Educação Especial e Inclusão Pesquisas do Centro Oeste Brasileiro

Desenvolvimento, linguagem e surdez: contribuições teóricas à luz dos estudos de L. S. Vigotski

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Autores: Daniele Nunes Henrique Silva, Fabricio Santos Dias de Abreu

Introdução

No decurso da história da humanidade, nota-se que todos aqueles que não se enquadraram ao padrão hegemônico de desenvolvimento por possuírem uma peculiaridade biológica sofreram os efeitos perversos da exclusão das vivências sociais e o cerceamento do acesso pleno aos bens culturais (JANNUZZI, 2012; LOBO, 2008; SOLOMON, 2013). Nessa dinâmica, de forma mais específica, as pessoas com deficiência foram exiladas do exercício da cidadania, recebendo de forma marginal o acesso às políticas engendradas pelo Estado, como a educação, por exemplo.

Porém, no século XX, novos olhares, acadêmicos e sociais, começaram a ser lançados em torno das pessoas que possuíam alguma peculiaridade no desenvolvimento neuropsicomotor, buscando assegurar seus direitos fundamentais e tentando romper com o passado marcado pela exclusão.

Nesse contexto, a perspectiva histórico-cultural tem defendido, desde o início do século passado, uma interpretação progressista e humanizada sobre as questões relacionadas à deficiência (BARROCO, 2007, 2012; BEATÓN, 2001, 2012; GARCÍA & BEATÓN, 2004; GÓES, 2013; KASSAR, 2013). Os estudos nessa abordagem têm argumentado a favor de uma visão positiva da deficiência, afinal uma pessoa com desenvolvimento peculiar não é menos desenvolvido, mas desenvolve-se de outro modo, por outras vias. (VIGOTSKI, 1997).

Nessa linha, o desafio dos pesquisadores da Pedagogia e da Psicologia tem sido de identificar e compreender os meios criados pelas crianças com deficiência (trajetórias não hegemônicas de desenvolvimento) para responder demandas culturais e pedagógicas impostas pelo meio social. De fato, a forma como essas crianças revelam o que pensam, o que sentem e como agem é qualitativamente diferenciada do desenvolvimento considerado típico, quando comparadas.

O grupo de pesquisa “(Dia)logos em Psicologia” desenvolveu investigações sobre os aspectos relacionados à inclusão educacional e social, buscando aprofundar os conceitos teóricos da perspectiva histórico-cultural no que tange aos estudos sobre desenvolvimento, cultura e deficiência (MENDONÇA, 2013; RIBEIRO, 2014; SILVA, 2014; MONTEIRO, 2014; ABREU, 2015). Neste capítulo, vamos apresentar as diretrizes teóricas das nossas investigações, especificamente as considerações teóricas sobre a surdez.

A educação especial do novo homem soviético: os estudos defectológicos por lev. Seminovich vigotski

As teorizações sobre o curso do desenvolvimento humano interpelado pela deficiência marcam a trajetória intelectual de L. S. Vigotski (1896-1934). Ao analisarmos cronologicamente o escopo de sua obra, notamos que tal temática se fez presente desde o início da sua produção teórica, com a publicação do artigo “Principios educativos de los niños anormales”, em 1924, e perdura até o ano da sua morte, quando redigiu o texto “El problema del retraso mental”, datado de 1934.

As reflexões apresentadas ao longo das explanações do autor sobre o desenvolvimento atípico, compilados principalmente no Tomo V das Obras escogidas — fundamentos de defectologia (VIGOTSKI, 1995, 1997), são um convite para reflexões e reformulações das práticas pedagógicas e sociais dispensadas às pessoas com deficiência. Elas endossam as teses sobre a dimensão semiótica do desenvolvimento humano, a plasticidade do funcionamento psíquico e o papel fundante das interações sociais na constituição do sujeito.

A produção de Vigotski nessa área encontra-se intimamente ligada ao seu compromisso político-teórico com as transformações sociais que estavam acontecendo à época na União Soviética. O período pós-Revolução de 1917 e o novo contexto ideológico marcado pelo enfrentamento dos problemas sociais colocaram em evidência a situação de vulnerabilidade à qual as crianças com deficiência estavam submetidas. Isso levou Vigotski a se envolver na formulação de propostas educacionais alinhadas ao nascente cenário sociopolítico (BARROCO, 2007; NUENBERG, 2008).

