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Conferências

2Anatomia Patológica e a Medicina Legal: Da Macroscopia à Microscopia.

1. A Medicina Legal

A medicina legal é uma ciência autônoma, contudo existe para auxiliar a justiça em suas demandas. Ela traz luz onde os operadores do direito, leigos em matérias médicas, não podem enxergar. O médico legista, perito oficial, admitido por concurso público, pertencente aos quadros das Secretarias de Segurança dos estados, é o profissional capacitado e legalmente indicado para realizar as perícias no âmbito criminal.

O ato pericial é revestido de grande importância, pois é a peça processual que muitas vezes define ou não uma condenação, sendo este laudo um prefácio da sentença. Então, o perito médico deve ser técnico, sem se reservar apenas a relatar, mas também discutindo seus achados e deixando sua visão objetiva sobre o caso em análise. Tudo isso visa fornecer o máximo de informações que possam auxiliar o operador judiciário em sua formação de convicção, pois o juiz julga baseado nesses esclarecimentos.

Quando se pensa em Instituto Médico-Legal (IML), logo vem à tona a ideia do exame cadavérico, a necrópsia, mas apesar de a tanatologia forense ser o ramo da medicina legal mais evidente, a maior parte dos exames em um IML são em indivíduos vivos, ou seja, exames que fazem parte da clínica médico-legal. Contudo, aqui vamos dar maior atenção aos aspectos necroscópicos, e à aplicação dos conhecimentos em morfologia na elucidação de crimes.

2. A Autópsia Forense

O conhecimento da anatomia humana como concebido hoje não foi atingido de forma célere e fácil. Tradições e aspectos religiosos sempre representaram um entrave ao desenvolvimento desta ciência. Há relatos que na Índia aconteceram as primeiras dissecções em crianças de menos de dois anos, já que os maiores dessa idade eram cremados na tradição hindu. Todavia, as primeiras dissecções forenses aconteceram na Itália, Universidade de Bologna, no século XIII, sendo a primeira registrada em 1275 por William de Saliceto, um cirurgião e professor da época. As necrópsias clínicas tornaram-se importantes a partir das descobertas de Rokitansky e Virchow em patogênese das doenças e patologia celular.

Então, podemos diferenciar as autópsias em clínicas, aquelas destinadas a fornecer subsídios para o diagnóstico patológico, e forenses, que são as que servem à justiça, aquelas que vão esclarecer a etiologia da morte de causa externa. As necrópsias clínicas são normalmente realizadas em hospitais e nas unidades do Sistema de Verificação de Óbitos (SVO), e necessitam de autorização da família para ocorrer. Já as necrópsias forenses são obrigatórias segundo nossa legislação e são executadas nos Institutos de Medicina Legal (IML), órgãos pertencentes às Secretarias de Segurança dos estados.

Uma autópsia é um exame externo e interno detalhado do corpo, um exame que deve estar revestido solenemente da ética médica e do respeito à dignidade do cadáver.

Existem quatro técnicas mais conhecidas de evisceração usadas nas autopsias. São elas: técnica de Letulle, que consite numa evisceração em massa, tirando os órgão em bloco único para posterior análise; técnica de Virchow, sendo a retirada dos órgãos um a um; técnica de Ghon, consistindo numa junção das duas técnicas anteriores, pois conserva relações interorgãos, pois os retira em blocos por sistemas; e, finalmente, a técnica de Rokitansky, que é a análise dos órgão in situ, sem sua retirada.

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3. Morte Natural

As causas naturais de morte, apesar de sua apuração não ser atribuição da medicina forense, podem chegar nas salas de necrópsia para a avaliação do médico legista. São os casos da morte suspeita, quando não são verificadas circunstâncias ou vestígios no local da morte que apontem para causa externa, mas também não há um histórico médico ou circunstância que apontem para morte natural. São mortes súbitas, principalmente em crianças e adultos jovens, quando o óbito merece investigação médico legal. São elas:

a. Doença Cardiovascular

Doenças cardiovasculares causam quase 30% das mortes no País. Os achados necroscópicos mais comuns são a aterosclerose coronariana severa, com ou sem calcificação ventricular, e cicatrizes miocárdicas. O mecanismo da morte geralmente é por arritmia cardíaca. Alterações do parênquima cardíaco só vão surgir após quatro a seis horas após a hipóxia tecidual. E em um infarto com menos de 24h veremos fibras cardíacas alongadas e finas na área atingida.

