultural repleto de materiais escritos e convive com pessoas que fazem uso social da língua escrita, com significados e objetivos definidos.

Já o processo de alfabetização inicia-se quando a criança entra para a instituição educacional, não ocorrendo de forma espontânea. Para a autora, esse processo se trata de um trabalho sistemático e progressivo, que diz respeito à reflexão que se faz sobre as características do sistema alfabético e ortográfico, a promoção da análise fonológica, o reconhecimento das relações fonema/grafema, dentre outras séries de aspectos analisados pelo sujeito da aprendizagem acerca da língua. (SOARES, 2003).

Sobre o letramento a autora ainda complementa que ele se refere ao que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais, ou seja, é o “conjunto de práticas sociais relacionadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social” (SOARES, 1998, p. 72).

Segundo Soares (2004), no Brasil a invenção do letramento, se deu por caminhos diferentes daqueles que explicam a invenção do termo em outros países, como a França e os Estados Unidos. Enquanto que nesses países a discussão de letramento se faz de forma independente da alfabetização, em nosso país, a discussão do letramento surge sempre enraizada no conceito de alfabetização, levando a uma inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do conceito de letramento, o que tem conduzido a um certo apagamento da alfabetização, denominado por Soares (2003, 2004) como a desinvenção da alfabetização. Segundo a autora, a progressiva perda de especificidade do processo de alfabetização que parece vir ocorrendo nas escolas brasileiras ao longo das duas últimas décadas, é um dos fortes fatores que tem contribuído para o fracasso escolar no ensino da aquisição da leitura e escrita.

Para Soares (2003, 2004), devido às novas mudanças ocorridas nos contextos educacionais com o surgimento do fenômeno letramento, a alfabetização tem perdido suas especificidades, e muitas vezes tem caído em desuso, em detrimento ao letramento, fato que tem causado muitos prejuízos no processo de aquisição da leitura e escrita dos alunos. Nesse sentido a autora reforça que “alfabetização é algo que deveria ser ensinado de forma sistemática, ela não deve ficar diluída no processo de letramento” (2003, p.16), como muito se tem visto nas escolas brasileiras. Vale ressaltar, que conforme a autora salienta, embora sejam processos interdependentes a alfabetização e letramento são processos distintos, com especificidades diferentes, o primeiro está relacionado à aquisição do sistema alfabético e ortográfico através da relações grafemas-fonemas, se trata de uma tecnologia, já o segundo está relacionado ao uso que se faz dessa tecnologia. Ambos os processos devem ser trabalhados concomitantemente. (SOARES, 2003, 2004, 2016a)

Nesse sentido, os conceitos de alfabetização e letramento se mesclam, se superpõem, freqüentemente são confundidos. Os termos são muitas vezes usados equivocadamente para se referir a um mesmo processo de aquisição da leitura e escrita. Sendo assim, conforme enfatiza a autora é importante distinguir a alfabetização e o letramento, ao mesmo tempo em que é importante aproximá-los:

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A distinção é necessária porque a introdução, no campo da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se reconfigura-se no quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele. (SOARES, 1998, p. 90.)

Nessa perspectiva, Soares (1998) enfatiza que é imprescindível que os professores entendam que ambos processos têm significados, objetivos e competências diferentes no contexto educacional e social, pois são termos caracterizados pela aquisição de habilidades diferentes, e principalmente que, não formam o mesmo indivíduo. Então partindo desse entendimento é necessário que se atentem para a importância de trabalhar também o letramento na escola, juntamente com alfabetização. Para a autora isso se justifica pois:

Um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letrado; alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já o indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e escrita, prática a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e escrita (SOARES, 1998, p.39).

A autora ainda completa que dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos:

Pela aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento. Não são processos independentes, mas interdependentes, e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema–grafema, isto é, em dependência da alfabetização (SOARES, 2004, p. 14).

Para a autora a alfabetização e o letramento, embora se tratem de processos diferentes, entrelaçam, são indissociáveis e devem acontecer de forma simultânea, pois a entrada da criança no mundo da escrita deve acontecer tanto pela apropriação do sistema convencional de representação da leitura e escrita quanto pelo desenvolvimento de capacidades de usos desse sistema em atividades, intimamente ligadas às práticas sociais. Para Soares (2004) a alfabetização e o letramento não devem ser trabalhados de formas separadas como muito se vê nas escolas, como se fosse necessário que o aluno, primeiro desenvolvesse a habilidade de um, para posteriormente desenvolver as habilidades do outro. A autora reforça que o aluno precisa aprender a dominar a tecnologia da leitura e escrita pela assimilação do sistema alfabético e ortográfico, mas também é indispensável desenvolver essa tecnologia em seus usos sociais. Segundo a autora: “alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas não inseparáveis, ao contrário, o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja, ensinar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita” (SOARES, 1998, p. 47).

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Segundo a autora, a necessidade de incorporar o letramento nas escolas, junto com as práticas de alfabetização se dá porque os indivíduos que ela tem formado, muitas vezes não são capazes de corresponder às demandas sociais que a sociedade tem exigido. É preciso que as escolas se empenhem em trabalhar as práticas de leitura e escrita para além do domínio da tecnologia, e passem a pensar em como formar sujeitos que atendam essas demandas, compreendam os significados dessas práticas em seus mais variados contextos sociais e como isso reflete em sua própria vida. Nessa perspectiva a autora complementa que as escolas têm formado pessoas que:

Se alfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não necessariamente incorporam a prática da leitura e da escrita, não necessariamente adquirem competência para usar a leitura e a escrita, para envolver-se com as práticas sociais de escrita: não lêem livros, jornais, revistas, não sabem redigir um ofício, um requerimento, uma declaração, não sabem preencher um formulário, sentem dificuldade para escrever um simples telegrama, uma carta, não conseguem encontrar informações num catálogo telefônico, num contrato de trabalho, numa conta de luz, numa bula de remédio ... (SOARES, 1998,45-46).

A partir desses pressupostos que nos permitem entender que embora a alfabetização e o letramento sejam processos distintos, mas que são de igual modo importantes para aquisição da língua escrita por parte dos sujeitos, abordaremos a seguir, na intenção de continuarmos nossos estudos que nos levem a entender como o aluno se apropria da leitura e da escrita, sobre uma especificidade dos processos de alfabetização que a muito se constituem uma questão a ser pensada e que a muito também tem suscitado muitas discussões nos campos educacionais. Essa questão se trata dos métodos de alfabetização, algo que foi também apontado e discutido a partir dos resultados dessa pesquisa.

A questão do método na alfabetização

Em qualquer proposta pedagógica compreender sobre os métodos ou teorias que norteiam os processos de alfabetização e letramento se faz muito importante, pois é a partir desse entendimento que podemos compreender quais os melhores caminhos os quais podemos trilhar na intenção de mediar esses conhecimentos. Sendo importante dizer que é a partir também desse entendimento que os profissionais educativos podem conduzir os estudantes por caminhos que sejam de fato significativos à esses processos.

Com base nessas premissas, debates e inquietações sobre como trabalhar a alfabetização, qual método deve ser utilizado, qual é o mais eficaz, e qual a melhor forma de alfabetizar, sempre existiram na história da educação e estão presentes até hoje nos espaços escolares. Nesse contexto, há quem defenda as correntes construtivistas, em detrimento das ditas tradicionais com seus métodos sintéticos e analíticos.

Os métodos de alfabetização se caracterizam por dois grandes grupos: os sintéticos e os analíticos. Nesse sentido, o ponto de partida para orientação da alfabetização, se concentra na unidade de análise inicialmente apresentada durante esse processo.

Nos métodos sintéticos, como é o caso da proposta pedagógica que norteia o software Alfabetização fônica computadorizada, são usados procedimentos que partem de unidades de análises menores para chegar a unidades maiores (da parte para o todo), ou seja, as unidades ensinadas são menores que as unidades de significado da língua em questão. Logo, podem ser apresentadas inicialmente as letras, os sons das letras ou as sílabas partindo para a sua síntese em unidades maiores, formando, palavras, frases e, finalmente, textos. (SEABRA; DIAS, 2011). Estes métodos partem do princípio de codificar e decodificar o código alfabético e ortográfico para depois compreender o texto com um todo.

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O método fônico que corresponde por exemplo ao método sintético que o software utiliza, tem como base o fonema, já o método alfabético muito utilizado em outras abordagens, principalmente “tradicionais” tem como base a letra, e o silábico tem como base, a sílaba. Estes são exemplos claros de métodos denominados sintéticos. Em síntese, o método sintético consiste em sintetizar sequências, mostrar primeiro as letras e ensinar suas correspondências com sons para depois ensinar a compor com elas, as sílabas e depois as palavras.