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Inserido na conjuntura revolucionária de composição de uma nova ordem social, o psicólogo russo defendia que, se as condições organizacionais de um país forem reestruturadas de tal forma que “gracias a condiciones especiales, los ninõs deficientes constituyeran un valor expecional” (VIGOTSKI, 1997, p. 93), eles, então, encontrarão lugar na vida, e a composição biológica diferenciada não significará necessariamente insuficiência ou defeito. Essa utopia comunista não se tratava de um paradoxo, “sino una idea transparente y clara hasta la medula” (VIGOTSKI, 1997, P. 94).

Para atingir esse objetivo de (re)formulação de uma educação especial para o novo homem soviético, era necessário estabelecer uma outra ordem societária, livre da lógica neoliberal burguesa, do capitalismo e de suas amarras de exploração do homem pelo homem. Assim, uma revolução social de base comunista só faria sentido com a superação dessas concepções e com o estabelecimento de um conceito de pessoa com deficiência afastado da referência de normalidade que ainda se baseava na biologia higienista e quantitativa do século XIX.

Vigotski, nesse contexto, argumentou em defesa de uma visão mais auspiciosa e positiva sobre o desenvolvimento atípico; além disso, atribuiu papel essencial às relações sociais na emergência e consolidação de capacidades potenciais das crianças deficientes, rompendo com uma visão quantitativa que visava mensurar, em graus e níveis, a deficiência (GOÉS, 2013; PADILHA, 2004). O autor criticava a avaliação diagnóstica e o planejamento educacional que se centravam no que faltava ao indivíduo, e não nas suas potencialidades.

Para os autores da perspectiva histórico-cultural, a defesa principal da defectologia pauta-se em enxergar a criança em potencialidades ilimitadas de desenvolvimento, e não com base no conceito geral e mal definido de sua insuficiência orgânica. Este se ancora em prescrições generalizadas sobre o diagnóstico, que relega ao sujeito uma experiência social menor, fundamentada na ideia de déficit e enfermidade, que tende a engessa práticas pedagógicas e coletivas (PADILHA,2004, 2007, 2013).

Assim, existe uma força tendenciosa em enxergar no sujeito apenas aquilo que lhe falta, a deficiência per se, e não as infinitas capacidades que podem ser aproveitadas e exploradas para o desenvolvimento da criança. Essas ideias influenciaram fortemente a pedagogia terapêutica e a escola especial, que basearam nos estudos clínicos a noção sobre a natureza da deficiência para construírem práticas segregadoras, focando o trabalho em aspectos considerados negativos do sujeito. Nessa mesma lógica, insere-se a noção da escola burguesa, que estabelece barreiras à escolarização daqueles considerados incapazes de viver amplamente em sociedade. A tais sujeitos, considerados improdutivos se comparados às noções hegemônicas que regem as bases econômicas capitalistas, resta desenvolver-se em um espaço social pouco favorável e atento às suas peculiaridades e necessidades.

Em suma, em bases defectológicas, entende-se que a deficiência não torna a criança alguém que tem possibilidades de desenvolvimento aniquiladas, mas diferenciadas. A deficiência não é concebida, portanto, como uma falta ou fraqueza, mas como outra forma de desenvolvimento, com base em recursos distintos daqueles acessíveis tipicamente na cultura (GÓES, 2002A, 2002B). Nessa linha, Vigotski (1997) estabelece: “el niño cuyo desarrollo está complicado por el defecto no es simplemente un niño menos desarrollado que sus coetáneos, sino desarrollado de otro modo” (p. 12).