Na doença cardiovascular hipertensiva veremos aterosclerose concêntrica e cardiomegalia por hipertrofia ventricular esquerda simétrica; alteração renal com esclerose arteriolar. E mecanismo de morte comum também as arritmias.

b. Doença do Sistema Nervoso Central

Um aneurisma de Berry, no círculo de Willis, é causa comum de hemorragia subaracnóidea. São aneurismas que quando com 0,5 a 1,5cm são sintomáticos; a maioria (80-90%) são encontrados na porção anterior do círculo de Willis; o achado necroscópico de grande coleção de sangue subaracnoide em espectro ventral do cérebro; para visualizar o aneurisma roto o exame deve ser sob o cérebro fresco após a incisão cuidadosa da aracnoide.

c. Sistema Respiratório

Tromboembolismo pulmonar ocorre mais comumente quando um trombo advindo de vasos dos membros inferiores viaja para o coração e árvore pulmonar; o êmbolo deverá ser achado durante a autopsia.

d. Trato Gastrointestinal

Hematêmese massiva por rupturas de varizes esofágicas como consequência de hipertensão portal, sendo difícil a visualização das varizes por seu colabamento; hemorragia gástrica por úlceras perfuradas, podendo haver a visualização destas úlceras em mucosa gástrica ou duodeno, com possibilidade de visualização do vaso que sangrou; hérnias inguinais ou umbilicais estranguladas, com infarto das alças, peritonite ou sepse; pancreatite normalmente hemorrágica fulminante.

e. Doenças Hepáticas

Doença hepática alcoólica pode causar morte súbita pela esteatose massiva (alteração gordurosa e aumento do órgão) ou cirrose hepática, com alteração típica da arquitetura tecidual e diminuição do órgão.

f. Doenças da Adrenal

Feocromocitoma é um tumor adrenal que pode levar a morte súbita quando estimulado por pequeno trauma ou manipulação abdominal por exame ou cirurgia, levando a liberação de catecolaminas e consequente crise adrenal com estimulação cardíaca e morte; já na insuficiência adrenal crônica (doença de Addison) a adrenal vai estar ao exame macroscópico diminuída de tamanho e atrófica, com achado microscópico de fibrose e infiltrado inflamatório crônico.

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4. Achados em Morte Violenta

a. Exame microscópico de lesões por arma de fogo: o exame do tecido ao redor de orifício de entrada de projétil de arma de fogo pode ser de alguma valia para identificar material disparado pela arma, o qual seria um material enegrecido visto ao microscópio: a pólvora. De pouca utilidade, já que a análise macroscópica quase sempre já traz elementos que permitem identificar a lesão por arma de fogo.

b. Exame de resíduos do disparo: útil para confirmação de suicídio e de confirmação de suspeitos de executar disparos. Baseia-se na identificação do chumbo, antimônio e bário, componentes do resíduo do disparo. Pode ser feita a técnica qualitativa por espectrometria de energia dispersiva de raios-x e também a técnica quantitativa por espectrometria de emissão atômica em plasma.

c. Achado de fratura de osso hioide e cartilagem tireoide, além de hemorragia da musculatura cervical é visto comumente na asfixia por esganadura, contudo esses achados não são tão comuns no enforcamento ou estrangulamento.

d. Para se diferenciar um recém-nascido de um natimorto, é realizada comumente a docimásia hidrostática de Galeno, quando se retira o bloco intratorácico e mergulha-se o mesmo em água, sendo a prova positiva para respiração se houver flutuação; um teste mais confiável é o exame microscópico do tecido pulmonar que vai mostrar, no caso de um pulmão que não respirou, aparência de glândula parótida com sacos alveolares fechados composto por células cuboides colunares, com pouca vasculatura; já no caso de ter respirado, achamos células achatadas (epitélio escamoso pavimentar) revestido os alvéolos, com aumento da vasculatura.

e. Em homicídios com crime sexual é importante a coleta de suabes vaginal e anal para a pesquisa de espermatozoides, assim como a do PSA (antígeno prostático benigno).

f.  No afogamento, a presença de líquido nas vias aéreas é um sinal consistente para o diagnóstico; a pesagem do pulmão deve ser feita se há dúvidas quanto à presença de líquido nas vias aéreas; o estômago contém água em 70% dos casos; o sangue estará diluído quando o afogamento ocorrer em água doce ou hemoconcentrado quando em água salgada; também na hemodiluição poderemos observar hemólise.

g. Em casos de eletrocussão, via de regra haverá uma lesão de entrada, sendo a marca elétrica de Jelinek a lesão típica, e uma lesão de saída, por onde se forma o arco elétrico; microscopicamente podemos observar um aspecto de queijo suíço da epiderme, com vacuolização da derme e da epiderme, bolhas epidérmicas, alongamento das células, e na microscopia eletrônica de varredura podemos observar ao partículas metálicas do condutor na pele da vítima; estudo de DNA pode ser feito também no condutor, onde pode ter ficado material genético da vítima.

h. Em casos com suspeita de intoxicação exógena, devem ser coletados sangue, humor vítreo, urina e bile; se houver suspeita de ingestão oral, o conteúdo estomacal deve ser examinado também; já corpos em decomposição avançada, músculo da coxa, fígado e rins são peças de escolha para análise toxicológica. Importante a noção que sangue é o elemento mais fidedigno para associar a presença da droga com a morte, pois se for achado metabólitos apenas em órgãos, mas não no sangue, não há como fazer essa relação.