Já os métodos analíticos em um processo contrário, partem do todo para as partes menores, ou seja, das palavras, frases e do texto, até chegar as menores unidades sonoras que são as letras, e rompem radicalmente com a decifração. Segundo Seabra e Dias (2011) nesses métodos, “as unidades apresentadas inicialmente são unidades de significado, sejam elas palavras, frases ou textos (p.307). Assim, os métodos analíticos partem de unidades de maior significado, sem um foco primário sobre as unidades menores, ou seja, do todo para a parte. Embora pouco se utilize ou fale, também compõem esse grupo os métodos de sentenciação e palavração. Barbosa (1994, p. 46) sintetiza da seguinte maneira esses dois métodos:

No caminho sintético o processo da leitura é a soma dos elementos mínimos – o fonema ou a sílaba, o aprendiz aprende a palavra pela somatória das palavras, a frase e o texto. O analítico parte da significação da língua – palavra, frase, conto. E por uma operação de análise, a palavra é segmentada em seus elementos mínimos: o fonema ou a sílaba.

Nessa perspectiva, levando em consideração a unidade mínima de análise na relação entre fala e escrita, percebemos que no método global a unidade mínima é a palavra, no silábico unidade mínima é a sílaba, e no fônico ou fonético a unidade mínima é o fonema.

Nos primeiros séculos de ensino de leitura e escrita, havia um predomínio de instruções denominadas sintéticas, conforme descrição anteriormente. O método mais usado era o método alfabético, iniciado com o ensino das letras e seus nomes.

O método fônico nasceu provavelmente no século XVI com educadores alemães e parte do entendimento que, crianças na fase de alfabetização enfrentam dificuldades em fazer as correspondências entre fonemas e grafemas. Esta proposta à alfabetização segundo Seabra e Dias (2011) ensina como parte fundamental da sua prática um ensino explícito e sistemático das correspondências grafofonêmicas e metafonológicas.

A correspondência grafofonêmica ou grafofônica define as relações de correspondência entre letras (grafemas) e fonemas, esses ocorrem na modalidade oral da língua, enquanto que as letras ocorrem na modalidade escrita. Assim as correspondências grafofonêmicas são utilizadas para decodificar o texto, enquanto as metafonológicas envolvem o desenvolvimento de habilidades de consciência fonológica, que se refere à “habilidade de discriminar e manipular os segmentos da fala, ou seja, palavras, rimas, aliterações, sílabas e fonemas, tem se mostrado especialmente importante para o sucesso na aquisição da leitura e da escrita competentes” (CAPOVILLA et al. 2004, p.56).

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Enquanto o ensino das correspondências grafofonêmicas é considerado fundamental desde o início do método fônico, o desenvolvimento da consciência fonológica é mais recente, tem sido incentivado principalmente a partir do século XX. Sua importância tem ganhado espaços nas discussões atuais e está sendo defendida por muitos autores inclusive Magda Soares. Tal importância se justifica visto que, quando a criança consegue perceber que a fala é segmentável em sons e que esses sons são mapeados pela escrita, passa a usar um sistema gerativo que converte a ortografia em fonologia, o que possibilita a leitura de qualquer palavra nova, desde que envolva correspondência grafofonêmica regular. Este estágio alfabético é que possibilita o desenvolvimento posterior do estágio ortográfico, ou seja, o desenvolvimento da consciência fonológica e da leitura e escrita alfabética, que usam a de/codificação, sendo um passo inicial necessário para o desenvolvimento pleno da competência em leitura e escrita. (CAPOVILLA; CAPOVILLA , 2004).

Sobre a importância da consciência fonológica Soares (2016a, 2016b), afirma que entender que o que se escreve são os sons das letras, e que esses sons são segmentados, é uma grande dificuldade das crianças em fase de alfabetização, daí surgem as dificuldades que elas apresentam em discriminar, segmentar e manipular de forma consciente os sons da fala, que são partes constituintes da aquisição da leitura e escrita. Nesse sentido, Seabra e Dias (2011) infere que “esta dificuldade, porém, pode ser diminuída significativamente com a introdução de atividades explícitas e sistemáticas de consciência fonológica, durante ou mesmo antes da alfabetização” (p. 311).

Segundo Capovilla e Capovilla (2000), a consciência fonológica refere-se tanto à consciência de que a fala pode ser segmentada quanto à habilidade de manipular tais segmentos e se desenvolve gradualmente à medida que a criança vai tomando consciência do sistema sonoro da língua, ou seja, de palavras, sílabas e fonemas como sendo unidades identificáveis. Ainda nesse sentido os autores nos trazem que as instruções de consciência fonológica têm efeitos positivos sobre a aquisição de leitura e escrita, o que também é defendido fortemente por Soares (1998, 2003, 2004, 2016a).

Sintetizando essas idéias temos que, abordagens fônicas usualmente propõem o ensino explícito e sistemático, com grau crescente de dificuldade das habilidades de decodificação grafofonêmica e de codificação fonografêmica, paralelamente ao trabalho para desenvolvimento da consciência fonológica.

Por sua vez, o método global, também denominado ideovisual, nasceu provavelmente no século XVII, e foi difundido nas escolas brasileiras em meados do século XX através dos PCN de 1997. Esse método analítico pressupõe que a aprendizagem da linguagem escrita se dê pela identificação visual da palavra. Com base na Gestalt, a proposta desse método é que seria mais eficaz ensinar a palavra como um todo às crianças, sem focalizar unidades menores, pois pressupõe que o todo é maior que a soma das partes, ou seja, que a informação contida na unidade total de significado é maior do que a soma das informações contidas separadamente nos elementos menores. Nessa perspectiva infere-se que a forma global das palavras forneceria dicas importantes aos leitores iniciantes. Em tal método considera-se que a aprendizagem de leitura e escrita só pode ocorrer a partir de unidades que sejam significativas à criança. Assim, partem das unidades maiores como palavras, textos, parágrafos, sentenças ou palavras-chave (como no método de Paulo Freire) e portanto significativas.

A partir desse entendimento pressupõe que, em um segundo momento, o aluno chegaria a uma compreensão das unidades menores que compõem as palavras, porém sem necessidade de instrução sistemática e explícita para isso, o que se contrapõe fortemente aos métodos sintéticos como no caso do fônico que prevê um desenvolvimento estruturado e sistemático. (SEABRA; DIAS, 2011).

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Para os defensores do método global, o conhecimento das correspondências letra-som seria adquirido naturalmente pelas crianças, após o reconhecimento total da palavra estar bem estabelecido. Logo o desenvolvimento da consciência fonológica da criança aconteceria implicitamente no processo de alfabetização ou letramento. Goodam (1976, 1986) sustenta a visão de que as idéias do método global são progressistas e sensíveis às necessidades das crianças e buscam desenvolver a criatividade destas, permitindo a elas próprias “descobrirem” os princípios subjacentes à leitura e à escrita.

Para Soares (2016a), indiferente porém da orientação adotada, o objetivo tanto em métodos sintéticos quanto em métodos analíticos é limitadamente a aprendizagem do sistema alfabético-ortográfico da escrita que, embora tenham sido considerados opostos e até incompatíveis inserem-se no mesmo paradigma pedagógico e psicológico: o associacionismo.

Apesar de diversos outros métodos de alfabetização terem surgido ao longo dos anos, um grande debate ocorreu nos contextos educacionais e clínicos entre os métodos sintéticos e o método global. Com o surgimento do construtivismo e com a difusão do letramento em meados da década de 80 essa disputa se estabeleceu entre os métodos ditos tradicionais (sintéticos e analíticos) e o construtivismo. Recentemente com a ampliação dessa discussão, por vários autores, tanto brasileiros como estrangeiros, e a partir de vários estudos esse debate está concentrado entre o método fônico e o construtivismo. Esse debate tem ocorrido internacionalmente já há algumas décadas e no Brasil tem se intensificado nos últimos anos, (SEABRA; DIAS, 2011); (SOARES, 2003, 2004, 2016a), como discutiremos a seguir.

Em meados de 1980, via-se no método a solução para o fracasso na alfabetização, após esse período o construtivismo surge como também, uma alternativa de combate a esse fracasso. Com isso propunha-se que a solução para combater os altos índices de reprovação na aprendizagem inicial da língua escrita, seria não um novo método, mas uma nova concepção do processo de aprendizagem da língua escrita (SOARES, 2016a).