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Essa premissa implica uma recusa à concepção de um curso linear e evolutivo do desenvolvimento. Ao contrário, defendem-se os princípios de um processo dialético complexo, atravessado por rupturas e conflitos, marcado por revoluções, evoluções, crises, transformações qualitativas de capacidades etc. (GÓES, 2002B, 2013; PADILHA; 2013; VIGOTSKI, 1997, 2011). Em síntese, nessa perspectiva teórica, o desenvolvimento é entendido como “un camino dialéctico, complejo e irregular, con variaciones cuantitativas y metamorfosis cualitativas, que implicaría la sustitución sistemática de unas funciones por otras y la incorporación de mediaciones externas, para convertirlas en internas” (RIVIÉRI, 1985, P. 64).

Apesar dessas considerações, sabemos que a pessoa cuja trajetória encontra-se marcada pela deficiência vivencia, em maior ou menor grau, uma paupérrima experiência social que tende a colocá-la em local de invisibilidade e asilamento assistencial, ocasionando uma luxação social (VIGOTSKI, 1997, p. 73) ou, ainda, um deslocamento social (VIGOTSKI, 1997, p. 80). Dessa forma, não é o déficit em si que guia o traçado do desenvolvimento da criança, mas o modo como a deficiência é socialmente significada — pelas experiências que são propiciadas ao indivíduo no seio da cultura e na qualidade das suas relações. Assim, a deficiência é um conceito social e se caracteriza por ser “un signo de la diferencia entre su conducta [dos deficientes] y la conducta de los otros (VIGOTSKI, 1997, p. 82).

Defendendo a centralidade do sujeito, em suas peculiaridades e subjetividades, e a complexidade individual perante a deficiência, Vigotski (1997) argumenta que o defeito, traço constitutivo que acaba por cercear a prática social, deveria ser ressignificado no âmago das relações:

cualquier insuficiencia corporal — sea la ceguera, la sordera o la debilidad mental congénita — no solo modifica la relación del hombre con el mundo, sino, ante todo, se manifiesta en las relaciones con la gente. El defecto orgánico se realiza como anormalidad de la conducta. (p. 73)

Partindo da tese fundamental de que existem leis gerais, únicas em sua essência e princípios, que regem o desenvolvimento de todos os seres humanos, acometidos ou não de desarranjos orgânicos, Vigotski esboça sua proposição teórica com o intuito de entender o curso do desenvolvimento humano a partir de leis comuns. Em suas investigações, o autor estabelece que, nas crianças deficientes, os elementos mediadores que estruturam as funções psicológicas superiores seguem rotas diferenciadas se comparadas às daquelas com desenvolvimento típico. Essa problemática está intimamente ligada à inserção cultural, e não, a priori, a uma explicação biológica por insuficiência orgânica. Nas palavras do autor, “el desarrollo incompleto de las funciones superiores está ligado al desarrollo cultural incompleto del niño mentalmente retrasado, a su exclusión del ambiente cultural, de la ‘nutrición’ ambiental” (VIGOTSKI, 1997, P. 144).

Vigotski argumenta que o defeito não cria obstáculos diretamente nem impossibilita a emergência das funções. O motivo do desenvolvimento incompleto do indivíduo é uma superestrutura secundária, de ordem social, que age sobre ele. Para o autor, existe uma diferença essencial entre deficiência primária e deficiência secundária. Aquela se refere ao problema orgânico, biologicamente dado; já esta se desenvolve a partir das consequências construídas no campo psicossocial, decorrendo da maneira como o meio circundante se estrutura e reage perante o defeito primário. Dessa forma, “absolutamente todas las peculiaridades psicológicas del niño deficiente tienen en su base un núcleo no biológico, sino social (VIGOTSKI, 1997, P. 80-81).

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A defesa da perspectiva histórico-cultural nessa área estabelece que o foco prioritário de atenção ao sujeito com deficiência se paute no campo das funções psicológicas superiores, por entender que “las mayores posibilidades de desarrollo del niño anormal se encuentran más bien en el campo de las funciones superiores, que en el área de las inferiores (VIGOTSKI, 1997, P. 221). Com base nessa premissa, Vigotski postula que é pelo desenvolvimento cultural que a deficiência pode ser compensada, pois “onde não é possível avançar no desenvolvimento orgânico, abre-se um caminho sem limites para o desenvolvimento cultural” (2011, p. 869).