Com o construtivismo, descobriu-se que o aluno era quem iria construir sua aprendizagem, por meio da interação com situações reais de leitura e escrita, e que esse processo deveria partir das unidades que fizessem significado para o mesmo. Essa revolução conceitual foi fortemente influenciada pelas fases psicogenéticas de desenvolvimento da leitura e escrita de Emilia Ferreiro adotadas na década de 80 como psicogênese da língua escrita, que tomava como ponto de partida as fases de desenvolvimento piagetianas. A abordagem apresentada por ela, concebida internacionalmente também como cognitivismo ganhou força no Brasil como construtivismo. (SOARES, 2003, 2004)

Segundo Soares (2004) a perspectiva psicogenética, alterou profundamente a concepção do processo de construção da representação da língua escrita por parte da criança, que deixa de ser considerada como dependente de estímulos externos para aprender o sistema de escrita. Nessa concepção a criança passa a ser considerada um sujeito ativo capaz de progressivamente (re) construir esse sistema de representação, interagindo com a língua escrita em seus usos e práticas sociais, isto é, interagindo com material “para ler”. Nesse sentido se diferencia das ditas tradicionais adotadas por muitos métodos, que caracterizariam a criança “pronta” ou “madura” para ser alfabetizada.

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De acordo com Ferreiro e Teberosky (1999) em suas concepções de apropriação da escrita, é partir dessa interação com situações reais e significativas de leitura e escrita, que o aluno vai formulando hipóteses de como se dá esse processo, e com confrontamento dessas hipóteses ele se apropria da leitura e escrita. Dessa forma a partir dessa interação o aluno vai apropriando naturalmente da leitura e escrita, o que está sendo muito contestado ultimamente pelo fato de, a escrita ser uma invenção e construção social que não pode ser aprendida sem que haja uma instrução sistemática para isso, como ocorre diferentemente na aquisição da fala. (SOARES, 2016a).

O construtivismo defende uma alfabetização contextualizada e, portanto, significativa que deve dar-se por meio da transposição didática das práticas sociais de leitura e escrita para o contexto da sala de aula. Segundo essa proposta é por meio da imersão às práticas sociais de leitura que a criança começa a se organizar para apreender o significado deste objeto. Segundo Soares (2003) “interagindo com a escrita, a criança vai construindo o seu conhecimento, vai construindo hipóteses a respeito da escrita e, com isso, vai aprendendo a ler e a escrever numa descoberta progressiva”. (p.17). A autora reforça em acordo com essa proposta, que é assim mesmo que as pessoas aprendem, não apenas a ler e escrever, mas é assim que se aprende qualquer coisa: interagindo com o objeto de conhecimento, mas defende que somente a interação não é suficiente para mediar a apropriação por parte da criança sobre o objeto do conhecimento.

Seguindo esses pressupostos é inegável afirmar que, as descobertas da psicogênese e do construtivismo trouxeram contribuições significativas que marcaram a educação e o processo de ensino e aprendizagem dos indivíduos. Vale ressaltar que esse fenômeno não é um novo método de alfabetização, e sim como “se auto proclama uma revolução conceitual”. (SEABRA; DIAS, 2011, p. 314). Nesse sentido é preciso ter claro que o construtivismo não propõe um novo método, mas ao contrário disso, torna inadmissível um método nos processos de alfabetização e letramento. Com isso, nesse novo quadro teórico e conceitual, os métodos sintéticos e analíticos, agora qualificados como “tradicionais”, são rejeitados por contrariarem tanto o processo psicogenético de aprendizagem da criança quanto a própria natureza do objeto dessa aprendizagem, a linguagem escrita. (SOARES, 2016a). Essa “desmetodização” é abordada pela autora como sendo “a desvalorização do método como elemento essencial e determinante no processo de alfabetização” (p.22).

Em outras palavras ainda conforme a autora, privilegiando a faceta psicológica da alfabetização ao adotar tal concepção, obscureceu-se sua faceta lingüística, fonética e fonológica e passou-se a defender indiscutivelmente a idéia de que seria incompatível com o paradigma conceitual psicogenético a proposta de métodos de alfabetização. Nesse contexto a palavra métodos adquiriu uma conotação negativa, quando se fala em “método” de alfabetização identifica-se, imediatamente, “método” com os tipos “tradicionais” de métodos – sintéticos e analíticos (fônico, silábico, global etc.) (SOARES, 2003, 2004). Com isso frequentemente manuais didáticos, cartilhas, artefatos pedagógicos recebem inadequadamente a denominação de métodos de alfabetização. (SOARES, 2004, 2016 a).

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Segundo Soares (2003, 2004, 2016 a), essa forma com que o construtivismo foi difundido e interpretado nos espaços escolares, fizeram com que a alfabetização perdesse suas especificidades, gerando essa desmetodização do ensino. Esse fato trouxe várias conseqüências negativas para os contextos educacionais, vislumbradas em altos índices de fracasso escolar na aquisição da leitura e escrita. Não estamos dizendo que o construtivismo foi a causa desse fracasso, mas conforme afirma Soares (2003, 2004) a forma com que as pessoas o interpretaram e o difundiram corroboraram e muito para isso. Seguindo essa perspectiva, a autora esclarece que a perda da especificidade da alfabetização foi uma conseqüência errônea dessa mudança de concepção da alfabetização, argumentando que:

Por equívocos e por inferências falsas, passou-se a ignorar ou a menosprezar a especificidade da aquisição da técnica da escrita. Codificar e decodificar viraram nomes feios. Aí é que está o erro. Ninguém aprende a ler e a escrever se não aprender relações entre fonemas e grafemas para codificar e para decodificar. Isso é uma parte específica do processo de aprender a ler e a escrever. Lingüisticamente, ler e escrever é aprender a codificar e a decodificar. (SOARES, 2003, p.17).

Com o surgimento do movimento construtivista e suas interpretações, falsas inferências e equívocos foram tomadas como base dos processos de alfabetização, para Soares (2003), dentre elas destaca-se a de que, “se for adotada uma teoria construtivista, não se pode ter método, como se os dois fossem incompatíveis. Ora, absurdo é não ter método na educação. Educação é, por definição, um processo dirigido a objetivos” (p.18). Nesse sentido a autora ainda complementa que:

[...] Se existem objetivos, temos de caminhar para eles e, para isso, temos de saber qual é o melhor caminho. Então, de qualquer teoria educacional tem de derivar um método que dê um caminho ao professor. [...] É uma falsa inferência achar que a teoria construtivista não pode ter método, assim como é falso o pressuposto de que a criança vai aprender a ler e escrever só pelo convívio com textos. O ambiente alfabetizador não é suficiente. (SOARES, 2003, p.18)

Nessa perspectiva conforme Soares (2003), não basta que a criança esteja convivendo com muito material escrito, é preciso também orientá-la sistemática e progressivamente para que possa se apropriar do sistema de escrita. Isso é feito juntamente com o letramento, com textos reais, que tenham significados para o aluno. Pois nesse processo de aquisição da língua escrita, alfabetização e letramento se complementam em suas especificidades.

O resultado dessas novas concepções que foram adotados com o fenômeno construtivista segundo Soares (2003, 2004), foi um fracasso no processo de aquisição inicial da escrita. O Brasil nesse período conforme Seabra e Dias (2011), apresentou um dos piores índices de alfabetização na PISA em 2000, 2003, 2006, 2009, chegando a ficar em último lugar no ano de 2000 entre 32 países. Esse resultado negativo que legitimava o fracasso na alfabetização brasileira, também foi percebido nas avaliações nacionais da SAEB, onde foi constatado um declínio no desempenho entre os anos de 1995 a 2005, período em que o construtivismo foi institucionalizado nas escolas. (SEABRA; DIAS, 2011). Para Soares (2003, 2004), isso se deu devido à desinvenção que alfabetização sofreu com esses ideais, as escolas se apegaram demais as teorias e deixaram de lado os métodos.

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O construtivismo adotado também nos países estrangeiros como Estados Unidos trouxe os mesmos resultados que vimos no Brasil: as crianças não estavam aprendendo a ler e escrever, isso pelo mesmo motivo da aqui, as crianças eram postas em interação total com a língua escrita mas sem um ensino sistemático do sistema convencional de leitura e escrita. (SOARES, 2003). Em decorrência disso nos EUA, foram feitos estudos como o Reading Panel, que analisou aproximadamente 1.800 pesquisas a respeito da alfabetização feitas naquele país e descobriram que as crianças aprendem a língua escrita quando se trabalham sistematicamente as relações entre fonema-grafema, ou seja, aprendizagem do sistema convencional de leitura e de escrita: a alfabetização de forma sistemática.

A partir desses pressupostos vários países como a França, Inglaterra e Canadá, também têm adotado o método que os Estados Unidos denominou com phonics a fim de superar o fracasso na aquisição da leitura e escrita. O termo em português quer dizer: fonismo, substantivo, mas que nós brasileiros, usamos fônico, adjetivo, por não ter palavra na nossa tradução que corresponda ao significado desse termo (SOARES, 2003). Segundo Soares (2003, p.21), em decorrência desse fracasso e com base nos estudos feitos “o que os especialistas americanos defenderam é que era necessário alfabetizar trabalhando-se as relações fonema/grafema, e que as escolas deveriam escolher um método para isso, desde que esse método trabalhe a aquisição e aprendizagem do sistema alfabético ortográfico o phonics”, e não que o antigo método fônico, da forma com que é concebido no Brasil, seria o melhor e mais eficaz método para esse fim.

Essa compreensão contradiz, o que muitos tomaram como verdade absoluta como sendo o método fônico “o caminho” certo. Esse fato é também constatado nos NLS (Novos Estudos de Letramento) de Street (2013), onde apontam que a utilização dos métodos fônicos sintéticos, na Inglaterra não se mostraram eficazes. Segundo os dados desse estudo, após esse país ter adotado o método fônico sintético “em termos de comparação internacional, uma proporção superior à metade das crianças na Inglaterra apresentava baixo desempenho” (p.57). Ainda sobre esse assunto Soares deixa claro que:

As pessoas estão insatisfeitas com o construtivismo, as denúncias já estão sendo feitas e começam a surgir iniciativas no sentido de corrigir essa situação que considero preocupante. [...] Porém, é que esse movimento está indo em direção ao método fônico.[...] Quando falo em método fônico, refiro-me àquele método do 'casado', em que vinha uma letra de um lado e casava com a letra de outro lado, como aquelas antigas cartilhas fônicas. Mas certamente não é disso que os especialistas estão falando: o que se pretende é voltar a orientar as crianças na construção das relações fonema/grafema. (2003, p.20)

É fato que o fracasso na alfabetização vem acontecendo nas escolas brasileiras há décadas e sempre existiu, o que muda são as formas com que esse fracasso era revelado. Antes do construtivismo, esse problema era legitimado através da evasão e repetência. O aluno reprovava várias vezes, por não adquirir o domínio da escrita nas séries iniciais, hoje com a implantação dos ciclos e a progressão continuada o aluno chega à quarta série analfabeto, e em inúmeros casos essa realidade se estende até os anos finais do ensino fundamental, conforme nos traz Soares (2003).

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Para a autora isso se dava porque, no primeiro caso tínhamos métodos que não estavam fundamentados em teorias psicológicas, psicolingüísticas nem lingüísticas, logo o aluno não aprendia, hoje temos uma ótima teoria construtivista, porém, inferiu-se que ela seja incompatível com algum método. Nesse sentido a autora conclui que antes das concepções construtivistas haviam vários métodos, mas não uma teoria, “hoje acontece o contrário: todos têm uma bela teoria construtivista da alfabetização, mas não têm método, [...] é preciso ter as duas coisas: um método fundamentado numa teoria e uma teoria que produza um método” (p.17).

Alfabetização, no estado atual em que está sendo discutida com relações nas ciências linguísticas, da psicologia cognitiva, da psicologia do desenvolvimento, é um processo complexo que envolve vários componentes, ou facetas, e demanda diferentes competências. (SOARES, 2016a). Nesse sentido os métodos se tornam uma questão, pois segundo Soares (2016a) derivam de concepções diferentes sobre o objeto da alfabetização, isto é, sobre o que se ensina. Quando se ensina a língua escrita conclui-se que sua aprendizagem inicial é um fenômeno extremamente complexo, envolve duas funções da língua escrita: ler e escrever que, se igualam em alguns aspectos e diferenciam-se em outros. É composto de várias facetas, consideradas conforme a autora salienta: faceta linguística, faceta interativa e faceta sociocultural. São facetas que se distinguem quanto à sua natureza, ao mesmo tempo em que se complementam como facetas de um mesmo objeto. Conforme a especificidade de cada faceta argumenta a autora:

Na faceta “linguística”, o objeto de conhecimento é essencialmente linguístico – o sistema alfabético-ortográfico de escrita. As duas outras facetas implicam outros objetos de conhecimento que vão além do linguístico: a faceta interativa, o objeto de conhecimento é o uso da língua escrita para a interação, a compreensão e a produção de textos, o que envolve, para além da dimensão linguística, elementos textuais e pragmáticos, não exclusivamente linguísticos; na faceta sociocultural, o objeto do conhecimento são os usos e as funções da língua escrita em diferentes contextos sociais e culturais e em diferentes eventos de letramento, estando presentes, portanto, inúmeros elementos não lingüísticos”. (SOARES, 2016a, p.38)

O problema que se têm estabelecido com os métodos e teorias vinculadas a aprendizagem e o desenvolvimento da leitura e escrita ao longo dos anos, é que muitos especialistas têm estudado e investigado esse processo de forma fracionada, isoladamente, como objeto de determinadas ciências para designar componentes. Por isso a tanta discrepância e aversão entre esses métodos e teorias, e com isso se torna complexo a discussão em cima de qual método ou teoria seja correta, pois cada um aborda facetas diferentes, e apresentam contribuições para as facetas o qual elas defendem, ignorando ou marginalizando as demais. O que não deveria acontecer, uma vez que a aquisição da língua escrita é composta por essas três facetas, que devem ser trabalhadas juntas, através da alfabetização e do letramento (SOARES, 2016a, 2016b).

Nesse sentido a autora argumenta que: “As propostas e métodos para a aprendizagem inicial da língua escrita restringem-se, em geral, a uma parte do processo, equivocadamente considerando que a parte é o todo da aprendizagem inicial da língua escrita” (p.33). A autora sintetiza as especificidades de cada faceta da seguinte forma: no processo de aquisição da escrita “se aprende a codificar e decodificar a língua escrita (parte da faceta lingüística), para fazer alguma coisa com isso, interagir com outros por meio da escrita nas situações em que a escrita é a forma de comunicação (faceta interativa). E tudo isso dentro de um contexto cultural que tem lá suas idéias sobre a escrita, a utiliza com determinadas funções, exige isso e aquilo das pessoas, que é a terceira faceta (sociocultural)”. (SOARES, 2016b)

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Quando se trata da aprendizagem da língua escrita, a autora enfatiza que não se deve tomar um fenômeno multifacetado de forma fragmentada, como se as outras partes não lhe fossem importantes ou complementares, nesse processo de aquisição da língua inicial escrita essas facetas se somam para compor o todo que é o produto desse processo: a alfabetização e o letramento. Assim, um só componente (faceta) do processo de aprendizagem da língua escrita não resulta no produto: a criança alfabetizada e inserida no mundo da cultura escrita, ou seja a criança letrada. Nesse sentido inferências relacionadas à forma de como a criança aprende, requer que, diferentemente do que vem acontecendo, se considere a aprendizagem da língua escrita como um todo, e também a especificidade de cada uma de suas facetas, as diferentes implicações metodológicas que decorrem dos princípios e teorias que esclarecem cada uma. (SOARES, 2016a).

Em uma discussão sobre a aquisição da leitura escrita Soares (2016a), salienta que, embora esse processo seja multifacetado, a faceta linguística se constitui o alicerce das duas outras facetas porque, embora a aprendizagem inicial da língua escrita deva incluir habilidades de compreensão e de produção de texto escrito, e ainda de uso da língua escrita nas práticas sociais que ocorrem em diferentes contextos de sociedades letradas, estas habilidades, que constituem as facetas interativa e sociocultural, dependem fundamentalmente do reconhecimento na leitura e da produção na escrita. Tolchinsky (2003, apud Soares, 2016 a, p.36), aborda que:

[...] aprender o sistema de escrita é apenas um fio na teia de conhecimentos pragmáticos e gramaticais que as crianças precisam dominar a fim de tornarem-se competentes no uso da língua escrita, mas é uma aprendizagem imperativa, e promove as outras.