Porém, conforme sinalizado por Góes (2002b) e Nuernberg (2008), a vida social está milimetricamente organizada para as condições de desenvolvimento típico e construída em função de um padrão de normalidade. As práticas relacionais, os instrumentos, as técnicas, os signos e a composição dos ambientes sociais se projetam para um tipo biológico estável de homem, com órgãos intactos e funções cerebrais preservadas. Nesse contexto, o desenvolvimento atípico, devido a esses impeditivos, não favorece no sujeito o enraizamento da cultura pela via direta.

É nessa dinâmica, marcada pela vivência da menos-valia, que surge no deficiente uma força motriz capaz de transpor essas barreiras por caminhos indiretos. Na experiência social, o sujeito é impelido a tensionar suas forças para compensar as dificuldades que surgem em razão do defeito. Esse movimento baseia-se na superação das limitações pela utilização de instrumentos artificiais (BATISTA, 2011; DAINEZ, 2008, 2014). Assim, “el defecto no es solo una debilidad, sino también una fuerza. En esta verdad psicológica reside el alfa y el omega de la educación social de los niños con deficiencias” (Vigotski, 1997, p. 48).

Por essa razão, diante da condição de deficiência, é necessário criar formas culturais singulares que permitam mobilizar as forças compensatórias e explorar rotas alternativas de desenvolvimento, que impliquem no uso de “recursos especiais” (GÓES, 2002B, P. 99). É por meio da compensação que técnicas e habilidades culturais passam a existir, dissimulando e compensando o defeito (DAINEZ, 2008, 2014). Elas tornam possível enfrentar uma tarefa inviável pelo uso de caminhos novos e diferentes (VIGOTSKY & LURIA, 1996).

Ao longo de sua obra, além dos princípios teóricos gerais, Vigotski analisa os processos psicossociais, principalmente no curso da infância, de sujeitos com deficiência mental, cegueira, deficiência múltipla, transtornos emocionais e surdez. Esta última marcada pela dificuldade de apropriação da palavra falada por vias diretas, gera obstáculos à inserção do sujeito no mundo cultural.

Conforme já argumentamos, é por meio da experiência simbólica que ocorrem as transformações do funcionamento psicológico superior (memória, emoção, imaginação etc.) e a constituição das formas complexas de pensamento. Portanto, é na linguagem e na experiência com a palavra, por meio das relações sociais, que o sujeito vai se constituindo. Dessa problemática, e defendendo a centralidade da palavra como instrumento psicológico para a emergência das funções superiores, resulta o interesse da perspectiva histórico-cultural em investigar como os surdos, operando com a palavra por uma modalidade não convencional, organizam seu funcionamento mental.

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Surdez: um olhar pela perspectiva histórico-cultural

A surdez e seus impactos no desenvolvimento psicológico foi um tema bastante problematizado por Vigotski ao longo de suas teorizações defectológicas. Porém, é necessário analisar esse assunto na cronologia de sua produção e trazer à lembrança que seus textos são datados do início do século XX. Sem essa marcação a priori, podem parecer contraditórias suas posições sobre essa temática. Contudo, no campo da surdez, notamos de forma explícita deslocamentos epistemológicos do autor no decurso de sua produção e composição teóricas, marcadas por reestruturações de pensamentos, alinhamentos político-filosóficos e mudanças de paradigma.

Em 1924, com a publicação do texto “Acerca de la psicología y la pedagogía de la defectividad infantil” (VIGOTSKI, 1997), encontramos as primeiras problematizações diretas de Vigotski sobre a surdez. O autor argumenta que a surdo-mudez, termo utilizado na época, tratava-se de um infortúnio muito maior que a cegueira, pois apartava o indivíduo da comunicação com seus pares. Para minimizar esses efeitos, a metodologia pedagógica utilizada para a instrução dos surdos deveria ter como base o ensino da fala oral, pois, além de possibilitar a comunicação, permitiria “desarrollar en la conciencia, el pensamiento, la autoconciencia. Es restituirlo a la condición humana” (VIGOTSKI, 1997, p. 88-89).