Como dito anteriormente, o que tem acontecido com as concepções construtivistas, é que a alfabetização tem perdido suas especificidades, com isso não se prevê ensino sistemático e explícito da faceta linguística da alfabetização, no pressuposto de que a criança descobrirá o princípio alfabético e se apropriará do sistema alfabético de escrita e de suas convenções por processo semelhante àquele pelo qual se apropriou da cadeia sonora a fala usando-a em eventos de letramento autênticos que respondem a suas necessidades.

Nesse sentido as discussões ao longo do tempo relacionadas aos métodos e recentemente as teorias, têm se centrado entre colocar ou não o foco na faceta lingüística da alfabetização.

Para Soares (2003, 2004, 2016 a, 2016 b), a alfabetização é sistemática e progressiva através da faceta linguística, por isso é importante que a alfabetização tenha “métodos” que possuam bases teóricas, psicológicas e linguísticas, por se tratar da aprendizagem da técnica e domínio de um sistema de representação convencional de leitura e escrita, que envolve as relações fonema/grafema, bem como o uso dos instrumentos com os quais se escreve. Nesse sentido, a autora defende que há necessidade de se adotar múltiplos métodos (ou procedimentos) durante esse processo, diferenciados segundo a faceta que cada um busca desenvolver para métodos de alfabetização e métodos de letramento que sejam embasados em teorias e que diminuam as dificuldades que o aluno enfrenta.

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A autora não enfatiza que é preciso ter um método específico de trabalhar a alfabetização, mas que devido à especificidade das facetas que envolvem esse processo, o importante é se basear em métodos, principalmente na faceta linguística que se dá de forma sistemática. Idéia essa que é indiscutivelmente negada por muitos defensores do construtivismo, desses princípios surgem tamanha aversão alguns métodos, principalmente os sintéticos como no caso dos fônicos ou fonéticos. A autora não defende que tenhamos que deixar de lado as teorias, principalmente o construtivismo, ao contrário disso, enfatiza sua importância, pois de fato o aluno constrói seu conhecimento, mas ela nos diz, que mesmo diante disso é preciso que os professores entendam como se dá o processo de aquisição da leitura e escrita, assim desenvolvam seu papel de mediadores do conhecimento, facilitando a descoberta do aluno em relação a consciência fonológica e assim se aproprie da tecnologia escrita.

Segundo Soares (2013, 2016a, 2016b) devemos perceber que o foco nos processos de leitura e escrita, não deve estar centrado sobre os métodos e suas teorias, mas sim, deve estar em como a criança se apropria da língua escrita, pois como atesta a autora, elas não aprendem de forma homogênea, pelo contrário, aprendem através de variadas formas, e não existe um método que seja eficaz para todas as crianças devido as suas especificidades enquanto sujeitos. Em contrapartida deixar de utilizá-los nos processos de alfabetização, também podem trazer prejuízos à aprendizagem do aluno, pois esse processo é sistemático.

Nesse sentido Soares (2013, 2016b) argumenta que as pessoas não se dão conta de como é difícil para criança, aprender um sistema de representação que é bastante abstrato, pois trata de representar os sons da fala em grafemas, e a criança precisa descobrir isso, para que a criança vivencie esse processo, tão complexo. Ainda segundo a autora, tomando como base a teoria histórico-social de Vygotsky (1998), salienta que é necessário que o professor tenha conhecimento disso, e de como se dá esse processo, para atuar na ZDP (zona de desenvolvimento proximal), e a ajudá-la na assimilação das estruturas grafema/fonema, por meio do desenvolvimento da consciência fonológica proporcionando saltos qualitativos em seu aprendizado. Nesse sentido Moraes também argumenta trazendo as seguintes contribuições:

É impossível imaginar que a criança aprenda por si só a chave do enigma e imaginar que haja alguém que defenda que aprendizagem da leitura não necessita de ensino, argumentando que a criança, senhora de uma inteligência ativa, construtora de hipóteses, rapidamente descobre, sem ajuda de professor, qual é o elo que liga o alfabeto à fala. Na verdade esse elo é altamente abstrato. (2013, p. 31).

É através dessas concepções sobre métodos e teorias, que a autora pauta suas concepções de alfabetização e letramento. Nesse sentido percebe-se que os métodos e as teorias não se excluem, mas se complementam e dialogam entre si, cada um com sua contribuição, para propiciar a essa diversidade de sujeitos uma aprendizagem significativa na aquisição inicial da língua escrita.

Para Soares, seguindo essas perspectivas, métodos para a aprendizagem inicial da língua escrita ganham um novo entendimento, onde esses devem ser oriundos de fundamentos e princípios teóricos, nesse sentido sendo entendidos como:

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[...] conjuntos de procedimentos que, com base em teorias e princípios linguísticos e psicológicos, orientam essa aprendizagem, em cada uma de suas facetas. No entanto, métodos não atuam autonomamente, sem limitações ou obstáculos; constituídos de procedimentos de interação entre alfabetizador (a) e alfabetizandos, efetivam-se na inter-relação entre participantes diferenciados, em situação de aprendizagem coletiva, em um contexto escolar inserido em determinada comunidade socioeconômica e cultural. Ou seja: métodos não constroem um processo linear, mas, como consequência de muitos e vários fatores intervenientes, configuram-se como um processo de grande complexidade (SOARES, 2016a, p.51-52)

Nessa perspectiva podemos perceber de acordo com a autora que, as teorias, os princípios linguísticos e psicológicos, devem fundamentar os “métodos” (procedimentos) que serão adotados, embora tenham que deixá-los suficientemente flexíveis para que, na prática pedagógica possam superar as dificuldades interpostas por fatores externos que interfiram na aprendizagem dos alfabetizandos. Assim é imprescindível que desses princípios e teorias que são adotados nos espaços escolares, se “produzam métodos que orientem o desenvolvimento e a aprendizagem da faceta linguística da alfabetização, recorte essencial da aprendizagem inicial da língua escrita e da introdução da criança à cultura letrada (SOARES, 2016 a, p. 53). Nesse sentido, as teorias principalmente o construtivismo e os métodos, ao contrário do que muitos pensavam ser impossível, passam a caminhar juntos no processo de ensino e aprendizagem da aquisição inicial da escrita.

Com base nesses pressupostos podemos pensar quais os caminhos percorrer para mediar os processos de alfabetização e letramento, a fim de que possamos conduzir os alunos por um processo que seja de fato significativo, e com isso contribua na aprendizagem e desenvolvimento desse aluno. Tais entendimentos se constituíram de extrema importância para pesquisa e principalmente para o desenvolvimento do produto, por se tratar da parte principal que o compõe: a proposta pedagógica apresentada por ele, ou seja, a tarefa.

No capítulo a seguir, abordaremos sobre a história e os caminhos da educação inclusiva, afinal ideais de inclusão é o que nos sensibiliza a pensar sobre a exclusão a que muitas pessoas com deficiência, inclusive as com SD foram e ainda têm sido submetidas diariamente.

Tecnologia e educação

A partir da década de 1990, com o processo de globalização, o desenvolvimento das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) teve um salto de relevância nas atividades diárias em todas as instâncias sociais, o que reverberou também nas práticas educativas dentro dos espaços escolares. Com o advento da internet e das TIC foram surgindo novos desafios na área da educação, assim como surgiram formas diferenciadas de interação e aprendizagem. Segundo Galvão Filho (2012):

É fácil perceber que o mundo, com todas as suas representações sociais e culturais, vem sendo profundamente modificado com o advento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Os diferentes e inovadores ambientes de interação e aprendizado possibilitados por essas tecnologias surgem como fatores estruturantes de novas alternativas e concepções pedagógicas (p.65)

Silvio (2000, p. 48), salienta que “a característica essencial de uma tecnologia de uma sociedade do conhecimento é a de ser um prolongamento das faculdades intelectuais do ser humano”. Nesse sentido, para o autor as TIC podem contribuir de forma significativa no desenvolvimento cognitivo do ser humano, uma vez que as TIC estão atreladas as mais variadas formas de conhecimento produzidas na sociedade.

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Segundo Santaella (2003, p.23), “as novas tecnologias da informação e comunicação estão mudando não apenas as formas do entretenimento e do lazer, mas potencialmente todas as esferas da sociedade”. Dessa forma para a autora o uso das tecnologias têm sido entendidas para além de um caráter meramente de entretenimento e diversão, e assumido um papel mais cultural, marcando uma fase histórica da cultura dos sujeitos da sociedade atual, reverberando em novos ambientes de interações sócio-culturais e também de aprendizagens.

Para Galvão Filho (2012) as TIC, são concebidas como instrumentos e signos da cultura do aluno, que reverberam nos processos de aprendizagem e desenvolvimento. Segundo o autor:

O ser humano conseguiu evoluir como espécie graças à possibilidade de ter descoberto formas indiretas, mediadas, de significar o mundo ao seu redor, podendo, portanto, por exemplo, criar representações mentais de objetos, pessoas, situações, mesmo na ausência dos mesmos. Essa mediação pode ser feita de duas formas: através do uso dos signos e do uso dos instrumentos. Ambos auxiliam no desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. (GALVÃO, 2004, p. 87).

Nessa perspectiva segundo Galvão Filho (2012), as TIC adquirem um papel importante na aprendizagem e desenvolvimento dos sujeitos, uma vez que auxiliam na representação do objeto do conhecimento (signos) e atuam também como instrumento de mediação entre o aluno e esse objeto. Nesse sentido as TIC, são concebidas como instrumentos que favorecem a apropriação dos signos da cultura do indivíduo, como no caso da língua escrita, que como vimos é um signo constituído historicamente. Com isso proporcionam a mediação que impulsiona o desenvolvimento das suas funções superiores, o com que faz com que os sujeitos internalizem e se apropriem desse objeto do conhecimento, a língua escrita. Com essas proposições o autor defende que:

Já como exemplo de signos presentes no nosso tempo, necessários para essa mediação, talvez seja possível situar todas as novas possibilidades proporcionadas pelas Tecnologias de Informação e Comunicação, como os ambientes virtuais de interação e aprendizagem, enquanto importante realidade de nossa cultura, e cuja apropriação responsável e crítica a tornaria um meio concreto para a formação do sujeito e para a sua inclusão social (LÉVY, 1999 apud GALVÃO FILHO, 2012, p.70).

As tecnologias têm sido cada vez mais implementadas nos contextos educativos, pois refletem muito do universo social e cultural em que os alunos encontram-se inseridos. Para vários autores como Sampaio e Leite (2008), é importante que a escola relacione os conteúdos escolares aos contextos do aluno para que de fato o ensino seja mais significativo para o mesmo, o que promove mais chances de aprendizagens. Com base nesses pressupostos, Sampaio e Leite (2008) estabelecem uma relação entre as TIC e o universo do aluno, uma vez que, como vimos, elas têm sido instrumentos culturais. Nas palavras dos autores: “Para realizar a tarefa e relacionar o universo do aluno ao universo dos conteúdos escolares, e com isso contribuir para a formação básica do cidadão/trabalhador, o professor precisa também utilizar as tecnologias que hoje são parte integrante da vida cotidiana” (p. 74). Kenski (2011, p. 103) complementa sobre a importância do uso das tecnologias na gestão da aprendizagem: “O uso criativo das tecnologias pode auxiliar os professores a transformar o isolamento, a indiferença e a alienação com que costumeiramente os alunos frequentam as salas de aula, em interesse e colaboração, por meio dos quais eles aprendam a aprender, a respeitar, a aceitar, a serem pessoas melhores e cidadãos participativos”.

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Nesse cenário as TIC têm sido concebidas como novas formas de aprender, de ensinar, de se relacionar e principalmente de mediar à interação entre o aluno e o objeto do conhecimento. Assim têm sido entendidas como uma nova forma de se chegar ao aluno, fazendo com que as situações de ensino e aprendizagem promovidos na escola sejam significativas, atrativas e interessantes para o mesmo.

Reforçando a importância que as TIC exercem na educação e em suas práticas pedagógicas, Giroto; Poker; Omote (2012) enfatizam que:

As aplicações das TIC para a realização de atividades traz uma série de vantagens, tais como: a individualização do ensino respeitando o ritmo e o tempo de realização de atividade de cada aluno; a flexibilidade que viabiliza o uso de canais sensoriais distintos; a avaliação contínua e dinâmica; a auto avaliação; a manutenção da mesma atividade/exercício de acordo com as necessidades educacionais do aluno; o ajuste do nível de complexidade da atividade; o desenvolvimento de hábitos e de disciplina para sua utilização; a motivação, pois podem ser inseridos temas, cores, figuras, formas que atendem aos interesses dos alunos estimulando-os, de diferentes maneiras, a realizar as atividades propostas, entre outras. (p.21)

As novas tecnologias são ferramentas, e recursos que estão sendo muito utilizadas em variados contextos educacionais, nesse cenário se destacam também os inclusivos. Galvão Filho (2012) infere que as possibilidades tecnológicas hoje existentes, as quais viabilizam essas diferentes alternativas e concepções pedagógicas, para além de meras ferramentas ou suportes para a realização de tarefas, se constituem elas mesmas em realidades que configuram novos ambientes de construção e produção de conhecimentos, que geram e ampliam os contornos de uma lógica diferenciada nas relações do homem com os saberes e com os processos de aprendizagem. Nesse sentido as TIC como ferramentas mediadoras dos processos de ensino e aprendizagem podem ajudar os alunos, principalmente aqueles que apresentam necessidades educacionais específicas a romperem com suas limitações e se desenvolverem. Por esse motivo essas ferramentas têm sido muito incorporadas a práticas inclusivas, principalmente também na educação especial. (GIROTO; POKER; OMOTE, 2012). Conforme enfatiza os autores:

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) apresentam se como promissoras para a implementação e consolidação de um sistema educacional inclusivo, pelas suas possibilidades inesgotáveis de construção de recursos que facilitam o acesso às informações, conteúdos curriculares e conhecimentos em geral, por parte de toda a diversidade de pessoas dentre elas as que apresentam necessidades especiais. (GIROTO; POKER; OMOTE, 2012)

Segundo Giroto; Poker; Omote (2012) a escola tem enfrentado muitas dificuldades na escolarização de seus alunos, e esta situação agrava-se ainda mais quando se trata de alunos com NEE. A presença dessa criança com dificuldades de aprendizagem dentro da sala de ensino regular quer seja por alguma deficiência ou algum outro motivo, tem exigido um conjunto de estratégias e procedimentos de ensino diferentes daquele utilizado em escolas especiais para que de fato essa criança consiga compreender o conteúdo ensinado pelo professor. Assim para os autores “os recursos das TIC devem ser amplamente utilizados a favor da educação de todos os alunos, mas notadamente daqueles que apresentam peculiaridades que lhes impedem ou dificultam a aprendizagem por meios convencionais. (GIROTO; POKER; OMOTE, 2012, p. 17). Nesse sentido os autores enfatizam que:

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Vivemos hoje o vigoroso desenvolvimento de recursos tecnológicos, em especial aqueles propiciados pela microinformática, os quais representam um espetacular panorama de recursos que podem ser utilizados para a escolarização de alunos com as mais variadas necessidades educacionais especiais. As Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) apresentam se como promissoras para a implementação e consolidação de um sistema educacional inclusivo, pelas suas possibilidades inesgotáveis de construção de recursos que facilitam o acesso às informações, conteúdos curriculares e conhecimentos em geral, por parte de toda a diversidade de pessoas dentre elas as que apresentam necessidades especiais. (GIROTO; POKER; OMOTE, 2012, p. 7)

Os autores reforçam que “as TIC em tempo de Educação Inclusiva são uma oportunidade para respeitar identidades e para criar ambientes de aprendizagem em que cada aluno tenha a possibilidade de se sentir útil e participativo”. (p.39). Ainda nessa perspectiva Giroto; Poker; Omote (2012) complementam que:

As TIC tornaram se um elemento imprescindível para a implementação de um sistema educacional inclusivo, pois possibilitam o acesso às informações, acesso aos conteúdos curriculares, bem como a organização diferenciada das atividades de forma a atender as condições e características do aluno, ou seja, às suas especificidades. (p.17)

As TIC na educação inclusiva atuam também como uma forma de “compensação” das dificuldades e deficiências de seu alunado (GALVÃO FILHO, 2012). Nesse sentido Giroto; Poker; Omote (2012) salientam que pesquisas têm demonstrado que o uso sistemático das TIC no processo de ensino e de aprendizagem de escolares estão possibilitando o “desenvolvimento das suas competências de forma a superar barreiras de aprendizagem advindas de condições sociais, sensoriais, intelectuais, neurológicas, motoras ou outras. (p.19).

Nessa mesma perspectiva Galvão Filho (2012) argumenta que as TIC também assumem um papel de Tecnologia Assistiva (TA) para os alunos com deficiências, uma vez que “o próprio computador é a ajuda técnica para atingir um determinado objetivo.” (p.81).