A mímica, termo utilizado pelo autor à época para se referir à língua gestual, apesar de ser considerada uma forma de linguagem, deveria ser banida para dar espaço ao método oral puro, que seria a via capaz de restituir a humanidade ao surdo. Ainda restrito às ideias do texto de 1924, Vigotski defende que “a linguagem mímica representa o grau mais baixo e a forma mais estreita de desenvolvimento da linguagem e da consciência” e “traz vestígios do pensamento rústico primitivo e por isso não está apta a tornar-se instrumento de expressão e conhecimento” (2010, p. 387).

Mais adiante, em 1925, no texto “Principios de la educación social de los ninõs sordomudos” (VIGOTSKI, 1997), ainda notamos o autor preso às ideias da filosofia oralista. Sua tese central baseava-se na criação de uma prática pedagógica de educação social para o surdo segundo um sistema científico ordenado e coerente, com a finalidade de agregar as experiências fragmentadas com foco prioritário no ensino da língua oral. Ele desaprovava a língua de sinais e a colocava como forma comunicativa primitiva, que condenava o surdo a “permanecer em um estágio de extremo atraso e retardamento intelectual” (VIGOTSKI, 2010, P. 388); a língua de sinais, segundo ele, não permitia a construção de conceitos e de imagens abstratas. O autor defendia: “es preciso organizar la vida del niño de tal manera que el lenguaje le resulte necesario e interesante, en cambio, que la mímica no sea para él ni interesante ni necesaria (VIGOTSKI, 1997, p. 125).

Contudo, nesse texto, aparecem também fortes críticas aos métodos utilizados na oralização, que são caracterizados como mecânicos, artificiais e penosos para as crianças. Ainda assim, tais posições não afastam a ideia de tornar a oralização a melhor metodologia para a educação dos surdos, entendida como a via capaz de fazer “[...] o surdo ingressar no mundo das pessoas normais que ouvem e falam” (VYGOTSKY & LURIA, 1993, P. 224).

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Já com a publicação do texto “El colectivo como factor para el desarrollo del niño con defecto” (VIGOTSKI, 1997), de 1931, percebem-se os primeiros indícios de um deslocamento epistemológico do pensamento de Vigotski sobre os surdos e a língua de sinais. Tal mudança se deu provavelmente em função de seu maior contato com os sujeitos surdos, do visível insucesso das práticas oralistas e da consolidação e amadurecimento da sua teoria sobre a linguagem. Nessa fase, marcada pelo forte apelo de inserção do deficiente na esfera social, ficou explícita a defesa de Vigotski para a substituição do método oral em detrimento da língua de sinais, conceituada agora como uma linguagem autêntica, conforme pode ser visto no fragmento abaixo:

pese a todas las buenas intenciones de los pedagogos, la lucha del lenguaje oral contra la mímica, por regla general, siempre termina con la victoria de la mímica, no porque ésta sea, desde el punto de vista psicológico, el verdadero lenguaje del sordomudo. Ni porque sea más fácil — como dicen muchos pedagogos —, sino porque constituye un auténtico lenguaje en toda la riqueza de su significado funcional. (p. 231)

Percebe-se, conforme assinalado por Góes (2002a), que há mudanças nas convicções do autor sobre as diretrizes educacionais das crianças surdas. Por exemplo, os sinais passam de intromissores à aliados para o desencadeamento do processo de conquista da fala, sendo então considerados uma instância de linguagem sob a forma não vocal. Nesse contexto, Vigotski (1997) estabelece que o caminho mais apropriado e fecundo para o desenvolvimento da criança surda deveria pautar-se no poliglotismo, entendido como o domínio de diferentes formas de linguagem, em função da aquisição da “mímica y el lenguaje escrito” (p. 232). Nessa proposição, devem-se utilizar todas as possibilidades de atividade linguística da criança surda, de modo que a mímica não ocupa mais, como outrora, um lugar menor ou primitivo.

A publicação “A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal” (VIGOTSKI, 1997, 2011), apesar de não datada, nos leva a crer que foi redigida posteriormente a “El colectivo como factor para el desarrollo del niño con defecto” (VIGOTSKI, 1997), devido ao desencadeamento de ideias, que se completam e avançam a partir deste para aquele.