Nesse sentido, Galvão Filho destaca que “as limitações interpostas pela própria deficiência, incluídos aí todos os obstáculos sociais e culturais dela decorrentes, tenderiam a converter-se em sérias barreiras para essa atribuição de sentido aos fenômenos do seu entorno e à própria interação social”. (2012, p. 70). O autor ainda complementa que crianças com deficiência (física, auditiva, visual ou intelectual) “têm dificuldades que limitam sua capacidade de interagir com o mundo. Estas dificuldades podem impedir que estas crianças desenvolvam habilidades que formam a base do seu processo de aprendizagem”. (p.70). Assim para o autor as tecnologias atuam de forma mediadora na constituição de sentidos, e na interação entre a pessoa com NEE e o mundo a sua volta, que como vimos fazem toda a diferença na aprendizagem dos sujeitos, o que consequentemente proporciona o desenvolvimento de funções psicológicas superiores.

É inegável como vimos, a significância que as tecnologias exercem na educação, e principalmente na educação inclusiva. Não obstante a isso, é importante dizer que conforme Giroto; Poker; Omote (2012) enfatizam as TIC por si só, não são garantia de qualidade de ensino, “não garantem a escolarização do aluno” (p.12). Para os autores os professores exercem naturalmente um importante papel na educação, principalmente na inclusiva, e o sucesso durante o processo de apropriação, acarreta à esse profissional um grande desafio também “na adoção de esforços coletivos para a compreensão acerca das TIC e sua aplicabilidade no âmbito educacional”. (p.7).

Conforme no diz Carvalho (2001, p. 67):

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[...] a informática e as demais tecnologias de informação e comunicação não representam um fim em si mesmas. São procedimentos que poderão melhorar as respostas educativas da escola e contribuir, no âmbito da educação especial [...] Dentro desse contexto torna-se imprescindível ao professor o conhecimento sobre as TIC e sobre sua utilização na construção de práticas pedagógicas inclusivas.

Com base nessas discussões que defendem o potencial que as TIC apresentam como instrumentos facilitadores dos processos de ensino aprendizagem, podemos perceber que se fazem muito significativas como ferramentas de apoio a inclusão de estudantes que outrora se encontram excluídos de processos básicos oferecidos pela escola regular, como a alfabetização e o letramento. Dentre esses estudantes excluídos se destacam, os com SD. As TIC nesse cenário se apresentam como recursos de mediação entre esse estudante e o objeto do conhecimento, no caso a língua escrita, atuando como defende Galvão Filho (2009, 2012) como compensação de suas deficiências, como TA que facilitam esse processo, dando sentido e significado por serem instrumentos do universo do estudante e por isso já trazem consigo um pontos muito favoráveis a aprendizagem, como a motivação, a ludicidade.

A seguir abordaremos sobre outro recurso que têm inovado as práticas educativas, a gamificação, e que aliada às novas tecnologias, tem sido muito utilizadas também em softwares educativos, engajando e despertando o interesse dos estudantes, tornado o ensinar e o aprender, algo divertido, interessante e lúdico. Entendemos que esses fatores favorecem uma proposta inclusiva, e que aliados a uma boa proposta pedagógica podem ser muito significativos para alfabetização e letramento de pessoas com SD.

Letramento digital

O advento das novas TIC tem influenciado diversos campos da sociedade, bem como a forma com que as pessoas se interagem, pensam e produzem. Essas influências têm repercutido na forma com que os sujeitos se relacionam também com a leitura e escrita. Das mais variadas formas e contextos sócio-culturais que se constituem na relação dos sujeitos com esse objeto do conhecimento têm surgido os multiletramentos, dentre eles o letramento digital, ou melhor dizendo, os letramentos digitais.

A alfabetização e letramento, se constituem processos diferentes. Enquanto que a alfabetização se trata da apropriação de um código, no caso alfabético, o letramento se trata do uso social que se faz desse código de leitura e escrita alfabética. (SOARES, 1998, 2002), (KLEIMAM, 1995). Podemos então dizer que as práticas e os eventos que envolvem os usos sociais da leitura escrita estão diretamente relacionados com os contextos sociais e culturais em que os sujeitos que se utilizam da leitura e escrita estão inseridos.

É fato que esses contextos estão em constantes mudanças por diversos fatores. Isso implica afirmar que se torna impossível estabelecer uma única definição para o termo letramento, pois dessas mudanças sociais surgem também novas formas de relação com a leitura e escrita, ou seja, novos letramentos. Rezende enfatiza que por conta da “multiplicidade de eventos sociais em que a leitura e a escrita são utilizadas e a multiplicidade de habilidades necessárias para participar competentemente nesses eventos, alguns autores têm proposto o uso do termo letramentos, no plural”. ( 2016, p.97).

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Diante desses pressupostos é importante destacar que a quantidade de eventos sociais de uso da leitura e escrita aos quais as pessoas se expõem, o número de gêneros que circulam nesses diferentes eventos e o fato das práticas sociais de leitura e escrita estarem continuamente em mudança tornam difícil, senão impossível, a tarefa de definir um indivíduo letrado e de se adotar um único conceito para letramento. (REZENDE, 2016). Para Buzato:

Letramento, ou mais precisamente os letramentos, são práticas sociais e culturais que têm sentidos específicos e finalidades específicas dentro de um grupo social, ajudam a manter a coesão e a identidade do grupo, e são aprendidas em eventos coletivos de uso da leitura e escrita, e por isso são diferentes em diferentes contextos sócio-culturais. (2006a, p. 4)

Para Street (2013), pensar o letramento não somente como aquisição de habilidades, mas como prática social, requer reconhecer os múltiplos letramentos que se originam desses contextos sociais, e que caracterizam esse fenômeno, que varia com o tempo e espaço. Dentre os diversos fatores que corroboram para com as mudanças sociais e culturais em suas diversas esferas, as TIC têm ganhado destaque.

As TIC estão em todas as partes e fazem parte do cotidiano dos indivíduos na contemporaneidade. Não há como negar que as práticas de leitura e escrita na atualidade, em sua maioria são mediadas por uma tecnologia digital. Assim, pensar em letramento hoje, envolve considerar a presença das tecnologias digitais em nossas atividades cotidianas. (REZENDE, 2016). Com a evidência dos “nativos digitais”, têm surgido novas demandas sociais de leitura escrita. Lévy (1999) afirma que a cibercultura traz uma mutação na relação com o saber. Essas mudanças ocasionadas pelas novas demandas sociais e culturais decorrente das TICs têm repercutido em novos eventos e práticas de letramento estabelecidas no ciberespaço.

Para Soares (2002) estamos vivendo, hoje, a introdução, na sociedade, de novas e incipientes modalidades de práticas sociais de leitura e de escrita, propiciadas pelas recentes tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede (a web) e a Internet. De acordo com a autora, dessa relação com a tecnologia, (emergente da sociedade atual), com a leitura e escrita, surge o letramento digital.

Ainda hoje é possível encontrar definições que compreendam o letramento digital como a capacidade de ler e escrever por meio das novas mídias. Segundo Rezende (2016) existe ainda “alguns entendimentos de que a simples inclusão do recurso digital em um evento de letramento caracteriza o letramento digital” (p.103). Essas, contudo são visões que empobrecem o verdadeiro sentido e significado do que venha a ser o letramento digital e tem sido amplamente contestada. Baseando-se nesses entendimentos, o letramento digital com frequência tem sido compreendido um conjunto mínimo de capacidades que habilitem o usuário a operar com eficiência os softwares, ou a realizar tarefas básicas de acesso de informações. Essa visão trata-se de uma definição essencialmente funcional e instrumental, uma vez que especifica as capacidades básicas necessárias para realização de certas operações, mas não vai muito além disso. (BUCKINGHAM, 2010).

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Na perspectiva para além do funcionalismo, conforme Buckingham “o indivíduo digitalmente letrado é entendido como aquele que faz buscas eficientes, que compara uma série de fontes e separa os documentos confiáveis dos não confiáveis e os relevantes dos irrelevantes”. (2010, p. 49). Isso implica dizer que o sujeito letrado é aquele capaz de agir de forma crítica e reflexiva diante dos eventos e práticas de leitura e escrita que lhe são proporcionados por meio das tecnologias digitais.

Apesar do letramento digital estar vinculado ao uso social da leitura e da escrita, muitas vezes o termo tem sido utilizado para denominar práticas que se utilizam da tecnologia, sem que se considerem seus impactos sociais e culturais. Nos dias de hoje já se sabe que as definições do letramento digital, vão além de meros aspectos instrumentais e funcionais e se constituem nas relações da língua escrita com o social e cultural. A idéia de que o letramento digital tanto afeta essas relações, quanto é afetado por elas, já é defendida por muitos autores. (BUZATO, 2006), (REZENDE, 2016).