Marcado pela defesa de que o desenvolvimento cultural é o principal mecanismo para compensar a deficiência, Vigotski (1997, 2010, 2011) estabelece que é por meio da educação social que se criam caminhos alternativos e/ou indiretos de desenvolvimento. Esses sistemas símbolos alternativos, adaptados às peculiaridades da organização psicofisiológica da criança com deficiência, caracterizam-se pela necessidade desta de ingressar no mundo da cultura. Para explicar tal princípio, o autor se vale da escrita no ar: “no caso dos surdos-mudos, a dactilologia (ou alfabeto manual) permite substituir por signos visuais, por diversas posições das mãos, os signos sonoros do nosso alfabeto e compor no ar uma escrita especial, que a criança surda-muda lê com os olhos” (VIGOTSKI, 2011, p. 867).

Outro ponto importante a destacar é o conceito de fala trazido em Vigotski (2011). O autor enfatiza que a fala não se trata de uma ação ligada exclusivamente ao aparelho fonador, mas “pode ser realizada em outro sistema de signos” (p. 868) — tal como a escrita, que pode ser transferida do visual para o tátil, como no sistema Braille. Dessa forma, no surdo, a fala humana é garantida por um aparato psicofisiológico completamente diferente do hegemônico e usual. Em vez de se expressar pela via oral, manifesta-se nas mãos.

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Nós nos acostumamos com a idéia de que o homem lê com os olhos e fala com a boca, e somente o grande experimento cultural que mostrou ser possível ler com os dedos e falar com as mãos revela-nos toda a convencionalidade e a mobilidade das formas culturais de comportamento. (VIGOTSKI, 2011, P. 868)

Concordamos com Goldfeld (1997) e Góes (2002a) quando afirmam que Vigotski tem o mérito de ser o primeiro autor a considerar, em essência e filosofia, a língua de sinais como uma língua de fato (apesar de se referir a ela como mímica). Além disso, é possível enxergar em sua obra um protótipo de uma proposta de educação bilíngue para surdos, mesmo que entremeada pela comunicação total.

As crianças-surdas mudas, por si mesmas, desenvolvem uma língua mímica complexa, uma fala singular. É criada uma forma particular de fala, não para os surdos mudos, mas construída pelos próprios surdos-mudos. É criada uma língua original, que se distingue de todas as línguas humanas. (VIGOTSKI, 2010, p. 868, grifos nossos).

Segundo Góes (2002a), para a perspectiva histórico-cultural, o desenvolvimento da criança surda passa a ser compreendido como um processo social, e suas experiências de e na linguagem são entendidas como instâncias de significação e de mediação nas suas relações com a cultura e nas interações sociais.

A síntese dos estudos defectológicos de Vigotski acerca da surdez desvela uma mudança dos paradigmas educacionais e sociais, sugerindo a urgência em se compreender a centralidade da língua de sinais para o desenvolvimento do surdo. Decorre daí, a necessidade de também evidenciar que a condição social do surdo está marcada por uma vivência bilíngue; um trânsito permanente entre dois mundos: os pares ouvintes e os pares surdos. Pesquisar a qualidade e a especificidade dessas trajetórias é um desafio permanente dos pesquisadores no campo da Psicologia e da Educação.


Sobre os(as) autores(as)

Daniele Nunes Henrique Silva é graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Psicologia da Educação (Unicamp), e doutora em Educação (Unicamp). Realizou estágio pós-doutoral em Psicologia Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professora associada do quadro permanente da Universidade de Brasília (UnB), vinculada ao Instituto de Psicologia-Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento e ao Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde, onde orienta mestrado, doutorado e supervisiona estágios pós-doutorais.

Fabricio Santos Dias de Abreu é graduado em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde (UnB), e doutorando em Psicologia do Desenvolvimento e Escolar (UnB). Especialista em Planejamento, Implementação e Gestão da Educação a Distância pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Gênero e Sexualidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Gênero e Diversidade na Escola pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Tem como eixo epistemológico as proposições teóricas da Psicologia Histórico-Cultural, principalmente nos seguintes temas: infância, imaginação, deficiência e linguagem. É professor concursado da área de Educação Especial – Deficiência Intelectual da Secretaria de Educação do Distrito Federal.

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Referências

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