É importante reforçar que o letramento digital, parte das mesmas compreensões que definem o letramento no sentido "tradicional”, porém esse se dá por meio de recursos tecnológicos, logo se trata do uso social da leitura e escrita na web 2.0. De acordo com Braga (2003) o letramento digital é “uma ampliação do escopo do letramento tradicional, no sentido de que as práticas letradas ocorrem no contexto digital”.

Mais que o domínio de uma técnica ou uma tecnologia, o letramento digital diz respeito ao uso crítico e reflexivo que se faz da leitura e escrita nos mais diversos contextos sociais por meio das mídias digitais. Por serem práticas sociais e não variáveis autônomas, os letramentos digitais tanto afetam as culturas e os contextos nos quais são introduzidos, (ou que ajudam a constituir), quanto por eles são afetados, de modo que seus "efeitos" sociais e cognitivos variarão em função dos contextos socioculturais e finalidades envolvidos na sua apropriação. (BUZATO, 2006).

Freitas (2010) nessa perspectiva também abarca definições que compreendem o letramento digital para a além de uma instrumentalidade, destacando suas relações socioculturais com a leitura e escrita. Para a autora o letramento digital diz respeito ao:

Conjunto de competências necessárias para que o indivíduo entenda e use a informação de maneira crítica e estratégica, em formatos múltiplos, vinda de variadas fontes e apresentada por meio do computador-internet, sendo capaz de atingir seus objetivos, muitas vezes compartilhados social e culturalmente. (2010, p. 339).

De acordo com Buckingham (2010) o letramento digital se trata da habilidade crítica e reflexiva de usar a informação em prol do conhecimento, não é somente uma questão funcional, não se refere somente ao fato de ser capaz de manusear o computador e fazer pesquisas. Para o autor, não basta ter somente as habilidades necessárias para se processar informações na mídia digital, é preciso ser capaz “de avaliar e usar a informação de forma crítica se quiserem transformá-la em conhecimento” (BUCKINGHAM, 2010, p. 49).

Xavier (2005, p. 134) aborda o letramento digital salientado que:

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[...] o letramento digital implica realizar práticas de leitura e escrita diferentes das formas tradicionais de letramento e alfabetização. Ser letrado digital pressupõe assumir mudanças nos modos de ler e escrever os códigos e sinais verbais e não-verbais, como imagens e desenhos, se compararmos às formas de leitura e escrita feitas no livro, até porque o suporte sobre o qual estão os textos digitais é a tela, também digital (grifos do autor).

Como podemos perceber os autores citados, apresentam uma perspectiva de letramento digital que perpassa o funcionalismo tecnológico, e se estabelece em uma visão crítica e reflexiva aliada ao uso da leitura e escrita no ciberespaço.

Diante dessas compreensões, ser letrado digitalmente implica, portanto, dizer que o sujeito não apenas reconhece os recursos tecnológicos que estão à sua disposição, mas principalmente se apropria deles, utilizando-os de forma coerente, reflexiva e criativa em um ambiente diferente - o digital, que requer novas práticas de leitura e escrita, decorrentes da substituição do papel, (texto impresso) pela tela (texto digital) (MARZARI; LEFFA 2013). Assim Marzari e Leffa (2013) defendem que o “letramento digital pressupõe novas maneiras de conceber o ensino e a aprendizagem, na medida em que, por meio de práticas pedagógicas diferenciadas e inovadoras, pautadas no uso das TIC, busca atender às demandas formativas do indivíduo para que este possa agir em sociedade, tornando-se efetivamente parte dela” (p.4)

Para alguns autores como Soares (2002) o texto na tela, ou seja, lido na interface digital, constitui uma revolução do espaço da escrita, que altera fundamentalmente a relação do leitor com o texto, as maneiras de ler e os processos cognitivos. Para a autora nessa perspectiva, se abrem possibilidades novas e imensas à representação eletrônica dos textos, que substitui a materialidade do livro pela imaterialidade dos hipertextos, sem lugar específico. Essas mutações demandam, inevitavelmente, imperativamente, novas maneiras de ler, novas relações com a escrita e novas técnicas intelectuais. A autora complementa dizendo que a tela como espaço de escrita e de leitura traz “não apenas novas formas de acesso à informação, mas também novos processos cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim, um novo letramento, isto é, um novo estado ou condição para aqueles que exercem práticas de escrita e de leitura na tela” (SOARES, 2002, p.153).

Diante desses argumentos Soares (2002) nos remete ao fato que na cibercultura, o confronto entre tecnologias tipográficas e digitais de escrita e seus diferenciados efeitos sobre o estado ou condição de quem as utiliza, sugere que se pluralize a palavra letramento digitais e se reconheça que diferentes tecnologias de escrita criam diferentes letramentos. Assim a autora defende o uso do termo no plural, para enfatizar a idéia de que:

Diferentes tecnologias de escrita geram diferentes estados ou condições naqueles que fazem uso dessas tecnologias, em suas práticas de leitura e de escrita: diferentes espaços de escrita e diferentes mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita resultam em diferentes letramentos. (SOARES, 2002, p. 156)

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Essa ampliação do termo letramento digitais, nos leva a compreender o letramento em seu aspecto infinito, em sua relação direta com a sociedade e cultura, uma vez que ambos estão em um processo dialético de modificações. Logo compreender que existem diversos letramentos que são constituídos nesse desfecho, é compreender que de igual modo acontece com os letramentos oriundos dos contextos sociais e culturais mediados pelas TIC, no ciberespaço.

Seguindo essas perspectivas, Buzato também defende a idéia de que seria mais adequado então aderir ao termo letramentos digitais, para se referir aos multiletramentos que existem e que podem vir a existir nas práticas de leitura e escrita mediada pelas tecnologias digitais. Nas palavras do autor:

Letramentos digitais (LDs) são redes de letramentos (práticas sociais) que se apóiam, entrelaçam, e apropriam mútua e continuamente por meio de dispositivos digitais (computadores, celulares, aparelhos de TV digital, entre outros) para finalidades específicas, tanto em contextos socioculturais limitados fisicamente, quanto naqueles denominados online, construídos pela interação social mediada eletronicamente. (BUZATO, 2006, p. 16)

Com base em todas essas premissas discutidas, podemos concluir que o letramento digital é uma demanda recorrente da contemporaneidade. Devido a diversidade de contextos sociais e culturais em que a leitura e escrita estão inseridas e a infinidade de letramentos que surgem com a cibercultura até mesmo o letramento digital tem sido compreendido em sua realidade mais ampla, sendo mais adequado também nos referir à “letramentos digitais”. Logo já não cabe mais dizer de um único letramento digital que surge nesse contexto, mas sim de multiletramentos que estão sempre surgindo nessa interação entre o sujeito e os eventos e práticas de letramentos nesse novo espaço, que como visto está em constante mudança.

Tais fatos nos levam enquanto profissionais mediadores do conhecimento a refletir sobre nossas práxis pedagógica, nos levam a compreender novas maneiras de aprender e a mediar o conhecimento, a pensar sobre novas formas de aprendizagem para além dos conteúdos formais da escola tradicional. Essa nova realidade ao qual estão inseridos, nossos estudantes, os nativos digitais, nos leva a refletir sobre a realidade desse aluno e o papel do professor e da escola em meio a realidade dos multiletramentos, inclusive dos letramentos digitais.

Diante de todas essas discussões que norteiam o desenvolvimento dessa pesquisa, podemos dizer que a base teórica constituída até aqui, nos permitem um novo modo de olhar para nossos dados e de igual modo para pensarmos nosso produto. Esse novo olhar, constituídos a partir de densos estudos nos levaram a compreender melhor as pessoas com SD, suas potencialidades para a aprendizagem e para o desenvolvimento. Nos permitiram compreender melhor sobre os processos de alfabetização e letramento, como o sujeito se apropria da língua escrita, e diante disso, nos permitem pensar quais os melhores caminhos podem ser trilhados nesse processo. Nos levaram a refletir sobre o quanto as tecnologias e a gamificação podem ser significativas e potencializadoras como recursos para esse fim.

Encerro dizendo, nossas bases teóricas, nos dão um novo olhar sobre a inclusão, e assim podemos perceber que muito já foi feito e conquistado, mas a luta, ainda continua, há muito ainda o que fazer, para tornar a escola e a sociedade um lugar inclusivo, onde todos podem se sentir capazes, principalmente em relação ao aprendizado.

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